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RELAÇÃO ESTADO-IGREJA, LAICIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA: análise crítica da ADI nº 4439 do Supremo Tribunal Federal sobre o ensino confessional em escolas públicas

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Agenda 06/05/2022 às 06:02

Ari Timóteo dos Reis Júnior

Procurador da Fazenda Nacional. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Tributário. Professor de Direito. Mestrando em Ciências Jurídicas.

1) INTRODUÇÃO

O objeto do presente estudo é o desenvolvimento de conceitos referentes à relação entre Estado e Igreja, laicidade e liberdade religiosa, partindo da análise crítica do entendimento jurisprudencial advindo da ADI nº 4439, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 27/09/2017, que diz respeito à compatibilidade do ensino religioso em escola pública com às exigências da liberdade religiosa e da laicidade do Estado, conforme regramento previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O ensino religioso é oferecido nas escolas públicas brasileiras por força de previsão da constituição brasileira (art. 210, § 1º), regulamentada pela da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e também nos termos do art. 11, § 1º do Acordo Brasil-Santa Sé, promulgado pelo Decreto nº 7.107/2010, que expressamente diz que o ensino será católico e de outras confissões religiosas. Tal ensino religioso é de matrícula facultativa e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Ademais, possui natureza confessional, sendo vinculado às diversas crenças religiosas, com admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas, embora a legislação vede o proselistismo ao mesmo tempo em que exige que seja assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do país. No processo de controle de constitucionalidade citado acima, impugna-se a possibilidade de ensino religioso confessional em escolas públicas, admitindo-se apenas o não confessional, tendo em vista as exigências da liberdade religiosa e da laicidade do Estado que, sob essa ótica, impõe uma postura neutra do Estado em relação às diferentes orientações diante do fenômeno religioso e determina o respeito à liberdade e à igualdade do indivíduo no aspecto religioso, que ficariam comprometidos, especialmente por se estar diante de crianças, que não seriam tratadas com igual respeito e consideração, haja vista que privilegiar-se-ia as crenças majoritárias, que acabariam por prevalecer, sem uma real liberdade concreta de fazer escolhas, num processo educacional que se mostraria excludente e estigmatizante.

Por 6 votos à 5, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o texto constitucional prevê o ensino religioso de natureza confessional. Essa conclusão não foi considerada incompatível com a laicidade do Estado ou à liberdade religiosa (inclusive a de não seguir nenhuma religião agnósticos e ateus), mas em conformidade com elas, que foram interpretadas como a impossibilidade do Estado adotar, privilegiar, perseguir ou fundamentar seus atos em uma religião, bem como interferir, obstar ou dificultar a opção das pessoas em relação ao fenômeno religioso. Houve a concretização da dimensão jurídica desses preceitos, assentando-se, em apertada síntese, que não significam um Estado laicista ou antireligioso, mas um Estado que reconhece o espaço religioso numa perspectiva pluralista, que aceita o convívio em sala de aula das diferentes perspectivas, sem imposição e sem dirigismo estatal, permitindo a manifestação religiosa em espaços públicos de tolerância e respeito mútuos, sem que se possa impor um ponto de vista contrário ou a favor das religiões ou tentar impedir aqueles que professem uma fé de exercê-la ou desenvolvê-la em espaços públicos, de modo que o ensino religioso facultativo, ministrado de acordo com a confissão do aluno, ao invés de ir contra, promove e constitui direito subjetivo individual inerente à liberdade religiosa.

Nos propomos a analisar criticamente esse entendimento jurisprudencial, desenvolvendo o tema em profundidade suficiente que nos permita uma tomada de posição quanto ao acerto ou desacerto da tese. Com isso, queremos dizer que atribuir a última palavra ao juiz não é o fim do raciocínio pertinente à questão, nem nosso ponto de chegada, mas se insere em um leque mais amplo. À nós, parece que, jutamente com o que diz NOEL STRUCHINER, o direito não é meramente aquilo que os juízes decidem[1] e que, talvez, devéssemos refletir se o Direito deva ser encarado como um receptáculo vazio a ser preenchido por qualquer conteúdo por parte de acadêmicos e juízes. Seguem as palavras do autor:

Um típico argumento cético em relação às regras jurídicas é armado da seguinte forma: como em qualquer sistema jurídico desenvolvido, existe um órgão judicial cujo poder de decisão é supremo (a decisão tomada por ele será a decisão final), então, mesmo que essa corte suprema não recorra às regras jurídicas estabelecidas, nada poderá ser feito, e as decisões desses órgãos vão vigorar ainda assim. A conclusão dos realistas que adotam esse argumento é a de que as regras jurídicas não têm um papel fundamental no processo decisório, e que o direito é na verdade aquilo que os juízes determinam como sendo o direito. Para os realistas, se o direito é aquilo que os juízes determinam como sendo o direito, se todo ato decisório é um ato de criação do direito, então não faz sentido afirmar que eles são falíveis.

Apesar de o juiz ter a palavra final, podemos afirmar que ele está errado. Não é porque a sua palavra é a palavra final que ele será infalível. O simples fato de podermos afirmar que o juiz está errado demonstra que o direito não é meramente aquilo que os juízes decidem. A melhor explicação para a nossa capacidade de reconhecer o erro é a de que a linguagem do direito possui um significado compartilhado e podemos, em um grande número de casos, afirmar que ele não está sendo observado[2]

Como ensinava HART, ao trazer uma analogia entre regras jurídicas e decisões judiciais de um lado e, de outro lado, as regras do críquete e o jogo da discricionariedade do marcador, os provimentos jurisdicionais, apesar de sua autoridade, podem estar descolados do Direito e, se assim for, não teríamos mais uma aplicação jurídico-normativa, mas a imposição da vontade do próprio julgador. Confira-se:

Podemos distinguir um jogo normal de um jogo de discricionariedade do marcador simplesmente porque a regra de pontuação, embora tenha, como outras regras, a sua área de textura aberta em que o marcador deve exercer uma escolha, possui contudo um núcleo de significado estabelecido. É deste núcleo que o marcador não é livre de afastar-se e que, enquanto se mantém, constitui o padrão de pontuação correta e incorreta, quer para o jogador, ao fazer as suas declarações não-oficiais quanto ao resultado, quer para o marcador nas suas determinações oficiais. É isto que torna verdadeiro dizer que as determinações do marcador não são infalíveis, embora seja, definitivas. O mesmo é verdade quanto ao direito.

