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A natureza jurídica da praça à luz da ordem constitucional e sua submissão ao Estatuto da Cidade

Agenda 08/04/2007 às 00:00

            "A praça é do povo / como o céu é do condor"

(Castro Alves)


            O presente estudo veio à lume por conta de uma consulta que me foi feita diante de um caso concreto: pode a municipalidade dispor de uma praça, inutilizando-a para uso público, a seu bel talante?

            Isso significa que, menos do que uma mera discussão acadêmica, a questão é de relevo e encontra eco em situações fáticas que podem estar ocorrendo nesse exato momento.

            Para encontrar a resposta à indagação acima formulada, que é o objetivo precípuo deste trabalho, é preciso analisar a natureza jurídica da praça em face do sistema constitucional brasileiro e da Lei 10257/2001, que regulamenta o meio ambiente artificial.

            Antes, no entanto, necessário se faz entender o que é o meio ambiente artificial.

            Juridicamente, a definição de meio ambiente encontra-se no art. 3º, inciso I, da Lei da Política nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81):

            Art. 3º. Para os fins previstos nesta lei, entende-se: I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

            Com base na definição de meio ambiente acima mencionada e nas disposições constitucionais, podemos classificar o meio ambiente, a ser protegido juridicamente, da seguinte forma[01]:

            1. Meio ambiente natural: É constituído por solo, água, ar atmosférico, flora e fauna. Encontramos sua previsão constitucional nos inciso I e VII do art. 225:

            I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

            VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

            2. Meio ambiente artificial. É o espaço urbano construído, constituído pelo conjunto de edificações e pelos equipamentos públicos. Encontramos previsão constitucional principalmente no art. 182, que trata da Política Urbana. No plano infraconstitucional, temos o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).

            3. Meio ambiente do trabalho. É o local onde as pessoas executam suas atividades laborais, cujo equilíbrio baseia-se na salubridade do meio a na ausência de agentes que comprometem a saúde dos trabalhadores. Está previsto na Constituição federal, no art. 200, VIII:

            Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

            VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

            4. Meio ambiente cultural. É integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico de um povo. Encontramos previsão constitucional no art. 216, que trata do Patrimônio Cultural Brasileiro.

            O meio ambiente artificial é apenas uma das classificações em que se subdivide o meio ambiente, como forma de facilitar a identificação da atividade degradante e do bem imediatamente agredido. Ele está diretamente relacionado ao conceito de cidade, compreendendo as edificações (o espaço urbano fechado) e os equipamentos públicos (espaço urbano aberto), e é nesse contexto que pretendemos analisar a natureza jurídica da praça.

            Não se desconhece que o novo Código Civil, no seu art. 99, inciso I, classifica a praça como um bem público. Mas não se deve perder de vista que tal Código Civil não é propriamente "novo" nas suas concepções ideológicas[02], limitando-se a copiar o conceito antiquado do Código que revogou, em flagrante dissonância com o que dita a Constituição Federal.

            É que, com a Carta Constitucional de 88, um novo tipo de bem foi introduzido no nosso ordenamento jurídico, que veio afastar aquela tradicional dicotomia bens públicos x bens privados[03]. Trata-se do bem ambiental, previsto expressamente no art. 225 da Constituição Federal, verbis:

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            Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

            O bem ambiental é, portanto, um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, que pode ser desfrutado por toda e qualquer pessoa.

            Afirmando a Constituição Federal que o bem ambiental é de uso comum do povo e que todos têm o direito de usá-lo, resta claro estar-se diante de um bem que não é público[04], muito menos particular, eis que não se refere a uma pessoa (física ou jurídica, de direito privado ou público) individualmente considerada, mas sim a uma coletividade de pessoas, configurando um direito coletivo (lato sensu).

            Essa nossa afirmação confirma-se posto que, estabelecendo que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo a que todos têm direito, o legislador constitucional traçou as diretrizes que permitem a identificação da natureza jurídica desse direito. Ora, se o uso de bem é garantido a todas as pessoas, não resta dúvida que estamos diante de um bem metaindividual, que supera o indivíduo. Sua titularidade é indefinida, representada pelo pronome indefinido todos. E ao determinar o uso comum, estabeleceu-se a natureza indivisível deste direito ao meio ambiente equilibrado[05].

            Os direitos coletivos lato sensu, referidos na Carta Magna, ganharam definição legal infraconstitucional com o advento da lei 8078/90, que estabeleceu em seu art. 81, parágrafo único, inciso I o que são interesses difusos:

            I – interesses ou direito difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, o transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

            Assim sendo, o bem ambiental configura um direito difuso, metaindividual, não limitado ao interesses privados ou públicos. O titular do bem ambiental é a coletividade, assim entendida como os brasileiros e estrangeiros residentes no País (CF, art. 5º, caput). Trata-se, pois, de um direito transindividual, de natureza indivisível, cujos titulares são pessoas indeterminadas, ligadas por uma circunstância de fato.

            E, como se trata de um bem essencial à sadia qualidade de vida, deveremos enfrentá-lo à luz do que dispõe o art. 1º, III combinado com o art. 6º, ambos da Constituição Federal.

            Para se ter uma vida saudável, necessária a satisfação dos fundamentos democráticos previstos na Constituição Federal, em especial o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), além de valores fundamentais mínimos como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (art. 6º). Tais valores constituem, no termo cunhado pelo eminente prof. Celso Fiorillo, um PISO VITAL MÍNIMO de direitos que devem ser assegurados pelo Estado, para o desfrute da sadia qualidade de vida[06].

            Uma vida digna e saudável é aquela em que se tem garantidos e efetivados os direitos componentes desse piso vital mínimo.

