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A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no cenário da Emenda à Constituição nº 45/2004:

notas acerca da compulsoriedade do novo regime e da denúncia dos tratados

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Agenda 20/04/2007 às 00:00

4 Cenário pós-emenda constitucional nº 45/2004

O contexto acima delineado, era o reinante quando da entrada em vigência da emenda à Constituição nº 45/2004. A doutrina, no que concernia com as normas emanadas de tratados de direitos humanos assinados pelo Brasil, debatia-se em posições que variavam desde a paridade (adotada pelo STF), passando pela que defendia a supra-legalidade mas infra-constitucionalidade, chegando até a sempre defendida por este autor, qual seja, a da hierarquia materialmente constitucional (ainda que se admitisse que, formalmente, tais normas não faziam parte da Constituição escrita).

4.1 O parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal

A citada emenda constitucional, de 30 de dezembro de 2004, acrescentou, por meio de seu artigo 1º, um terceiro parágrafo ao artigo 5º do texto constitucional, verbis:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Certamente, a intenção do legislador foi desatar a intrincada celeuma em torno do grau hierárquico atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil. Todavia, tem se prestado o dispositivo constitucional acrescentado mais para a disseminação de dúvidas do que para a fixação de certezas acerca do ponto.

Já se deixou pontuado, no intróito, que este artigo – o qual não tem a pretensão de esgotar a contenda – fixaria os olhos em dois pontos individuados desse rol de dúvidas trazido pelo advento do novel parágrafo. Assim, remete-se o leitor a obras diversas acerca da matéria, em pretendendo ele se debater sobre as questões aqui não respondidas. [03]

Passa-se, pois, a abordar as dúvidas objeto deste ensaio.

4.2 Obrigatoriedade ou não da adoção do rito mais severo

A primeira pergunta que se propõe a responder, na problemática proposta, é a que pertine com a cogência do procedimento reforçado das emendas constitucionais na incorporação dos tratados internacionais que versem direitos humanos assinados posteriormente à entrada em vigência do parágrafo 3º do artigo 5º do texto constitucional. Em resumo: a novel sistemática trazida pela emenda à Constituição nº 45 é obrigatória aos tratados assinados posteriormente à sua vigência, ou trata-se de faculdade, tão-somente? [04]

A questão tem pertinência, sim, e justamente pela sua importância não merece maiores delongas para ser resolvida. Em nosso entender, aquela sistemática automática determinada pela interpretação conjugada dos artigos 4º, inciso II, e 5º, parágrafo 2º, ambos da Constituição Federal (esmiuçada no item 3.2 supra), não mais vigora, em face do novo regramento [05]. Logo, afigura-se óbvia a circunstância de que nova sistemática é, sim, imperativa.

Parece-nos que há sim pelo menos espaço para uma interpretação teleológica e sistemática em prol da compulsoriedade do procedimento reforçado das emendas constitucionais. Com efeito, tendo em mente que a introdução do novo § 3º teve por objetivo (ao menos, cuida-se da interpretação mais afinada com a ratio e o telos do § 2º) resolver – ainda que remanescentes alguns problemas – de modo substancial o problema da controvérsia sobre a hierarquia dos tratados em matéria de direitos humanos, antes incorporados por Decreto Legislativo [06] e assegurar aos direitos neles consagrados um status jurídico diferenciado, compatível com sua fundamentalidade, poder-se-á sustentar que a partir da promulgação da Emenda nº 45/2004 a incorporação destes tratados deverá ocorrer pelo processo mais rigoroso das reformas constitucionais. (SARLET, 2006, p. 80, grifos originais).

Pode parecer estranho ao leitor que quem defendia, alhures, a incorporação automática para os tratados de direitos humanos (item 3.2), agora afirme que, pós-emenda constitucional, a incorporação deva ocorrer pelo modo mais conservador das reformas da Constituição. Esclareço, todavia, que, sem embargo de minha posição sempre afinada à incorporação automática via cláusula de abertura plena (parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal), a verdade é que restou impossível sustentá-la, mesmo para os tratados que envolvem direito humano, após o advento da emenda nº 45.