Até um certo ponto, o fato de que certas determinações dadas por um marcador são claramente erradas não é incoerente com a continuação do jogo: contam tanto com o as determinações que são obviamente corretas; mas há um limite quanto à medida em que a tolerância face às decisões incorretas é compatível com a existência continuada do mesmo jogo e isto tem uma importante analogia jurídica. O fato de as aberrações oficiais ou excepcionais serem toleradas não significa que o jogo de críquete ou de basebol já não esteja a jogar-se. Por outro lado, se estas aberrações forem frequentes ou se o marcador repudiar a regra de pontuação, há de chegar a um ponto em que, ou os jogadores não aceitam já as determinações aberrantes do marcador ou, se o fazem, o jogo vem a alterar-se; já não é críquete ou basebol mas discricionariedade do marcador; porque um aspecto definidor destes outros jogos é que, em geral, os seus resultados sejam determinados da forma exigida pelo significado simples da regra, seja qual for a latitude que a sua textura aberta possa deixar ao marcador. Em certas condições imagináveis, deveríamos dizer que, na verdade, o jogo que estava a disputar-se era o da discricionariedade do marcador, mas o fato de em todos os jogos as determinações deste serem definitivas não significa que isto constitua tudo aquilo que os jogos são. [3]

2. A NORMA CONSTITUCIONAL PADRÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL E O PROPÓSITO DA ADI Nº 4439

Os dispositivos normativos envolvidos são: o art. 33 da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e art. 11, § 1º do Acordo Brasil-Santa Sé (Decreto nº 7.107/2010), que são o objeto do controle de constitucionalidade; perante o art. 210, § 1º, c/c art. 5º, V, c/c art. 19, I, todos da CF/88, que funcionam como parâmetro para o controle de constitucionalidade. Os preceitos constitucionais estão redigidos nos seguintes termos:

Art. 5º. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Art. 210. § 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Desses dispositivos constitucionais é que deve ser extraída a norma nuclear para as relações Igreja-Estado e para a liberdade religiosa no Brasil. Observe que, ao contrário de constituições como a portuguesa[4], embora não diga expressamente que religião e Estado estão separados, isso decorre da exigência de não manter relações de dependência ou aliança com representantes das confissões religiosas, mesmo que ressalvada a colaboração de interesse público, ressalva esta determinante e que dará toda a tônica para o modo de interação entre religião e poder temporal no ordenamento jurídico brasileiro.

Os objetos de controle de constitucionalidade são os seguintes:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.   

§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. 

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (Lei nº 9394/96)

Art. 11. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação. (Acordo Brasil-Santa Sé)

Em uma primeira aproximação, já é fácil concluir que o ensino religioso deve estar presente na escola pública, porque foi previsto em uma norma constitucional originária que, por esse motivo, não se sujeita à controle de constitucionalidade. Com toda certeza, esse fato não impede a problematização e o debate acerca de como deveria ser o regramento do assunto com vistas à conformação da sociedade que pretendemos no Brasil, das consequências de um modo de relação entre poder religioso e poder político implicado no assunto e seus reflexos para os indivíduos, mas esta seria uma discussão de lege ferenda. Então, de lege lata, o que pode ocorrer é uma discussão acerca de como essa expressão ensino religioso deve ser interpretada à luz do sistema constitucional como um todo e é exatamente essa a discussão travada na ADI nº 4439: estaria previsto o ensino confessional, portanto, dos dogmas de fé, ou o referente seria um ensino não confessional, no sentido que parece coincidir com ciência da religião, história das religiões, filosofia das religiões etc., não envolvendo a transmissão dos dogmas, mas a análise externa das religiões?

A previsão de ensino religioso no texto constitucional brasileiro já é uma tradição que vem sendo seguida pelas diversas constituições do país. A Constituição brasileira de 1934 já estabelecia em seu art. 153 que o ensino religioso seria de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais ou responsáveis, e constituiria matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais ou normais. A Constituição de 1937, art. 133, estatuia que o ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos. Por sua vez, a Constituição de 1946, art. 168, V: O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, e de matrícula faculativa, e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal, ou responsável. A Constituição de 1967, em seu art. 168 prescrevia que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio[5].

Na verdade, parece ser de clareza mediana que o sentido da expressão ensino religioso utilizado pela CF/88 seja realmente de um ensino religioso confessional, mesmo porque, de outro modo, não teria sentido que fosse facultativo, e foi exatamente nesse sentido que foi editada tanto o art. 33 da Lei nº 9.394/96 como, sem sombras de dúvidas, o Acordo Brasil-Santa Sé. Logo, admitimos que se possa dizer que não se concorda que exista o ensino religioso confessional nas escolas públicas, mas não se pode dizer que não tenha sido previsto tanto pela constituição como pela legislação infraconstitucional.

É preciso ter clareza nesse ponto ao se confrontar a ADI nº 4439 para fins de análise jurídico-normativa. Honestamente, essa ação não foi proposta com o objetivo puro e simples de realização de controle de constitucionalidade da Lei nº 9.394/96 e do Acordo Brasil-Santa Sé frente ao que já se encontrava previamente estabelecido pela CF/88, mas com o propósito de proceder à uma mudança da norma[6] constitucional através da via judicial, especificamente mediante uma reinterpretação do art. 210, § 1º, CF/88, no que se denominada mutação constitucional. Portanto, o sentido da ADI nº 4439 é buscar um ativismo judicial por parte do Supremo Tribunal Federal para que, ao invés de se submeter a alteração da disciplina do assunto ao crivo do Congresso Nacional, atingir esse objetivo em uma ação judicial que, conquanto possa e deva ter essa dimensão, não pode descambar para o excesso e para o arbítrio, nem pode, como advertiu HART na lição transcrita acima, substituir as regras do jogo pelas regras da vontade do próprio julgador.

Não colocaremos em debate a questão do papel, legitimidade e limites do Poder Judiciário nas democracias atuais, porque o presente estudo não comportaria tal aprofundamento e nem é esse o escopo proposto, razão pela qual o fizemos brevemente apenas por entender necessário que sempre se deve ter em conta o contexto externo e as perspectivas da decisão judicial a ser analisada.

