Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

RELAÇÃO ESTADO-IGREJA, LAICIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA: análise crítica da ADI nº 4439 do Supremo Tribunal Federal sobre o ensino confessional em escolas públicas

Exibindo página 2 de 2
Agenda 06/05/2022 às 06:02

 A suposta neutralidade ideológica do Estado liberal, que exclui seletivamente a liberdade de um testemunho transparente da comunidade religiosa na esfera pública, abre caminho à dissimulada transcendência de uma ideologia oculta do poder.

o Estado liberal parece para muitos igualmente objetável pelo motivo oposto: a sua proclamada neutralidade não parece capaz de evitar a tendência de considerar a fé professada e a pertença religiosa como um obstáculo para a plena admissão à cidadania cultural e política dos indivíduos. Uma forma de totalitarismo moderado, poder-se-ia dizer, que torna particularmente vulnerável à difusão do niilismo ético na esfera pública.

É preciso ter atenção para que a palavra neutralidade parece ter sido estigmatizada pelo seu uso no discurso laicista[49]. As teses francesas de tendência laicizante e anticlerical, bem como as teses rawlsianas de orientação contratualista e formalista, parecem justificar o desconhecimento da dimensão social específica do fenômeno religioso pelo poder público. Ora, a neutralidade não pode atracar nessas ideias, mesmo porque a serparação entre Estado-Igreja não se relaciona com tais premissas, porque não tem subjacente qualquer hostilidade perante a religião, nem pretende substituí-la por qualquer outra ordem de valores totalizantes. A limitação do Estado ao bem comum temporal não quer dizer que o Estado seja ateu, irreligioso ou anti-religioso. A laicidade republicana não é uma laicidade contra a religião, mas uma laicidade estruturante da juridicidade estatal democrática, com separação entre o Reino de Deus e o espaço público estatal.

Por outro lado, o fenômeno religioso também pode ser visto como fenômeno socialmente benéfico, de maneira que a neutralidade também pode ser vista como uma neutralidade positiva, que se caracteriza por uma atitude positiva perante a religião, o que afasta o indiferentismo estatal por parte dos poderes públicos, na esteira do que ensina JAVIER MARTÍNEZ-TORRÓN[50], para quem a neutralidade não implica indiferença aos resultados do exercício da liberdade de religião, podendo ser considerados os efeitos sociais ou efeitos previsíveis das doutrinas morais religiosas.

Encontramos interessante desenvolvimento da neutralidade feito por MARCELO SAMPAIO SIQUEIRA e NATERCIA SAMPAIO SIQUEIRA que, partindo de Dworkin e Rawls, encontram seu fundamento na igualdade característica de uma sociedade onde não há hierarquia entre os diversos modelos de vida e que se realiza na igual consideração e dignidade de cada indivíduo[51]. Para alcançar esse desiderato, exige-se tanto abstenções (ex. não promover determinada concepção de bem) como atuações estatais positivas (a neutralidade não é mera abstenção) no propósito de assegurar igual respeito e consideração às pessoas, o que envolve atuações para que as pessoas tenham acesso a um background material que lhes permitam ser consideradas e considerar a si mesmas e aos demais como iguais em dignidade[52]. Deste modo, a neutralidade é instrumental (não é um fim em si mesma) e deve ser analisada pelo viés da igual dignidade das individualidades que, por sua vez, deve ser direcionada à igual possibilidade de exercício. Em síntese, em considração à neutralidade, o Estado deve criar condições equitativas para que cada qual possa se desenvolver dentro de seu projeto de vida, abstendo-se de estabelecer ou promover concepções apriorísticas de bem. A neutralidade, portanto, se realiza pela oportunidade equitativa conferida a cada qual para se desenvolver em sua individualidade e rejeita condições arbitrárias de promoção de determinada concepção específica.

Não obstante, também encontramos quem sustente que o ideal de neutralidade é uma ficção política e jurídica, e sua defesa se transformaria em um discurso ideológico cua principal finalidade é atribuir um critério duvidoso de racionalidade que não se pode mais sustentar[53]. Nessa ótica, a noção de neutralidade, mesmo em si própria, não seria possível de ser manejada, porquanto decorreria de uma epistemologia moderna superada, que não resiste diante da crítica à tese antropolótica do sujeito como autônomo, livre e racional, tendo em vista que a natureza humana é dialógica, a sociedade não é atomista e há impossibilidade de se distinguir estados do sujeito e estados do objeto, o que leva à inevitável intersecção com valores subjetivos. Isso significa que a neutralidade não existe porque não há como separar-se de questões de valor.