Com efeito, de certo modo, a inovação constitucional em comento mitigou o alcance da citada cláusula material de abertura plena. Em contrapartida – se dificultou sobremaneira o modo de incorporação (3/5 dos votos de cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos) –, certifica-se, agora, às normas de direitos humanos emanadas do instrumento internacional incorporado grau indiscutível de norma constitucional (e fundamental, por óbvio), ainda que de espécie derivada.

Assim, a celeuma histórica no âmbito da qual se digladiavam monistas e dualistas – em cujo cerne este autor sempre se pautou pelo "monismo internacionalista" kelseniano – restou esvaziada à custa do sacrifício do sistema automático de incorporação, previsto na interpretação conjugada do parágrafo 2º do artigo 5º com o inciso II do artigo 4º, ambos da constituição Federal (sistema esse delineado no item 3.2 supra).

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4.3 A questão em torno da denúncia dos tratados de direitos humanos. Cenário inalterado, mesmo após a entrada em vigência da emenda constitucional nº 45/2004.

Essa questão sempre foi tormentosa àqueles que – como nós – defendiam a incorporação automática e, mais do que ela, a inclusão dos direitos materialmente fundamentais incorporados como parte dos limites materiais à reforma da Constituição (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV) [07]. Havia tormento porque sempre se teve de ouvir o argumento contrário – e majoritário – da doutrina e da jurisprudência [08] pátrias no sentido de que, em sendo a vontade do Estado signatário, a denúncia do pacto – instituto de direito internacional público – operava-se incontinenti.

Piovesan chegava a afirmar, na época, que, "[...] embora os direitos internacionais sejam alcançados pelo art. 60, § 4º, e não possam ser eliminados via emenda constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos são suscetíveis a denúncia por parte do Estado signatário." (2002, p. 94). Mais adiante, complementava: "Os direitos internacionais poderão ser subtraídos pelo mesmo Estado que os incorporou, em face das peculiaridades do regime de direito internacional público." (2002, p. 94-95).

Imagino que o leitor, a essa altura, talvez ainda não tenha em mente a pertinência do ponto. Explica-se: é que alguns doutrinadores [09] têm afirmado que foi o cenário pós-emenda constitucional nº 45/2004 que determinou (mais precisamente o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, por ela incluído) a impossibilidade de se denunciar o tratado de direitos humanos cujas normas já haviam sido incorporadas ao ordenamento interno constitucional (posto que direito materialmente fundamental). Ilustra-se com Mazzuoli:

A impossibilidade de denúncia dos tratados de direitos humanos já tinha sido por nós defendida anteriormente, com base no status de norma constitucional dos tratados de direitos humanos, que passariam a ser também cláusulas pétreas constitucionais. Sob esse ponto de vista, a denúncia dos tratados de direitos humanos é tecnicamente possível (sem a possibilidade de se responsabilizar o Presidente da República nesse caso), mas totalmente ineficaz sob o aspecto prático, uma vez que os efeitos do tratado denunciado continuam a operar dentro do nosso ordenamento jurídico, pelo fato de eles serem cláusulas pétreas do texto constitucional. No que tange aos tratados de direitos humanos aprovados pelo quorum do § 3º do art. 5º da Constituição, esse panorama muda, não se admitindo sequer a interpretação de que a denúncia desses tratados seria possível mas ineficaz, pois agora ela será impossível do ponto de vista técnico, existindo a possibilidade de responsabilização do Presidente da República caso venha pretender operá-la. (2006, p. 108, grifos originais).