Cientes de que ainda haverá muito a ser pesquisado e debatido sobre o aspecto jurídico-normativo da relação entre Estado e religião nas sociedades atuais e suas perspectivas futuras, seguem nossas considerações.´

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3. DO VOTO VENCIDO

Dialética é um método cujo foco é a contraposição e contradição de ideias que levam a outras ideias, havendo um embate entre perspectivas diferentes sobre o mesmo tema com o objetivo de estabelecer um raciocínio mais apurado e uma conclusão mais sólida. Nesse sentido, embora o voto vencido não forme jurisprudência, é importante diretriz para compreensão e esclarecimento da ratio decidendi que prevaleceu no tribunal. Ademais, a correção do entendimento condutor do acórdão pode perfeitamente se buscada na inadequação da posição antagônica ou, em sentido contrário, pode ser infirmada pela solidez e justeza do voto vencido.

A posição que ficou vencida no STF está bem representada pelo voto do Min. Luís Roberto Barroso, que concluiu que a conciliação entre laicidade e ensino religioso somente seria possível se afastada a possibilidade de ensino confessional em escolas públicas.

Para essa conclusão, constrói-se uma noção de laicidade a partir do art. 19, I, CF/88 e, a partir dela, extrai-se três corolários ou decorrências. A primeira seria a exigência de separação formal entre Estado e Igreja que, segundo a ótica eleita, não seria observada diante da existência de ensino religioso em escolas públicas. Não há um desenvolvimento teórico mais aprofundado ou maiores explicações, sendo simplesmente utilizado o raciocínio de que a seperação entre Estado e Igreja não admite o ensino religioso confessional[7]. Ora, essa conclusão não é uma decorrência lógica que prescinda de maiores fundamentações, de modo que, na forma como foi apresentada, aparenta-se mais como uma pressuposição do que uma conclusão perfeitamente fundamentada.

A segunda decorrência extraída da laicidade seria uma noção de neutralidade que, na perspectiva adotada, se identificaria tanto com a necessidade de tratamento igualitário às diversas confissões religiosas, como também com a exigência de não interferência no sentido de não embaraçar as religiões e, ainda, com a necessidade do Estado não atuar com base em critérios religiosos. Essa noção um pouco confusa de neutralidade, que parece estar embaraçada com outros conceitos distintos, serve para que se diga que quando o Estado permite que se realize a iniciação ou o aprofundamento dos alunos de escolas públicas em determinada religião, ainda que sem ônus aos cofres públicos, tem-se por quebrada qualquer possibilidade de neutralidade. Ocorre que, a adequada compreensão da neutralidade, que ficará mais clara adiante quando formos tratar do conceito de neutralidade de forma mais abrangente e não do conceito construído no voto, não traz a consequência afirmada. Além disso, é bem controverso, para não se dizer equivocada, que o ensino religioso em escolas públicas constituiria necessariamente um favorecimento, perseguição, embaraço às religiões[8] ou adoção de critérios religiosos para atuação do Estado, como se demonstrará mais à frente do presente articulado.

Por fim, mesmo reconhecendo a liberdade religiosa como direito autônomo, ela também é colocada como decorrência da laicidade. Da dimensão objetiva da liberdade religiosa, corretamente (do ponto de vista adotado nesse estudo) foi extraído o dever do Estado de promover a tolerância e o respeito mútuo entre os adeptos de diferentes concepções religiosas e não religiosas, de modo a prevenir a discriminação e assegurar o pluralismo religioso. No entanto, a partir daí, e então se inicia o equívoco do voto vencido, parece ser incorreto dizer que o ensino religioso confessional em escolas públicas constituiria uma ofensa à liberdade religiosa porque: (a) existiriam crenças não representadas nas aulas; (b) existiria um estímulo às confissões religiosas majoritárias; (c) que os adeptos de confissões minoritárias ficariam excluídos e estigmatizados; e que (d) potencializaria um sentimento da minoria pela necessidade de aceitação da maioria religiosa, o que esbarraria no livre exercício da escolha espiritual[9]. Todas essas preocupações e conjecturas (pois são isso que elas são), se eventualmente ocorrerem, parecem não estar propriamente ligadas à existência de ensino religioso confessional nas escolas públicas em sua relação com a laicidade, a liberdade religiosa e a separação Estado-Igreja (se o ensino religioso é juridicamente previsto e válido, em termos jurídicos), mas à outras circunstâncias que não decorrem diretamente e imediatamente do modelo jurídico adotado.

O voto vencido parece tendencialmente alinhado com à perspectiva do iluminismo racionalista acerca do fenômeno religioso, especialmente na sua vertente francesa oitocentista de separação entre Estado e igreja, o que traz diversos problemas à liberdade religiosa incompatíveis com o modelo que se pretende ter atualmente. Outrossim, conquanto tenha tratado coerentemente de alguns conceitos e ideias ligadas à liberdade religiosa, notadamente quanto à tolerância, o pluralismo religioso e à não aversão estatal ao fenômeno religioso, ao descer às conclusões acaba trazendo consequências não permitidas e talvez opostas à tais conceitos, perdendo-se em problemas práticos referentes à implementação do ensino, acabando por se avizinhar, também na prática, ao laicismo.

Os problemas práticos realmente são preocupantes. Quando indica que o ensino pode ser ministrado de forma transversal pelo próprio professor da turma e não como disciplina específica; quando alerta que houve contratações de professores de ensino religioso por concurso público, remunerados pelo Estado, sendo reservadas a maioria das vagas às religiões majoritárias; quando informa que o resultado da disciplina pode ser considerado para promoção do aluno de série; quando considera que a carga horária do ensino religioso pode vir a ser computada na carga horária mínima exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação; quando aponta dificuldades em se assegurar o ensino das confissões minoritárias; quando relatada abusos e discriminação de cunho religioso para com as religiões minoritárias; quando ressalta a preocupação com a influência que a maioria exerceria sobre as crianças de opções religiosas minoritárias etc.; todas essas circunstâncias são de fato um problema relevante e podem ser ofensivas à liberdade religiosa. Todavia, o problema não reside na existência do ensino religioso nas escolas públicas, ou sua compatibilidade com a separação Estado-Igreja, laicidade e liberdade religiosa, mas, como o próprio voto menciona, com a sua implementação prática, o que é algo totalmente distinto. Em síntese, todos os problemas apontados no voto não são do ensino religioso, mas de acontecimentos que se verificam em torno dele e que com ele não se identificam.