            Pois bem, e onde se situa a praça nisso todo?

            A praça é um bem de uso comum do povo (Código Civil, art. 99, I). Se assim é, ela não pode ter um único dono. Cuida-se, como visto acima, de um bem indivisível, cujos titulares são pessoas indeterminadas e ligadas por uma circunstância de fato. Trata-se, pois, de um bem de interesse difuso.

            Por outro lado, é um bem essencial à sadia qualidade de vida da população que reside na cidade em que a praça está localizada. As pessoas se utilizam da praça para suas atividades de lazer. O lazer, que é um dos direitos sociais componentes do piso vital mínimo expressamente previsto no art. 6º da Constituição Federal, é atividade indispensável para uma vida digna e sadia, e a política urbana, que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, tem como diretriz a garantia às cidades sustentáveis, entendido assim, dentre outros, como o direito ao lazer (Estatuto da Cidade, art. 2º, I).

            Logo, sendo um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, podemos afirmar, à luz do sistema constitucional positivo pátrio, que a praça não é um bem público, ao contrário do que dispõe o caput do mencionado art. 99 do Código Civil (que é notadamente inconstitucional). É, na realidade do sistema jurídico, um bem ambiental, e como tal não se submete aos valores tradicionalmente situados pelos subsistemas do direito civil ou do direito administrativo[07].

            Destarte, a praça tem natureza jurídica de bem ambiental, o que significa dizer que o Poder Público não tem nenhum direito sobre ela, muito menos de dispor dela como bem entender. E como bem ambiental que é, a praça sujeita-se à tutela do meio ambiente artificial, consubstanciada no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)[08].

            A praça, como bem ambiental, é um dos componentes do meio ambiente artificial, ou seja, da cidade. É preciso entender, primeiramente, que cidade não se confunde com município e que o Poder Público municipal é apenas o "gerente" da cidade. Nesse sentido, o art. 182 da Constituição Federal que inaugura a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Poder Público municipal, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

            Bens públicos são os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, na forma da definição do art. 98 do Código Civil. A praça não é um bem público, mas um bem ambiental como visto acima. Logo, o município, o Poder Público municipal, não é o titular da praça, não é o seu proprietário, nem lhe exerce o domínio, sendo mero gestor desse bem difuso, de uso comum do povo, na forma do disposto no art. 182 da Constituição Federal e art. 2º do Estatuto da Cidade.

            Por conta disso, o Poder Público municipal não pode dispor da praça como bem entender devendo atentar ao que determinam os arts. 2º, inciso II e 43 da Lei do Meio Ambiente Artificial (a gestão democrática da cidade por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano).


Notas

            01

Nesse sentido, Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, Saraiva, 2004, p. 20 e ss.

            02

Ver, a respeito, Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Curso de direito ambiental brasileiro, Saraiva, 2004, p. 50.

            03

Cf., Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Estatuto da cidade comentado, RT, 2005, p. 35.

            04

Como esclarece Paulo de Bessa Antunes, "o conceito de uso comum de todos rompe com o tradicional enfoque de que os bens de uso comum só podem ser bens públicos" (Política nacional do meio ambiente: comentários à lei 6.938 de 31 de agosto de 1981, ed. Lúmen Júris, 2005, p. 60).

            05

Assim, ver Rui Carvalho Piva, Bem ambiental, Max Limonad, 2000, p. 33.

            06

Curso de direito ambiental, cit., pp. 55-56.

            07

Cf., Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Estatuto da cidade comentado, cit., p. 42.

            08

Como esclarece Fiorillo, "com a edição da Constituição Federal de 1988, fundamentada em sistema econômico capitalista que necessariamente tem seus limites mostos pela dignidade da pessoa humana (art. 1º, III e IV), a cidade – e suas duas realidades, a saber, os estabelecimentos regulares e os estabelecimentos irregulares – passa a ter natureza jurídica ambiental, ou seja, a partir de 1988 a cidade deixa de ser observada a partir de regramentos adaptados tão-somente aos bens privados ou públicos, e passa a ser disciplinada em face da estrutura jurídica do bem ambiental (art. 225 da CF) de forma mediata e de forma imediata em decorrência das determinações constitucionais emanadas dos arts. 182 e 183 da Carta Magna." (Estatuto da cidade comentado, cit., p. 25).
Sobre o autor
Fernando Augusto Sales

Advogado em São Paulo. Mestre em Direito. Professor da Universidade Paulista - UNIP, da Faculdade São Bernardo - FASB e do Complexo de Ensino Andreucci Proordem. Autor dos livros: Direito do Trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do TST comentadas, pela Editora LTr; Manual de Processo do trabalho; Novo CPC Comentado; Manual de Direito Processual Civil; Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015; Comentários à Lei do Mandado de Segurança e Ética para concursos e OAB, pela Editora Rideel; Direito Ambiental Empresarial; Direito Empresarial Contemporâneo e Súmulas do STJ em Matéria Processual Civil Comentadas em Face do Novo CPC, pela editora Rumo Legal; Código Civil comentado [em 3 vols], Manual de Direito do Consumidor, Direitos da pessoa com câncer, Direito Digital e as relações privadas na internet, Manual da LGPD, Manual de Prática Processual Civil; Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Limitada nas Relações de Consumo, Juizados Especiais Cíveis: comentários à legislação; Manual de Prática Processual Trabalhista e Nova Lei de Falência e Recuperação, pela editora JH Mizuno.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALES, Fernando Augusto. A natureza jurídica da praça à luz da ordem constitucional e sua submissão ao Estatuto da Cidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1376, 8 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9710. Acesso em: 22 dez. 2024.

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