Ora, abstraída a reconhecida sapiência do autor citado, é mister reconhecer que tal impossibilidade era anterior à entrada em vigência do já tão mencionado parágrafo 3º do artigo 5º, não se havendo de ventilar "possibilidade técnica", mas "total ineficácia". O regime anterior ao advento da emenda constitucional em apreço (interpretação conjugada do parágrafo 2º do artigo 5º com o inciso II do artigo 4º, tudo da Constituição Federal), com efeito, nunca admitiu a possibilidade da denúncia do tratado.

Denunciar o tratado significa, precisamente, romper com a pactuação; é o querer retirar-se do tratado; em suma: o Estado arranca dos seus titulares – que não são só os Estados, como já se pontuou – aqueles direitos materialmente fundamentais incorporados por aquele mesmo Estado, decorrentes única e exclusivamente de uma pactuação na esfera internacional. No dizer de Accioly, a denúncia "é o ato pelo qual uma das partes contratantes comunica à outra, ou às outras, a sua intenção de dar por findo esse tratado, ou de se retirar do mesmo." (1993, p. 136). A propósito, para que possa ser exercitada, cada tratado deve autorizá-la através de cláusula específica, como prevê a Convenção de Viena.

Ocorre, entretanto, como bem enfatiza Bahia, "que vigora, em direito internacional, o princípio de que não são suscetíveis de denúncia os tratados que digam respeito a direitos humanos." (2000, p. 158).

A denúncia constitui-se, sim, no meio adequado à desobrigação dos deveres contraídos por conta de um tratado, mas por conta de um tratado relativo a matéria ordinária; no que tange aos tratados de direitos humanos, a denúncia não opera seus efeitos.

Tal entendimento deriva da regra de direito imperativo (apontada pela doutrina) e positivada no artigo 56, § 1º, letra "b", da Convenção sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969), que proíbe a denúncia ou retirada a não ser que este direito "possa ser inferido da natureza do tratado". E, tratando-se de direitos humanos, não se poderia inferir a possibilidade de que, uma vez afirmados, alcançados e defendidos, pudessem vir a ser, num momento subseqüente, negados e esquecidos. (BAHIA, 2000, p. 158).

Efetivamente, ter-se-ia uma situação absurda: num primeiro momento, são incorporados à gama de direitos dos indivíduos direitos materialmente fundamentais, de matriz internacional, protegidos, inclusive, pelo manto de intangibilidade do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal, e cuja aplicação seria imediata; numa situação seguinte, simplesmente, segundo a melhor conveniência para o chefe do Poder Executivo, tais direitos seriam arrancados e jogados de volta à arena internacional.

Esse princípio, na medida em que é elevado à categoria de direito internacional imperativo (jus cogens), inviabiliza até mesmo a expressa previsão de denúncia, contida em tratado sobre direitos humanos, que deve, assim, ser tida por inválida, já que, como assinala o artigo 53 da Convenção sobre Direito dos Tratados, "é nulo um tratado que, na época de sua conclusão, esteja em conflito com uma norma imperativa de direito internacional geral". Este é definido pela Convenção como "uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados em sua totalidade, como uma norma da qual não se admite derrogação e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional", também cogente. Assim, seria irrelevante a previsão de denúncia contida em vários tratados internacionais de direitos humanos.

Nessa mesma linha de consideração, sustenta-se que a disposição interna, mesmo de natureza constitucional, não poderá ser observada se contrariar preceito em vigor de direito internacional básico, geral (jus cogens) ou de direito internacional convencional. (VALLADÃO apud BARROSO, 1995, p. 28).

Essa postura, de se retirar mediante denúncia direitos materialmente fundamentais dos indivíduos, sem sombra de dúvidas, depõe contra o princípio orientador do Brasil na arena internacional, qual seja, o da prevalência dos direitos humanos.

Essa realidade – de impossibilidade de denúncia quanto ao tratado de direitos humanos já incorporado –, portanto, não é nova, não adveio à arena jurídica com a entrada em vigência da emenda à Constituição nº 45/2004, tendo sua gênese, sim, no regime anterior à mutação constitucional, como sustentado. O que a emenda pode ter feito, é bem verdade, é reforçado, tão-somente, aqueles argumentos já robustos e insuperáveis.