Destarte, a solução não está em confinar a religião à privacidade ou vida privada do indivíduo, eliminando-a do espaço público para se evitar problemas, porquanto a religião não é algo que se sujeite à mera tolerância do Estado, pelo contrário, o Estado tem, não uma permissão, mas sim o dever de assegurá-la, mormente em razão da dimensão objetiva do direito fundamental à liberdade religiosa. Logo, considerando que os problemas não residem no ensino religioso em si, não faz sentido eliminá-lo para que não sobrevenham complexidades e desafios decorrentes da sua necessária implementação. Isso seria o mesmo que sacrificar um direito para que não haja dificuldades na implementação desse mesmo direito, o que, diga-se, é um contrassenso em termos jurídicos.

Se o ensino religioso transversal é problemático, e ele realmente é, deve ser vedada esta forma de ministrar a disciplina religiosa; se tem havido casos de abusos e discriminações, que se punam os responsáveis, suspendam da escola, expulsem ou encaminhe à questão ao Poder Judiciário para os processos legais; se o modo de seleção dos professores representa favorecimento à determinadas confissões, que se altere o modo de seleção; se o ensino religioso tem sido considerado para carga horária mínima ou para promoção de série pelo aluno, que se deixe claro que assim não pode ser etc. No entanto, esses desvios na implementação não são inerente e nem servem de fundamento para proibir-se o ensino religioso. Apontar-se nisso um óbice seria, como dito acima, o mesmo que sacrificar-se um direito porque sua implementação é custosa. Pois bem, pode até ser custosa, mas é um direito e, como tal, deve ser implementado e não abandonado.

Ademais, a questão da pressão da identidade cultural da maioria sobre a minoria não é um problema apenas de religião, mas pertinente à todos os aspectos da vida em sociedade e inerente à ela. Onde quer que exista uma sociedade plural, ela existirá, e não é proibindo a manifestação da maioria que se resolverá o problema. A coexistência entre maioria e minorias é próprio da vida em sociedade e o adequado é que haja o convívio entre ambas, mormente nos espaços públicos. O exercício da religião majoritária pode gerar desconforto naqueles que seguem uma confissão minoritária e o recíproco também pode acontecer, mas terá que se conviver com tal desconforto, tendo em vista que faz parte das exigências de uma sociedade plural. Nesse sentido, o que se mostra inadequado é corroborar um argumento que, simplificando, seria o mesmo que dizer exerça a sua religião na sua casa e não na minha frente, porque a pessoa se sente desconfortável, constrangida ou ache a convicção religiosa uma idiotice. Esse problema da posição vencida fica bem evidente nas palavras do Min. Luís Roberto Barroso que, ao rebater o voto vencedor, diz: A minha convicção é a de que a religião é um espaço da vida privada e, portanto, não deve ter um locus no espaço público. A se seguir essa perspectiva, a necessária tolerância no espaço público, para usar o linguajar popular, foi para o espaço.

Haverá que surgir uma solução para o convívio, para que tal desconforto ou constrangimento subjetivo se faça dentro de limites sadios, mas nunca se poderia eliminar a convivência do espaço público para que não existam dificuldades, e o nome disso é falado aos quatro ventos: tolerância, que deve existir tanto por parte da maioria em relação à minoria, como da minoria em relação à maioria.

Portanto, no voto vencido, os maiores problemas do ensino religioso nas escolas públicas foram identificado nas circunstâncias fáticas de sua implementação, não tanto na sua conformação jurídica. Ademais, em relação à tese jurídica, conquanto expostos adequadamente alguns conceitos in abstrato, a maneira como foram aplicados parece pender para um laicismo não expressamente declarado, fruto de um exagerado apego ao humanismo racionalista.

4. DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL

A jurisprudência do tribunal teve no voto condutor do Min. Alexandre de Moares os seus principais fundamentos, exarado no sentido de que o regime jurídico-constitucional da relação Estado-Igreja vigente na CF/88 baseia-se em uma interdependência e complementariedade entre o Estado laico e a liberdade religiosa, e, além disso, que o problema constitucional apontado na demanda também diz respeito à liberdade de expressão do pensamento à luz da tolerância e da diversidade de opiniões.

De fato, laicidade e liberdade religiosa estão relacionadas porque um Estado confessional traz problemas à livre escolha e exercício da religião, contudo, não se está a dizer muita coisa com isso, porque é uma regra de índole geral a exigir densificação, enquanto que o importante para o deslinde da questão proposta é bem mais específico e consiste em saber e como construir as consequências dessa linha de raciocínio para a possibilidade do ensino religioso em escolas públicas. Essa questão, com toda certeza, se insere em um espectro mais amplo pertinente ao papel do Estado diante do fenômeno religioso, que alcança não apenas o ensino religioso, como também diversas outras possibilidades, atuais e/ou futuras, que deverão seguir o mesmo fio de raciocínio.

Em relação à liberdade de expressão do pensamento, entende-se que ela já está ínsita à liberdade religiosa, pois a liberdade religiosa ficaria comprometida onde não houvesse a possibilidade de sua expressão. Nesse ponto, insta registrar a existência de debate concernente à identificação, precedência ou distinção entre liberdade de consciência e liberdade religiosa[10], que são essenciais e prévias à liberdade de expressão. De qualquer forma, não é necessário chegarmos à tal ponto de análise, eis que a liberdade religiosa está inevitavelmente ligada à liberdade de expressão do pensamento em relação ao entendimento religioso da pessoa, de modo que a censura com esse perfil certamente constitui ofensa à liberdade religiosa.

Dito isso, interessante compreender melhor o voto vencedor com vistas à, no item seguinte, discutir a liberdade religiosa e a relação Estado-Igreja para além da decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil, com o que poderemos nos posicionar diante dela e, mais do que isso, estabelecer um entendimento sobre esse tão importante tema jurídico-constitucional, filosófico, estrutural e até mesmo existencial.

