Recentemente, em matéria jornalística publicada pela BBC Brasil sobre funcionários que tinham o seu emprego em risco em razão das tatuagens que ostentavam, relatando terem que tampar os adornos durante o expediente.
Um exemplo é a locadora de veículos Localiza Hertz, em que os funcionários relataram receberem orientações para cobrirem todas as tatuagens com esparadrapos durante o horário de trabalho.
Procurada, a Localiza, que possui cerca de 8 mil funcionários em sete países, diz que não discrimina candidatos com tatuagens, mas confirma a orientação para que seus funcionários cubram os desenhos.
Em nota, a empresa disse que a orientação é que não deixem tatuagem aparente, sempre que possível.
Na 4ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, uma trabalhadora alegou em sua petição inicial ter sido vítima de discriminação durante a contratualidade, tendo que esconder as suas tatuagens com fitas, esparadrapos e meia calças, sendo que as atendentes que passavam por tal condição eram apelidadas, entre os demais funcionários de "atendente múmia". Além disto, alega que constantemente os clientes mesmo lhe perguntavam se ela havia se acidentado, já que estava sempre com "curativos" e recebia tratamento diferenciado.
Em razão do constrangimento, requereu a condenação da empresa ao pagamento dos danos materiais (com os custos extravagantes exigidos pela empresa) e morais pela exposição vexatória.
Em defesa, a Reclamada negou o assédio moral, aduzindo que jamais agiu de forma respeitosa, e que, se fosse o caso, sequer haveria contratado a empregada com tatuagem.
Aduz ainda que a Reclamante, como atendente, passava a maior parte do tempo atrás de um balcão de antedimento, e não era possível visualizar as suas tatuagens que ficavam nas pernas.
A empresa menciona que os colaboradores eram orientados a cobrir apenas as tatuagens que faziam apologia à algo ilícito, bem como referência a clubes de futebol ou outras questões que possam gerar atritos com os clientes, mas que, caso o colaborador não ocultasse, não haveria qualquer penalidade ao empregado.
Com relação ao batom exigido, a empresa impugna as alegações da obreira e ainda questiona, ironizando: "Em relação ao batom, cumpre indagar se, caso a reclamante trabalhasse em qualquer outro lugar ela não usaria maquiagem? Se laborasse em qualquer loja, seja de veículos, roupas, seguros, não passaria batom? Não utilizaria lápis, rímel, blush, sombra, base, dentre outras coisas? Creio que a resposta é sim, ela usaria."
E por fim, aduz que, ainda que fosse uma exigência da empregadora, não se trata de um ato ilícito.
Em audiência de instrução, a testemunha da Reclamante alegou que a empresa exigia a utilização de fita com micropore ou meia calças grossas para esconder as tatuagens.
Já a testemunha da empresa confirmou que "a maioria das pessoas cobria a tatuagem, mas não sabe o motivo". Ocorre que, a própria preposta da Reclamada admitiu que:
"(...) que era sugerido o uso de meia calça pela empresa, é uma demanda da localiza, mas o próprio colaborador, essa demanda é exigida só para as mulheres, pois os homens recebem todo o uniforme inclusive meia; que não tinha problema ter tatuagem, mas era sugerido que a tatuagem fosse coberta, o que era uma situação sugerida pela empresa, mas não acarretava punição; ()".
Em sentença, com relação ao pedido de reparação pelos danos morais em razão da discriminação por possuir tatuagem, inicialmente, a Magistrada frisa o argumento misógino utilizado pela Reclamada em sua defesa, destacando a seguinte fala extraída da contestação:
"No mundo atual, onde as mulheres sustentam um make pesado e delas saltam os cílios postiços, batons de todas as cores, enormes unhas de variados tipos de material, grossas sobrancelhas e outras coisas mais, exceções à regra são as mulheres que vão trabalhar sem passar um batom. () Se não fosse para a reclamada, a reclamante usaria maquiagem em qualquer outro posto de trabalho até porque é jovem, bonita e certamente zelosa pela sua boa aparência. Dizer-se moralmente violada por ter que usar batom vermelho é um tanto quanto exagerado."
Importante ressaltar que o Brasil é signatário da CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Decreto 4.377/2002), obrigando-se, na forma do art. 7º, a:
"adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher; estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher numa base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação; e tomar medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa".
Não obstante as previsões constitucionais existentes contra a discriminação, imperioso mencionar a Recomendação nº 128, de 15/02/2022, do Conselho Nacional de Justiça, recomendando a adoção do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, atendendo ao Objetivo 5 da Agenda 2030 da ONU, que trata de todas as formas de discriminação de gênero.
Portanto, acrescenta a Magistrada que, sem prejuízo do vasto arcabouço normativo, fatores histórico/culturais enraizados na nossa sociedade patriarcal perpetuam a discriminação contra a mulher, com a adoção do estereótipo misógino como consta na peça contestatória e transcrito nesta sentença, observou-se que ao homem não havia imposição de uso de meia calça ou uso de material para cobrir tatuagem nas pernas, já que era possível a utilização de calça para trabalhar.
Assim, cabia ao empregador coibir a prática de assédio moral e garantir que as mulheres sejam respeitadas, evitando práticas misóginas, que afetam a dignidade humana e criam um ambiente humilhante para as trabalhadoras.
Portanto, diante do conjunto probatório dos autos, a Juíza do Trabalho Katarina R. Mousinho de Matos Brandão reputou por caracterizado o ato ilícito, ensejador do dano moral in re ipsa, condenado a empresa ao pagamento de R$ 14.275,00 a título de danos morais.
Da decisão cabe recurso.
Autos: 0000324-42.2021.5.10.0004