Destarte, não há como negar que o fenômeno religioso deve ser considerado pelo Estado que, por isso, não pode adotar uma postura de indiferentismo que desconsidere qualquer ponderação ou consideração da religião, logo, neutralidade não tem coincidência com a indiferença. Também não pode levar à eliminação do aspecto religioso do espaço público. No entanto, se a atitude hostil frente à religião está descartada, é igualmente importante que não seja critério para que se privilegie ou confira um tratamento desfavorável, o que conduz à considerações sobre igualdade em relação à qual ainda é difícil encontrar-se, na prática, um caminho seguro. Sua noção e contornos, na atual quadra, são cheios de complexidades. De qualquer forma, lançar luzes sobre o tema é um passo valioso para que não se perca em afirmações acriticamente lançadas sobre a neutralidade e que se baseiam em uma reprodução rasa de um discurso que não percebe as dificuldades inerentes ao assunto.

5.3. Direito fundamental à liberdade religiosa e seus reflexos sobre a relação Estado-Igreja

A ideia moderna de direitos fundamentais foi afirmada, no século XVIII, nos Estados Unidos e em França, não pela natureza das coisas ou das pessoas, mas por circunstâncias históricas bem conhecidas[54], atualmente tendo se espalhado pelo mundo ocidental sob uma perspectiva de universalidade. A liberdade religiosa, tema que nos interessa aqui, está sempre presente em catálogos de direitos fundamentais, tanto nas constituições nacionais como em documentos internacionais, conquanto a sua interpretação e aplicação pelos tribunais, tanto nacionais como internacionais, possam encontrar diferenças.

A noção de liberdade religiosa refere-se ao espaço de autonomia da pessoa e das comunidades religiosas em relação ao Estado e à sociedade, ligando-se ao pluralismo, pois onde o pluralismo não é possivel fica comprometida e, da mesma forma, sem a liberdade religiosa não há condição para um sistema político pluralista. Sem plena liberdade religiosa não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política, o mesmo podendo se dizer da democracia, enquanto regime político da liberdade para as pessoas e para os grupos.

O direito à liberdade religiosa é um direito complexo, com dimensões individuais e coletivas, subjetivas e objetivas, positivas e negativas, institucionais e procedimentais; constitui tanto um direito como também uma liberdade e garantia, possuindo um amplo conteúdo. No aspecto individual refere-se à liberdade de crença (ter, não ter, mudar ou deixar de ter religião), liberdade de atuação segundo as próprias crenças, liberdade de divulgação das crenças (proselitismo), liberdade de culto, liberdade de reunião e associação religiosa, liberdade de ensino religioso, direito de educar os filhos de acordo com a sua religião, direito à privacidade religiosa, direito aos feriados religiosos, direito de comemorar publicamente as festividades da própria religião, liberdade em sentido amplo de manifestar a religião etc. No aspecto coletivo inclui o direito de autodeterminação das confissões religiosas, direito de auto-organização das confissões religiosas, não interfência estatal, não discriminação ou favorecimento, liberdade de construção e abertura de templos, liberdade de se ministrarem ensino religioso aos seus membros, pedirem e receberem contribuições voluntárias, fazerem proselitismo, publicarem e difundirem publicações religiosas etc. Não é possível ser exaustivo, porquanto estamos diante de um direito fundamental, referindo-se a uma multiplicidade de comportamentos humanos concretos, mas nota-se que a visão é ampla, indo desde uma liberdade positiva como negativa, liberdade individual, das familias, das instituições religiosas, liberdade privada e pública.

Como direito fundamental, a dimensão negativa é inseparável da dimensão positiva[55], sem o que não se teria uma liberdade real/efetiva. Enquanto a dimensão negativa impõe o dever ao Estado de não criar obstáculos ao livre exercício da liberdade religiosa, de não perseguir por motivos religiosos e não discriminar por motivos religiosos, a dimensão positiva exige prestações estatais positivas, valendo consignar, conforme desenvolvido acima, que a laicidade não exclui que o Estado tenha a função de garantir e de favorecer a efetivação de direitos fundamentais, em especial a liberdade religiosa.