O tribunal, em sua maioria, entendeu que o texto constitucional prevê no art. 213, § 1º, CF/88 o ensino religioso de natureza confessional. Isto está bem demonstrado no transcorrer do voto e embasado no exame dos trabalhos da Assembleia Constituinte, na tradição das constituições brasileiras, em entendimentos doutrinários, em diferenciação entre o ensino religioso e outras disciplinas, bem como na repulsa ao retalho dos dogmas da fé de cada uma das religiões como forma de obter-se uma suposta neutralidade.

Mesmo assim, através do ativismo judicial, o dispositivo constitucional poderia ter sido reinterpretado, de forma inovadora e normativamente inaugural[11], como feito pelo voto vencido, para que fosse tomado como previsão de um ensino não confessional. Entretanto, não foi isso que ocorreu. A intervenção judicial foi negada[12] e os motivos para tanto é o que há de mais importante no acórdão para o estudo que nos propomos.

O principal motivo pelo qual não houve mutação constitucional está em que o tribunal, em sua maioria, considerou adequado o ensino religioso confessional em relação à separação entre Estado e igreja, laicidade e liberdade religiosa. O objetivo pretendido na ADI nº 4.439 foi visto como tentativa de censura da expressão religiosa e de limitação do direito do aluno e/ou seus pais de matricular-se no ensino religioso de sua própria confissão, configurando-se uma restrição à liberdade religiosa. Observe, assim, como foi importante aclarar os objetivos da demanda, tal como fizemos no item 2 do presente estudo.

Em síntese, a liberdade religiosa e laicidade foram interpretadas como a impossibilidade do Estado adotar, privilegiar, perseguir ou fundamentar seus atos em uma religião, bem como interferir, obstar ou dificultar a opção das pessoas em relação ao fenômeno religioso. Houve concretização da dimensão jurídica desses preceitos, que não significariam um Estado laicista ou antireligioso, mas um Estado que reconhece o espaço religioso numa perspectiva pluralista, que aceita o convívio em sala de aula das diferentes perspectivas, sem imposição e sem dirigismo estatal, permitindo a manifestação religiosa em espaços públicos de tolerância e respeito mútuos, sem que se possa impor um ponto de vista contrário ou a favor das religiões ou tentar impedir aqueles que professem uma fé de exercê-la ou desenvolvê-la em espaços públicos, de modo que o ensino religioso facultativo, ministrado de acordo com a confissão do aluno, ao invés de ir contra, promove e constitui direito subjetivo individual inerente à liberdade religiosa.

Podemos sintetizar as posições jurídicas estabelecidas da seguinte forma:

a) a constituição brasileira reconhece a laicidade e a liberdade religiosa em uma relação de complementariedade, sendo que sua previsão constitucional não prejudica a colaboração do Poder Público com entidadas religiosas, desde que respeitados certos parâmtros, o que está bem claro no voto[13];

b) a liberdade religiosa e a vedação ao proselitismo são respeitadas diante da facultatividade do ensino e sua pluralidade (franqueado à todas as religiões)

c) o Estado laico pode garantir, em igualdade de condições, o ensino religioso em escolas públicas, para aqueles que queiram, não havendo que se confundir isso com um Estado confessional, principalmente porque é vedado ao Estado impor, optar ou ser conivente com uma única e determinada crença, em detrimento das demais;

d) o ensino religioso em escolas públicas constitui direito subjetivo constitucional dos alunos e dos pais e não um dever imposto ao Estado;

e) afirmou-se a necessidade de tolerância em relação à diversidade religiosa na escola, o que se opõe à eliminação da expressão religiosa no ambiente escolar. A tolerância é reconhecida como algo defendido pela Corte em diversas ocasiões pretéritas e inclui a diversidade de opiniões em sala de aula, alcançando a diversidade de expressões religiosas na disciplina de ensino religioso facultativo;

f) apontou-se para o chamamento público e preferencialmente sem ônus para o Estado como forma de consecução do ensino religioso nas escolas públicas;

5. A LIBERDADE RELIGIOSA PARA ALÉM DO JULGADO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Já tendo sido analiticamente apresentado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do Brasil, no presente tópico se buscará desenvolver conceitos ligados à liberdade religiosa como forma de construir noções que nos permitam tomar partido acerca do entendimento jurisprudencial.

5.1. Modelos de relação Estado-Igreja e secularismo

Quando se fala em separação Estado-Igreja está-se a referir ao modelo adotado por determinada sociedade quanto à relação que deve existir entre Estado e Igreja[14]. Em nível estrutural, existem modelos que vão desde a completa unidade à completa separação, mas insta registrar que os extremos são modelos ideais, uma vez que há uma inevitável mistura entre religião e governo. Os modelos em que existe uma identificação são chamados de monistas[15] e podem assumir a forma teocrática ou cesarista[16]. Na forma teocrática a religião controla o Estado, concebendo-se um governo pela divindade, no qual os governantes representam o divino, direta e imediatamente, de modo que a religião é suprema e o Estado existe para promover os interesses religiosos. De outro lado, no cesarismo o Estado controla a religião, que é usada para promover a política estatal.

Os modelos em que não há identificação entre o poder político e religioso são chamados de dualistas. A primeira afirmação histórica da liberdade religiosa deve-se ao cristianismo na antiguidade (dualismo cristão, que assenta bases para dissolução do poder totalitário, uma vez que afirma que nenhuma autoridade humana disporia de poder absoluto sobre o indivíduo), porque pressupunha um Deus transcendente ao mundo que fundamenta a subtração do âmbito religioso ao poder político, com a separação entre autoridade política e autoridade religiosa. A própria noção de dividir a religião da política encontra sua origem no cristianismo, começando com o ensinamento de Jesus de dar a César o que é de César, passando pelas duas cidades de Agostinho, até os dois reinos de Lutero[17]. Como ensina Paulo Pulido Adragão, a afirmação do dualismo é simultaneamente, fundamento imprescindível para limitação jurídica do poder político, razão de ser do Direito público, haja vista que compreende que a comunidade política não é a única, devendo conviver e relacionar-se com outras, designadamente com as comunidades religiosas.[18]

O dualismo seguiu uma perspectiva gelasiana[19] durante a idade média, embora tenha conhecido desvios práticos importantes no hierocratismo medieval[20] até chegar ao regalismo moderno[21], indicando a ascendência do poder religioso sobre o político e vice-versa, embora pressuposta a sua não identificação.

