Em 2021, um estudo publicado pela agência We are Social e Hootsuite, demonstrou que mais de meio bilhão de novos usuários ingressaram nas plataformas de mídia social nos últimos 12 meses, elevando o total global para 4,33 bilhões de usuários.1 Os dados são alarmantes, tendo em vista que conforme Khaled Jr., as redes sociais ampliaram o alcance e a intensidade dos pânicos de uma forma que antes seria inimaginável.2
Milton Santos leciona que o fenômeno das redes sociais cria uma falsa ideia de espaço-tempo contraído, e da instantaneidade das informações, que se insere no mito da aldeia global, tendo em vista que a informação sobre o que acontece não vem da interação entre pessoas, mas do que é veiculado pela mídia, uma interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos.3
Em 1982, Christopher Lasch escreveu o livro A cultura do narcisismo. Ao descrever a publicidade procriando um produto próprio, o consumidor, parece ter descrito a atual realidade nas redes sociais. Segundo o historiador, o consumidor está perpetuamente insatisfeito, intranquilo, ansioso e entediado. A publicidade serve não tanto para anunciar produtos, mas para promover o consumo como um modo de vida. Ela educa" as massas para ter um apetite inesgotável não só por bens, mas por experiências e satisfação pessoal.4
Além disso, Lasch explica que a publicidade defende o consumo como a resposta aos antigos dissabores da solidão, da doença, da fadiga, da insatisfação; ao mesmo tempo, cria novas formas de descontentamentos peculiares à era moderna. Joga sedutoramente com o mal-estar da civilização industrial. O consumo promete preencher o doloroso vazio; em consequência, a tentativa de cercar as mercadorias de uma aura de romance; com alusões a lugares exóticos e a vívidas experiências; e com imagens de seios femininos, dos quais fluem todas as bençãos. 5
Nesse sentido, importa destacar que Ferrell explica que a mesma maquinaria da modernidade, que produziu em massa condições cotidianas de tédio, foi creditada como produtora em massa de seu contrapeso e corretivo: um novo mundo de entretenimentos mediados e excitações pré arranjadas, disponível tanto para o funcionário de produção como para o professor. E, no entanto, parece que cada momento de excitação a mais serve apenas para ampliar o vazio rítmico da vida cotidiana.6
Em Vida Líquida, Bauman leciona sobre o consumismo, e seus ensinamentos podem ser aplicados para uma interpretação sobre as redes sociais. Afirma que a economia tem por alvo o consumidor, e tem como volantes a não-satisfação dos desejos e a crença firme e eterna de que cada ato visando a satisfazê-lo deixa muito a desejar e pode ser aperfeiçoado.7 O sociólogo explica que o capitalismo é, na essência, um sistema parasitário.8
Bauman explica que, como todo parasita, o capitalismo pode prosperar durante algum tempo, uma vez que encontra o organismo ainda não explorado do qual pode se alimentar, mas não pode fazê-lo sem prejudicar o hospedeiro, nem sem destruir cedo ou tarde as condições de sua prosperidade ou até de sua própria sobrevivência.9
Quanto ao capitalismo, Khaled Jr. explica que é apenas uma forma de expressão: numerosas outras formas de crime e desigualdade existem, como o patriarcado, o racismo, a ascensão do fascismo, e religiões fundamentalistas e as religiões institucionalizadas.10
Conforme exposto, as redes sociais têm crescido cada vez mais, sendo uma das expressões do capitalismo e do consumismo. Porém, para além disso, Khaled Jr. afirma que pânicos morais viralizam com assustadora rapidez nas redes sociais: o processo de negociação e reconstrução de significado é amplificado de forma difusa, produzindo espirais anteriormente inimagináveis de indignação moral, que convidam de forma sedutora avatares virtuais a participarem de cruzadas morais.11
Além disso, redes sociais digitais se tornaram um locus fundamental para observação e compreensão da cultura digital e da democracia na sociedade contemporânea.12 Nesse sentido, um estudo analisou tipos e formas de discurso de ódio presentes na fanpage do político Jair Bolsonaro, entre os anos de 2013 e 2016 período em que o parlamentar manifestava interesse em concorrer à presidência em 2018.13