De fato, a dimensão positiva justifica-se diante da constatação de que a liberdade religiosa depende das condições para o seu exercício efetivo. O entendimento dos direitos fundamentais como exigências apenas de uma respeitosa passividade do Estado já está superado, a compreensão atual conjuga a atitude de não interferência na esfera pessoal com a ativa criação de condições de exercício efetivo. Assim, requer do Estado não apenas uma pura atitude omissiva, uma abstenção, mas um facere traduzido num dever de assegurar ou propiciar o exercício da religião. A dimensão positiva[56] impele o Estado a propiciar um mínimo de condições fáticas e normativas para que a escolha religiosa dos seus cidadãos se possa exprimir em liberdade e igualdade.

Nessa perspectiva, entende-se que o princípio da laicidade, ou como se queira, a não confessionalidade (sinônimo), não exclui que o Estado tenha a função de garantir e de favorecer a efetivação de direitos fundamentais, entre os quais a liberdade religiosa, quer individual ou coletiva. Como exemplo disso no Brasil pode-se citar a assistência religiosa nas prisões e forças armadas[57]. Portanto, existem deveres estatais concernentes ao direito à liberdade religiosa.

Ademais, dentre as características dos direitos fundamentais está a sua eficácia horizontal, ou seja, os seus efeitos jurídicos também alcançam particulares e não apenas o Estado, porque representam valores fundamentais da sociedade, eixo axiológico constitucional que irradia a sua eficácia por todas as estruturas do ordenamento jurídico.

Nesse contexto, a liberdade religiosa implica deveres de terceiros, destacando-se a obrigação de tolerância, entendida como dever de respeito pela dignidade e pela personalidade dos outros, bem como pelas suas diferentes crenças e opções de consciência.[58]A tolerância funciona como princípio positivamente conformador do efeito externo ou horizontal do direito à liberdade religiosa, como magistralmente exposto pelo professor PAULO PULIDO ADRAGÃO:

O direito à liberdade religiosa corresponde, da parte de terceiros, um dever de respeito pela dignidade e pela personalidade do titular do direito, bem como pelas suas diferentes crenças e opções de consciência, uma obrigação de tolerância prática, na terminologia de VALUET e de JÓNATAS MACHADO, que conforma o efeito externo ou horizontal do direito fundamental em análise.[59]

Essa eficácia relativa à tolerância, pensamos, possui importância central para o tema discutido pelo STF na ADI nº 4439/DF. Ressalte-se que todos esses reflexos da liberdade religiosa casam tanto com a perspectiva da relação entre Estado-Igreja como de neutralidade adotados.

Fica claro que as perspectivas sobre o direito fundamental à liberdade religiosa dão a tônica para a relação Estado-Igreja e mesmo para a neutralidade que se pretenda estabelecer em determinada sociedade, eis que os efeitos apontados acima não são todos compatíveis com quasiquer das concepções que se queira adotar nessas searas. Tais efeitos decorrem da decisão política fundamental relativa aos direitos fundamentais que confere conformação política à sociedade e, enquanto valores essenciais do ordenamento jurídico (dimensão objetiva dos direitos fundamentais), funcionam perfeitamente como princípio fundamental das relações confissões religiosas e o Estado, de modo que o regime jurídico de tais relações deve partir da liberdade religiosa[60].

Portanto, os modelos teocrático, cesarista, regalista, do republicanismo laicista, do jurisdicionalismo, de relaçao preferencial com a Igreja Católica ou que impliquem em hostilidade à religião são incompatíveis com o modelo democrático e republicano vigente no Brasil e inadmitidos pelos contornos do princípio da separação decorrente da liberdade religiosa conformada nesse referido sistema jurídico.[61]

Parece que isso indica que a noção de neutralidade não pode ser apenas formal, mas substancial, sendo bem interessante a perspectiva de Dworkin ao estabelecer a igualdade (exposta no tópico anterior) como fundamento da neutralidade estatal, porque de outra forma não se atingiria máxima efetividade do direito fundamental. A relação entre Estado e religião, bem como a esperada neutralidade, não podem servir como imposição de inércia, nem podem tolher à religião a sua participação no espaço público.