O sec. XVI trouxe a reforma protestante, que contribuiu com o reconhecimento de paridade entre confissões religiosas e, a partir da Paz de Westfalia (1648) passando pelas revoluções americana (1776) e francesa (1789), a tolerância religiosa deixou de ser vista como uma contingência negativa, derivada da divisão religiosa, para ser vista como virtude, advindo mais do que uma distinção, uma separação entre Estado e religião.

A primeira proclamação da liberdade religiosa em um catálogo de direitos foi feita pelo art. 16[22] da Declaração de Direitos da Virgínia (1776), seguindo-se ao art. 10[23] da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), valendo registrar que a visão da liberdade religiosa de ambas é diferente[24] (estadunidente e do liberalismo europeu continental). Nesse sentido, enquanto a experiência americana conduziu à separação entre Igreja e Estado, inserindo-se num avanço prático no sentido do livre exercício da religião que levará à ideia de pluralismo religioso, a francesa sustentou-se no ceticismo religioso com matiz ideológica anti-religiosa, havendo uma convivência contraditória entre práticas regalistas e a oposição relativa do Estado à religião.

O liberalismo continental europeu oitocentista acabou seguindo uma perspectiva negadora da liberdade religiosa em razão de fundamentos filosóficos e ideológicos, frutos da ideia central do iluminismo de considerar a razão como única fonte de conhecimento, o que levou à rejeição de toda a autoridade que não se pudesse jusiticar perante o senso comum do pensador individual[25], sendo que isso explica a denominada questão religiosa no século XIX (luta dos Estados liberais da Europa continental contra a Igreja Católica). Portanto, suas bases em relação ao direito à liberdade religiosa eram o ateísmo, o indiferentismo e o agnocitismo, pois via-se todas religiões como falsas ou se entendia que não era possível aferir qual a verdadeira, configurando uma atitude hostil à religião. Assim surge o jurisdicionalismo liberal do século XIX, no qual o Estado não abre mão dos instrumentos para controlar as manifestações organizadas da vida religiosa, embora use deles com uma finalidade diferente, numa atitude de oposição relativa à religião. Assim, ao invês de limitar-se a separar o Estado da religião e tutelar a liberdade religiosa, prosseguiu também com uma política religiosa própria, com intenção de condicionar ou mesmo reprimir as entidades religiosas.

Esse sistema evoluirá de forma lenta e complexa até à concepção do tratamento do fator religioso própria das democracias pluralistas. A atenuação da carga ideológica do Estado liberal europeu, no sec. XX permitiu a superação da questão religiosa e, com ela, do jurisdicionalismo.

Nesse contexto de afirmação de um modelo específico de relação entre o Estado e a Igreja, surge a figura do chamado Estado secular, que é um conceito não isento de dificuldades e tem sido definido de vários modos, estando implicado na demarcação Estado-Igreja, portanto, num separacionismo, em que o governo está limitado ao saeculum ou reino temporal. Nesse sentido, o Estado é independente da religião institucional ou do controle eclesiástico e, por sua vez, a religião é independente do controle estatal ou político, podendo ser apontadas duas razões contrastantes para separação, uma política e outra teológica: numa perspectiva estrutural, a separação institucional funciona tanto para proteger o Estado da potência, imprevisibilidade e divisão da religião quanto, inversamente, para proteger a religião das intrusões e corrupções dos governantes temporais.[26]

O secularismo denota uma filosofia política[27] (ou aglomerado de filosofias), que nega a existência ou relevância de uma dimensão transcendental ou divina aos assuntos públicos, podendo ser identificadas duas versões: (a) secularismo hostil ou programático; (b) secularismo benevolente. A respeito do secularismo benevolente, calham as palavras de REX ANDAR e IAN LEIGH:

O secularismo do tipo benevolente (ou suave, moderado, negativo, procedimental ou passivo) é uma filosofia que obriga o Estado a abster-se de adotar e impor quaisquer crenças estabelecidas sejam elas convencionais crenças religiosas ou não religiosas (ateístas) sobre seus cidadãos. O secularismo benevolente contempla um Estado não confessional; sugerindo a possibilidade de uma ordem secular não estabelecida, que respeite igualmente os religiosos e não-religiosos. Aceita que a religião não se limita apenas a indivíduos e, portanto, reconhece associações e comunidades religiosas. Confera à religião, individual ou comunitária, a devida posição de participação igualitária na praça pública. Permite, como a Suprema Corte do Canadá esclareceu, que vozes religiosas sejam ouvidas em praça pública, embora não deva ser permitido abafar todas as outras. A religião não deve ser desprezada como inerentemnete perigosa. Essa visão solidária foi exposta em 2007 pelo (então) presidente francês Nicolas Sarkozy, que adotou o termo laicité positivo para um secularismo aberto, um convite ao diálogo, à tolerância e ao respeito.[28]

Observe que, nessa linha de pensamento, temos um Estado não confessional que respeita igualmente não religiosos e religiosos de todas as religiões, uma vez que todas são tomadas como iguais e dignas de igual respeito (tratamento imparcial das visões de mundo religiosas e seculares), o que já impede o tratamento privilegiado de qualquer confissão. A religião não deve ser desprezada como inerentemente perigosa, podendo participar da esfera pública (permite a participação e contribuição pública da religião). A unidade da sociedade não requer unidade de fé.

Por sua vez, o secularismo programático (hostil, duro ou assertivo) é uma defesa ideológica da causa secular, buscando uma sociedade baseada na razão, ou seja, dá à incredulidade uma posição privilegiada. O secularismo programático parece impor ao invés de desenvolver consenso, assemelhando-se à uma visão de mundo completa, que diz que aquele que lhe oponha resistência é irracional ou está nas garras do auto-engano. Com isso, o pensamento e a razão religiosos não têm lugar na esfera pública ou política, reservando-se à tais esferas o domínio exclusivo da razão e da racionalidade, a chamada razão pública[29]. Sobre o secularismo programático, ROWAN WILLIAMS explica que:

assume que qualquer sistema religioso ou ideológico que exija uma audiência na esfera pública tem como objetivo tomar o controle da esfera política e anular convicções opostas. Acha inquietantes as visões do bem humano fora de uma explicação mínima de segurança material e relativa estabilidade social, e conclui que elas precisam ser relegadas à esfera puramente privada. Assume-se que a expressão pública de uma convicção específica é automaticamente ofensiva para pessoas de outra (ou nenhuma) convicção. Assim, o apoio ou subsídio público direcionado a qualquer grupo em particular é um conluio com elementos que subvertem a harmonia da sociedade com um todo.