Os resultados mostraram o ódio político-partidário como o mais recorrente, seguido pelo discurso sexista, LGBTfóbico e xenofóbico. Além disso, foram encontrados manifestações de abuso contra pessoas com deficiência física ou mental, e preconceitos por aparência, aporofobia, racismo, intolerância religiosa e etariedade.14
Na pesquisa mencionada, o termo comunista foi associado àqueles que comungam de uma ideologia que visa a destruição das famílias, dos valores cristãos e do país. Conspiração/inimigos da nação foi a segunda forma mais utilizada de discurso de ódio. A rede Globo foi rotulada como inimiga da nação, sobretudo quando apoiava causas LGBTQIA+. A Ordem dos Advogados do Brasil e Conferência Nacional dos Bispos também são acusadas de conspiração junto ao governo petista com o intuito de acabar com o Brasil.15
Verificou-se, também, que os estereótipos e generalizações procuraram marcar a diferença entre o comentador e o destinatário. A intencionalidade desse aspecto, por sua vez, parece estabelecer um distanciamento entre classes sociais, espectros ideológicos políticos, de cor/raça, de orientação sexual etc. Por outro lado, a forma Superioridade/Inferioridade/Normalidade marca a posição de fala do comentador em comparação às pessoas e comunidades historicamente marginalizadas.16
Por fim, os comentários odientos na forma de Extremismo Religioso faziam predileção a bandeiras pró-família por meio de um discurso contra ativistas homossexuais e feministas, praticantes e defensores de religiões de matriz africana e os chamados hereges. Temas sensíveis como legalização do aborto, ecumenismo, casamento homoafetivo e igualdade de gênero foram tratados à luz da Bíblia e de preceitos cristãos, com o uso de textos sagrados para acusar, ofender e amaldiçoar os não cristãos ou apoiadores de bandeiras progressistas.17
Silva, Francisco e Sampaio, autores do mencionado estudo, explicam que tanto ameaças quanto incitação à violência, explicitamente, incitavam comportamentos que ultrapassavam as fronteiras do online e poderiam se concretizar em atitudes na vida real.18 A conclusão dos autores está alinhada com o que Hayward leciona:
a tecnologia digital cria o que se poderia descrever como espaços de subjetividade porosos, nos quais os movimentos, feitos através da internet rizomática e hiperlinkada, parecem material ou especialmente insignificantes, mas na realidade, tem consequências tangíveis19
Segundo Hayward, discursos de ódio é agora uma característica comum de comentários e quadro de mensagens.20 Nas palavras de Khaled Jr, a internet produziu um fenômeno inicialmente insuspeitado: deu voz aos imbecis, como disse Umberto Eco. Possibilitou que os piores sensos comuns possíveis e imagináveis sobre a criminalidade e seus significados subitamente ganhassem projeção e notoriedade, fazendo com que o lado mais sombrio da subjetividade humana adquirisse um meio para atrair holofotes na sociedade do espetáculo.21
Machado e Miskolci anaisam o contexto de fortalecimento dos movimentos de direita que apoiaram o impeachment, o Vem pra Rua e MBL, e as lideranças religiosas descontentes com os avanços da igualdade de gênero e direitos sexuais. Os autores concluem que plataformas tecnológicas permitem que campanhas sejam deflagradas na forma histórica das antigas cruzadas morais. 22
Miskolci e Pereira afirmam que no Brasil de nossos dias, a democracia está ameaçada pelo poder de uma interpretação da realidade que opera por meio da criação de inimigos. Além disso, da política para a moral, grupos de interesse passaram a demonizar pleitos de direitos humanos.23
No livro Como as democracias morrem, de Levitsky e Ziblatt, há uma tabela sobre os quatro indicadores de comportamento autoritário, que demonstram que a democracia está em risco: rejeição das regras democráticas do jogo, negação da legitimidade dos oponentes políticos, tolerância ou encorajamento à violência e propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia.24
Diante do exposto, a democracia brasileira está em risco, pois conforme as pesquisas acima mencionadas, as redes sociais têm sido utilizadas como ferramentas de empreendedores morais,, que criam pânico e terror social, como cruzadas morais contra os direitos humanos, visando efetivar seus interesses neoliberais, de direita, patriarcais, xenofóbicos e de LGBTQIA+fobia, adequando-se à tabela criada pelos autores Levitsky e Zibatt.