Existem dois grandes modelos de atuação do Estado direcionada ao fenômeno religioso[62]: (a) separação cooperativa (separação relativa), em que o Estado colabora com as atividades desenvolvidas pelas confissões religiosas; (b) separação neutral (separação absoluta), em que o Estado não intevém em atividades conjuntamente com as confissões religiosas. Tendo em vista as eficácias que a liberdade religiosa produz, fica indene de dúvidas que o modelo cooperativo se mostra mais consetâneo à liberdade religiosa e parece ser exatamente esse espectro que enseja o ensino religioso em escolas públicas, que tem como premissa uma valoração positiva do fenômeno religioso, de onde surge o compromisso em não remeter esse fenômeno exclusivamente para o plano privado e individual, permitindo seu acesso à esfera pública, sem que isso resvale em qualquer ofensa à liberdade de religião.

5.4. Ensino religioso em escolas públicas

A presença do ensino religioso em escolas públicas está envolta na controvérsia em torno da assunção de tarefas educativas pelo Estado e do argumento de não respeito da laicidade pelo Estado, à ausência de neutralidade ou inobservância da separação entre Estado e Igreja. Por tudo quanto foi exposto até aqui, parece que esses questionamentos não subsistem.

A tradição multi-secular de unidade teológico-política teve como consequência a conformação do ensino público de acordo com o princípio da coordenação entre a Igreja Católica e o Estado na afirmação de uma concepção confessional de verdade objetiva e na realização da ideia de bem comum que a mesma tem subjacente. O ensino da religião tinha um lugar central nesse sistema, haja vista que as instituições religiosas eram as únicas provedoras de educação, muito antes de o Estado assumir esse papel.[63]

Nesse modelo pré-moderno, compreendia-se que os poderes públicos se corresponsabilizassem administrativa e financeiramente no ensino religioso nas escolas públicas. Ademais, o monopólio da coação era colocado a serviço dos interesses confessionais, tornando-se o ensino religioso obrigatório e sendo os professores pagos com dinheiro público. Estado e Igreja surgiam aos olhos do cidadão como entidades divinamente ordenadas para a prosecução de finalidades transpessoais e transcendentes.

O advento do iluminismo e dos Estados nacionais absolutistas arrostaram essa perspectiva, contexto no qual apareceu o laicismo, que se traduziu, em vários países europeus, num conjunto de medidas legislativas através das quais foram secularizados os serviços públicos, os municípios e, especialmente, o ensino, em relação ao qual procurou-se instituir um ensino laico, obrigatório e gratuito, como antídoto contra a influência restauracionista antiliberal do absolutismo clerical.[64]

Todavia, laicismo não se confunde com laicidade, conforme expusemos acima. A laicidade, sinônima de não confessionalidade, não é avessa à religiosidade, mas permite que se reconheça como algo valioso ao ser humano e digna de proteção, podendo mesmo ser vista como um fenômeno socialmente benéfico. Ao mesmo tempo, é vedado o dirigismo ou a interferência estatal nos rumos religiosos do projeto de vida do indivíduo, tendo em vista que a neutralidade, no sentido adotado, se restringe em criar condições equitativas para que cada qual possa se desenvolver dentro de seu projeto de vida, abstendo-se de estabelecer ou promover concepções apriorísticas de bem[65]. Nessa linha de raciocínio, MARCELO SAMPAIO SIQUEIRA e NATERCIA SAMPAIO SIQUEIRA, concluem que o ensino religioso em escolas públicas não afronta a laicidade:

Ela é uma liberdade especialmente relevante à dignidade e identidade da pessoa, pois integra o núcleo de valores que torna a vida de cada um relevante para si. Como toda liberdade que esteja especialmente relacionada à realização da pessoa, ela é passível de situações nas quais carece da atuação ou infraestrutura estatal, e não se lhe pode prejudicar essa proteção em razão de uma neutralidade em absoluto negativa que decorreria de uma leitura estrita da laicidade.

A laicidade, repita-se, serve à igualdade como ausência de hierarquia, cuja realização é informada pela justa oportunidade. Dessa feita, o definitivo sobre o tema consiste em se analisar se a prestação de ensino religioso em colégio público compatibiliza-se com a justa oportunidade, de maneira que não implique o estabelecimento de condições arbitrárias para o desenvolvimento de determinada concepção do bem.