O secularismo programático, como abreviação para a negação da legitimidade pública do compromisso religioso como parceiro na conversa política, sempre carregará as sementes, não de totalitarismo no sentido óbvio, mas daquele espírito "totalizante" que sufoca a crítica silenciando o outro. (negrito nosso)[30]

Neste diapasão, são apontadas como parte de suas características: (a) religião como algo potencialmente perigoso e irracional; (b) religião deve ser colocada em quarentena na esfera privada (não permite a participação e contribuição pública da religião); (c) razões e argumentos religiosos devem ser excluídos da formulação de políticas públicas; (d) símbolos e práticas religiosas são relíquias de épocas passadas que permanecem a exercer um poder coercitivo, devendo ser vencidos; etc.

Portanto, percebe-se que a relação entre Estado e Igreja guarda complexidades que vão muito além da simples afirmação de que as respectivas esferas se encontram separadas, conectadas ou identificadas ou se o Estado é laico ou não. A relação que se estabelece tem influência direta e decisiva na conformação do modelo de Estado, de política e de sociedade, notadamente na questão relativa à liberdade religiosa, que parece ser um bem jurídico protegido pela separação entre as esferas secular e religiosa[31]. Por sua vez, se dessa seperação resulta um secularismo que será benevolente ou programático, isto dependerá da natureza e extensão da secularização da nação, o que mostra depender de uma contingência histórica.

5.2. A intrincada questão da neutralidade

É um argumento comum dizer que o Estado deve ser neutro em relação ao fenômeno religioso, que deveria manter uma posição equidistante, que a neutralidade seria uma característica dos Estados democráticos contemporâneos[32], e que isso somaria-se à laicidade como forma de tutela da liberdade religiosa e promoveria uma sociedade plural inclusiva, mas é sintomático obsevar que diante de casos concretos chega-se à conclusões muito díspares acerca de como funcionaria essa neutralidade[33]. Dizer que a neutralidade situaria-se na ausência de preferências estatais é manifestamente insuficiente, porque é pacífico dizer que não se pode privilegiar ou perseguir em razão da opção religiosa da pessoa, mas não se expõe de que forma isso se concretizaria, ignorando o fenômeno religioso nas decisões políticas ou considerando-o de forma a se poder nivelar as possibilidades religiosas das pessoas para que possam ter uma decisão realmente livre? Os seus contornos são difíceis de estabelecer na prática e dificilmente chegaríamos à um consenso[34] sobre quando estaria sendo observada ou não, e se isso acontece não é sem motivo, chegando alguns autores a dizer que a neutralidade religiosa do Estado é impossível, pois o silêncio sobre a religião, na prática, redunda em posição contra a religisão[35].

REX ANDAR e IAN LEIGH[36] expõem que não há posição verdadeiramente neutra em relação ao assunto, pois todos os modelos incorporam escolhas substantivas. A própria separação, por exemplo, é um julgamento carregado de valores no sentido de que certas áreas da condição humana se situam melhor dentro da esfera da religião, enquanto outras estão sob a autoridade do governo civil[37]. A este propósito, CARL ESBECK[38] nos diz que o separacionismo não é de forma alguma produto inevitável de uma razão objetiva não adulterada por um compromisso ideológico com algum ponto de referência mais elevado e que exigir que qualquer teoria das relações Igreja-Estado transcenda seus pressupostos e seja substanciamente neutra é pedir o impossível.

Sobre a questão da neutralidade do secularismo, REX AHDAR e IAN LEIGH entendem que nenhuma filosofia ou sistema de crenças coerente é neutro no sentido de que nenhum é indiferente ou imparcial em relação à sua própria natureza ou às suas doutrinas-chaves. O marxismo não é neutro em relação ao capitalismo, nem à reinvidicação do direito à propriedade privada. O catolicismo não é neutro ao protestantismo nem à doutrina protestante da sola Scriptura (somente as escrituras como padrão autoritário). O monarquismo que não insistisse em reis hereditários não seria monarquismo. Nenhuma filosofia, a menos que esteja satisfeita com sua própria destruição, é indiferente ou aceita princípios que contradizem diretamente ou minam suas próprias premissas centrais. E continuam:

Não há dúvida de que uma linha de base secular é comumente admirada por muitos liberais como neutra e imparcial, mas isso depende interiamente do ponto de vista de cada um. Muitos religiosos questionam se o secularismo é realmente neutro, pelo menos em termos de seus efeitos. Eles discernem que o secularismo benevolente pode, com o tempo, deslizar infalivelmente e de forma alarmante para um secularismo hostil. Há um deslizamento do secularismo como separação para o secularismo-indiferença, [um que] é difícil de resistir. [39]

JONATHAN CHAPLIN[40] sugere uma razão para esse deslize, dizendo que onde a sociedade é amplamente secularizada onde a vida pública e as instituições são principalmente governadas como se a autoridade religiosa fosse irrelevante na prática, quase invariavelmente se inclinam para o secularismo programático, mesmo que apenas por padrão. Da mesma forma, em uma sociedade onde a vida pública e as instituições são principalmente governadas como se a autoridade bíblica fosse obrigatória, na prática quase inevitavelmente ela parecerá cristianizada, também por padrão.

Merece registro que a neutralidade é um termo ambíguo e que requer contextualização: neutro em qual sentido (propósito, efeito, oportunidade), de que forma (financiamento, isenção, proibição) e para quem (crentes, empregadores, funcionários do Estado)? Em termos de resposta do Estado, a neutralidade exige um desengajamento em relação à religião ou sua promoçao positiva e imparcial?