Importa destacar que conforme Khaled Jr., os pânicos prosperaram quando já existe uma preocupação fortemente estabelecida em um dado grupo social, que se sente ameaçado quando sua moral hegemônica é colocada em questão. Segundo ele, tais condições oferecem terreno fértil para que o pânico seja orquestrado por indivíduos que enxergam em determinados grupos sociais, religiosos, étnicos, políticos ou de gênero, uma ameaça para suas pretensões.25
Os empreendedores morais que criam pânicos nas redes sociais, com a cruzadas morais contra os direitos morais no Brasil, podem ser explicados nas palavras de Khaled Jr., que afirma que para quem somente consegue conviver com o mesmo, a tentação de demonizar o outro é muitas vezes irresistível26
E, ainda, conforme Khaled Jr., a retratação demonizada costuma ser produzida por pessoas que não conseguem lidar com a diferença: desprezam tudo que não compreendem e que não se encaixa em sua visão de mundo, e logo, é interpretado como uma ameaça para a sociedade.27 O autor explica ainda que a repentina ascensão do pensamento reacionário no Brasil contemporâneo fez com que se intensificassem os processos de criminalização da cultura no país.28
Khaled leciona que o ódio encontra terreno fértil para se difundir em tempos de insegurança ontológica e privação relativa. O ressentimento facilmente se volta contra quem luta pela expansão da cidadania, e se manipulado com maestria, transforma-se em ódio de privilegiados contra movimentos negros, feministas e LGBTs.29
Nesse contexto, insere-se a criminologia cultural, pois essa dá especial atenção à cruzadas morais, de criminalização da cultura, que conformam confrontos nos quais imagens demonizadas de criadores, produtos culturais e consumidores são disseminadas no espaço público.30 As cruzadas morais contra os direitos humanos no Brasil como ataque à democracia devem ser vistas pelas lentes da criminologia cultural, tendo em vista seu caráter abertamente engajado, que faz dela um saber comprometido com a justiça social.31
Tendo em vista a velocidade da disseminação das imagens nas redes sociais, os símbolos que criam cruzadas morais contra os direitos humanos, excluindo ainda mais o debate aos direitos das mulheres, dos negros, LGBTQIA+ e de imigrantes, cada vez mais produzirão significados, já que conforme Hayward e Young, (2004: 259), a tela roteiriza a rua e a rua roteiriza a tela.32 Logo, cada vez mais os direitos humanos e a democracia estarão em risco, como em uma sala de espelhos, no meio virtual e real.
A utilização da criminologia cultural no presente trabalho justifica-se na intenção de superar a manifestação cultural neoliberal e preconceituosa nas redes sociais de cruzadas morais contra os direitos humanos, que põem em risco a democracia, já que segundo Hayward e Young33, cultura não é um mero objeto submisso à estrutura econômica, e sim algo dinâmico.
Dessa forma, visa-se transformar a realidade social, tendo em vista seu dinâmico da cultura, demonstrando que os símbolos e significados de cruzadas morais contra os direitos humanos que põem a democracia em risco, devem ser superados, por meio da criminologia cultural, efetivando a justiça social.
1Disponível em: <https://thenextweb.com/news/60-of-the-world-is-online-10-big-takeaways-on-the-state-of-the-internet-in-2021>
2ROCHA, Álvaro Oxley da. FERREL, Jeff. Hayward, Keith. KHALED JR, Salah H. Explorando a criminologia cultural. 2. ed. - Belo Horizonte: Letramento, 2021. p. 192
3SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. 174 p.
4LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983, p. 102.
5Idem, p. 103.
6ROCHA, Álvaro Oxley da. FERREL, Jeff. Hayward, Keith. KHALED JR, Salah H. Explorando a criminologia cultural. 2. ed. - Belo Horizonte: Letramento, 2021. p. 42
7Bauman, Zygmund. Vida líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007 , p. 106
8BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010
9Idem, ibidem.
10ROCHA, Álvaro Oxley da. FERREL, Jeff. Hayward, Keith. KHALED JR, Salah H. Explorando a criminologia cultural. 2. ed. - Belo Horizonte: Letramento, 2021. p. 134
11Idem, p. 136
12SILVA, Luiz Roberto Lopes. FRANCISCO, Rodrigo Eduardo Botelho. SAMPAIO, Rafael Cardoso. Discurso de ódio nas redes sociais digitais: tipos e formas de intolerância na página oficial de Jair Bolsonaro no Facebook. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/gal/a/4krjKThRWZD6MRy8LLLpVhF/>
13Ibidem.
14Ibidem.
15Ibidem.
16Ibidem.
17Ibidem.
18Ibidem.
19ROCHA, Álvaro Oxley da. FERREL, Jeff. Hayward, Keith. KHALED JR, Salah H. Explorando a criminologia cultural. 2. ed. - Belo Horizonte: Letramento, 2021. p. 79
20Idem, ibidem.
21Idem, p. 137.
22MACHADO, Jorge. MISKOLCI, Richard. Das jornadas de junho à cruzada moral: O papel das redes sociais na polarização da política brasileira. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sant/a/q8zsjyJYW3Jf3DBFSzZJPBg/?lang=pt>
23MISKOLCI. Richard. Pereira, Pedro Paulo Gomes. Quem tem medo de Judith Butler? A cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cpa/a/kVfpkxv4mhpf5X6GZpJhLtd/?lang=pt>
24LEVITSKY. Steven, ZIBLATT. Daniel. Como as democracias morrem. 2018, p. 32-34.
25ROCHA, Álvaro Oxley da. FERREL, Jeff. Hayward, Keith. KHALED JR, Salah H. Explorando a criminologia cultural. 2. ed. - Belo Horizonte: Letramento, 2021. p. 191
26Idem, p. 149
27Idem, p. 181.
28Idem, p. 189.
29Idem, p. 198.
30 Idem, p. 135.
31Idem, p. 151.
32Idem, p. 47.
33HAYARD, Keith; YOUNG, Jock. Cultural criminology. In: ______. The Oxford handbook of criminology. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 103-104.