5 Conclusão

De tudo o que foi exposto no decorrer deste artigo, infere-se que é inconcebível, no atual estágio de desenvolvimento do mundo, a concepção que vê as ordens jurídicas internas e internacional como adversárias, repelindo-se. Essa postura, que empresta ares de impenetrabilidade aos ordenamentos domésticos, desconsidera a circunstância de que o direito internacional, quando aborda direitos humanos, pulveriza as ordens internas com suas diretrizes de proteção.

Para além disso, a repulsa à aplicação do direito externo contrariava, no ordenamento constitucional pré-emenda à Constituição nº 45/2004, mandamento constitucional que determina a incorporação automática dos tratados que envolvem direitos humanos. Então, no sistema misto que se colocava, assinado um tratado internacional de direitos humanos, deveriam eles ser incorporados automaticamente ao acervo de direitos fundamentais dos indivíduos, sem as delongas da aprovação congressual e da promulgação executiva, o que, lamentavelmente, nunca ocorreu.

Ainda, embora o parágrafo 2º do artigo 5º da Carta vigente, efetivamente, autorizasse a recepção das normas oriundas de tratados de direitos humanos em patamar hierárquico equivalente ao das normas constitucionais, revelando-se verdadeiros direitos materialmente fundamentais, a doutrina majoritária e a jurisprudência dominante insistiam em conservar um posicionamento que – conforme já se fez referência no primeiro parágrafo desta conclusão – não se coaduna com as exigências da sociedade atual. Mesmo assim, firmava-se entendimento de que os tratados internacionais referentes aos direitos humanos, uma vez ratificados e incorporados à ordem interna, gozavam de status de norma constitucional, constituindo-se em direitos e garantias (conforme o caso) materialmente fundamentais. Como decorrência desse posicionamento, incidiam sobre aqueles direitos internacionais oriundos de tratados de direitos humanos um dos atributos especiais dos direitos fundamentais: a proteção de cláusula pétrea.

Com efeito, a consagração dos direitos fundamentais como limite material ao poder de reforma da Constituição conduz a que esses direitos de matriz internacional só possam ser retirados da esfera de direitos dos indivíduos por ocasião de nova Assembléia Constituinte. Destarte, não se poderia ventilar a possibilidade de as emendas à Constituição alcançarem tais direitos, ainda que, agora, sejam incorporados através desse rito. Ademais, estar-se-ia permitindo que, por via de emenda à Constituição, restasse modificado o teor dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, o que soaria sobremaneira absurdo. Ainda a despeito da revogabilidade dos direitos enunciados nos tratados de direitos humanos incorporados pelo Brasil, a denúncia do tratado, meio tão propalado pela doutrina como o adequado para sustar a obrigação internacionalmente assumida, já não se operava, no regime anterior ao da emenda à Constituição nº 45/2004, quando o pacto versasse sobre direitos humanos, entendimento que se extraía do artigo 56, parágrafo 1º, da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Conquanto se tenha consciência de que o Brasil não ratificou (ainda) essa convenção, esse preceito coage mesmo aqueles que ainda não se obrigaram na medida em que se trata de jus cogens (direito imperativo).

Por fim, resta pontuar a obrigatoriedade, sim, da aplicação do rito previsto no parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição da República quanto aos tratados internacionais de direitos humanos firmados a partir da sua entrada em vigência.

Sobre o autor
Leandro Caletti

especialista pela Universidade Castelo Branco (UCB), advogado e assessor jurídico da União em Passo Fundo (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALETTI, Leandro. A incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos no cenário da Emenda à Constituição nº 45/2004:: notas acerca da compulsoriedade do novo regime e da denúncia dos tratados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1388, 20 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9754. Acesso em: 23 nov. 2024.

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