Nesse aspecto, apontam-se dois modelos para a neutralidade[41]: formal e substancial. No modelo formal (chamado de cegueira religiosa) o Estado deve se relacionar com o crente sem levar em consideração a sua fé, de modo que a religião não deve ter tratamento diferente de qualquer outra coisa, o que faz com que o Estado não possa utilizar a religião como padrão para ação ou inação, seja para conferir benefício ou impor um ônus, porque ela não seria merecedora de benefícios especiais ou ônus especiais, já que é tomada em igual consideração aos seus análogos seculares[42]. Observe que, nessa perspectiva, desde que o objetivo governamental não seja favorecer ou desfavorecer a religião, o fato de as consequências poderem sobrecarregar uma prática religiosa específica não teria relevância, o que nos conduz à conclusão de que a igualdade formal admite uma desigualdade de efeitos. Por exemplo, para neutralidade formal, uma lei obrigando o uso de capacetes de segurança para todos motociclistas é aceita, apesar dos Sikhs não poderem colocar um. Tal abordagem cega à religião, em certas circunstâncias, acaba por impor pesados custos à fiéis de uma confissão específica, notadamente em casos nos quais sua fé exige uma conduta que uma lei geral proíbe.

A respeito de como medidas de ordem legal geral podem afetar o exercício religioso, J.T. NOONAN e E. M. GAFFNEY[43] trazem o interessante caso dos Amish da Antiga Ordem, um ramo dos menonitas que estabeleceram uma comunidade eclesiástica rigorosa e que imigraram para a América entre 1720 e 1775, sendo caracterizada pelo rigoroso afastamento dos pecadores. Em Wisconsin vs. Yoder, 406 US 205 (1972)[44] o argumento central era que a frenquência dos filhos na escola pública ou privada, obrigatória em razão de lei, era contrária à religião e ao modo de vida Amish, constituindo um ambiente hostil às suas crenças. Os pais acreditavam que, ao enviar seus filhos para o ensino médio, eles não apenas se exporiam ao perigo da censura da comunidade da igreja, mas também colocariam em risco sua própria salvação e a de seus filhos. Neste caso, tinha-se como certo o impacto que a frequência obrigatória traria na sobrevivência das comunidades religiosas como existiam à época. Os Amish rejeitavam igrejas institucionalizadas e buscavam retornar à vida primitiva, simples e cristã, tirando ênfase do sucesso material, rejeitando o espírito competitivo e procurando isolar-se do mundo moderno. Como resultado, a salvação exigiria uma vida em uma comunidade eclesiástica separada do mundo e da influência mundana, sendo que esse conceito de vida distante do mundo e de seus valores é essencial para sua fé. O Supremo Tribunal de Wisconsin deu razão aos Amish por considerar que o Estado não havia feito demonstração adequada de que seu interesse em estabelecer e manter um sistema educacional se sobreporia ao direito ao livre exercício da religião, o que foi confirmado pela Suprema Corte dos EUA, que destacou o interesse fundamental dos pais na orientação do futuro religioso e na educação dos filhos, de acordo com forte tradição americana.

De outro lado, no modelo de neutralidade substantiva a preocupação reside nos efeitos da ação do Estado sobre a religião, possuindo duas vertentes: na primeira, o governo deve minimizar o grau em que interfere na religião (para o bem ou para o mal) e, na segunda, deve se esforçar para deixar a religião, na medida do possível, à escolha individual, o que desaconselha qualquer atitude que resulte em coerção ou persuasão. Também é chamada de neutralidade positiva porque nem sempre para obtê-la será suficiente uma abstenção do governo, exigindo-se uma atitude positiva em certas circunstâncias. No exemplo tratado anteriormente, a propósito do siquismo, o Estado poderia conferir uma isenção ao uso do capacete aos Sikhs, pois, agindo assim, não estará privilegiando, mas nivelando as coisas na medida em que assegura não estar tornando mais fácil ou difícil seguir os mandamentos de determinada religião. Pode parecer um tratamento especial, mas é apenas um corretivo à política governamental invasiva e indiscriminada que involuntariamente desencorajaria a prática religiosa.[45] Observe que o propósito da neutralidade substantiva, sob a ótica de seus defensores, é promover a liberdade religiosa, pois minimizar a influência do governo maximizaria a liberdade religiosa e a autonomia da escolha religiosa, embora o zero absoluto não seja atingível, pois a liberdade irrestrita de escolha religiosa é provavelmente inalcançável.

Assim, parece claro que a neutralidade estatal, embora por vezes apresentada acriticamente como algo passível de consenso, na verdade é um tema complexo[46] e de difícil solução, pois os caminhos que se lhe apresentam para efetivação são tortuosos e com possível interferência na liberdade religiosa, qualquer que seja o viés que lhe queira conferir e por mais que não se tenha como propósito uma interferência.

É interessante observar os questinamentos que se fazem em relação à neutralidade, sendo dignas de nota as preocupações expostas no documento A Liberdade Religiosa para o bem de todos/2019, publicado pela Comissão Teológica Internacional[47], no qual são tecidas críticas substanciais à ordem liberal, apontando-se por parte dessa uma obsessão de perfeita neutralidade de valor, que forma o que foi chamado de totalitarismo suave e que tornaria os indivíduos particularmente vulneráveis à difusão do niilismo ético na esfera pública. O documento rejeita a teocracia assim como o multiculturalismo agnóstico que priva a religião da sua função de mediação da sociedade civil. Confira-se alguns importantes trechos:

A alegada neutralidade ideológica de uma cultura política que declara querer ser construída sobre a formação de regras de justiça meramente processuais, rejeitando qualquer justificação ética e inspiração religiosa, manifesta a tendência de elaborar uma ideologia da neutralidade, que, de fato, impõe a marginalização, se não a exclusão, da expressão religiosa da esfera pública[48]. E, portanto, da total liberdade de participação na formação da cidadania democrática. Daqui fica clara a ambivalência de uma neutralidade da esfera pública, que é apenas aparente, e uma liberdade civil objetivamente discriminatória. 

O Estado tende a assumir a forma de uma imitação laicista da concepção teocrática da religião, que decide a ortodoxia e a heresia da liberdade em nome de uma visão político-salvífica da sociedade ideal: decidindo a priori a sua identidade perfeitamente racional, perfeitamente civil, perfeitamente humana. O absolutismo e o relativismo dessa moralidade liberal entram em conflito, aqui, com efeitos de exclusão iliberal na esfera pública, dentro da suposta neutralidade liberal do Estado

Sobre o autor
Ari Timóteo dos Reis Júnior

Procurador da Fazenda Nacional. Mestre em Direito. Professor de Direito Tributário. @ari_timoteo_junior

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