Pois no presente artigo se conclui, em primeiro lugar, que a prestação do ensino religioso em colégios públicos seria medida adequada à justa oportunidade para desenvolver-se, em especial quando se compara a situação entre aqueles que podem pagar por colégio privado e, por conseguinte, direcionar seus filhos a uma educação religiosa, e os que não o podem fazer. Neste último caso, a laicidade, compreendida como o silêncio estatal, implicaria diferença de condições equitativas de desenvolvimento da pessoa ainda que se considere que, preferencialmente, esteja-se a tratar da liberdade dos pais quanto à orientação religiosa dos filhos.

Em um segundo momento, conclui-se que da forma como se assegura a prestação do ensino religioso, não se está a criar condição arbitrária de desenvolvimento e promoção de determinada concepção do bem. As condições são suficientemente equânimes, e os argumentos favoráveis ao entendimento de que a possibilidade do ensino religioso fomentaria o risco do conflito compartilham a sua plausibilidade com os argumentos no sentido inverso, o que revela a sua fragilidade e falta de subsistência.[66]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Com efeito, sob a ótica de igual dignidade e liberdade para todos[67] de perspectiva do constitucionalismo contemporâneo, a presença de religião nas escolas públicas deixa de referir-se à uma coligação entre Estado e Igreja e passa a ser vista à luz da igual liberdade religiosa de todos e o pluralismo religioso[68], motivo pelo qual não vemos como se sustentar ofensa à não confessionalidade.

A laicidade não exclui que o Estado tenha função de garantir e favorecer a efetivação de direitos fundamentais, dentre os quais a liberdade religiosa. A consideração da religião como manifestação comunicativa transcendental no espaço público (e não apenas como questão privada) legitima esquemas de cooperação do Estado com as Igrejas desde que esta cooperação não viole os princípios da separação, da não confessionalidade e da neutralidade religiosa.[69] Ademais, e é preciso que isso fique bem claro, um dos colorários da liberdade religiosa positiva está em que a liberdade negativa de uns não pode ser exercida à custa da liberdade positiva de outros.[70]

Como se observa, o Estado confessional não se confunde com o Estado laico que propicie o ensino religioso em escolas públicas, pois isso apenas representa a cooperação concernente à vertente positiva da liberdade religiosa, que faz surgir a obrigação ativa de cooperar com os pais na educação dos filhos e o dever de proporcionar às confissões religiosas o ensinos na escolas públicas, em consequência também dos direitos dos pais[71]. Não se pode confundi alhos com bugalhos, é preciso distinguir as coisas para que não pairem dúvidas. O ensino público é laico, é não confessional, o que decorre tanto da separação entre Estado-Igreja e da laicidade do Estado, como do direito de todos à escola pública, não podendo ela, portanto, identificar-se ou seguir qualquer orientação religiosa. Todavia, isso não significa que não possa haver ensino religioso no espaço público representado pela escola pública. Segundo CANOTILHO e VITAL MOREIRA:

O alcance da laicidade do ensino público consiste designadamente em: (a) vedar toda e qualquer orientação religiosa do ensino público: (b) excluir o ensino da religião como elemento integrante do ensino público (sem prejuízo do Estado poder facultar às igrejas, em pé de igualdade, a possibilidade de estas ministrarem ensino da religião nas escolas públicas). Constituirá, por isso, clara violação do princípio da não confessionalidade a introdução do ensino da religião moral e católica no ensino primário e secundário público, bem como a formação oficial de professores destinada ao mesmo ensino (cfr, porém, os criticáveis AcsTC nº 423/87 e 174/93). O ensino religioso nas escolas públicas deve ser inteiramente facultativo e da responsabilidade das próprias igrejas e confissões religiosas (incluindo quanto ao recrutamento e remuneração de docentes) cabendo às escolas somente disponibilizar os espaços e horários necessários.[72]

Nesse mesmo sentido, citando Jorge Miranda, o professor PAULO PULIDO ADRAGÃO menciona que:

não confessionalidade do ensino público do art. 43º, n. 2, da Constituição tem, para este autor, o sentido de não identificaçao com nenhuma religião em particular. Não impede assim, designadamente, que as religiões possam ter lugar no ensino público, desde que respeitem três grandes princípios: 1) possibilidade de acesso de todas as confissões religiosas, segundo a própria representatividade e sem discriminações; 2) liberdade de opção positiva dos alunos e seus pais; 3) definição pelas confissões religiosas dos programas e conteúdos.[73]

Ao que se disse alie-se também o fundamento jurídico-positivo. O sec. XX se caracteriza pela interancionalização dos direitos humanos, merecendo citação: (a) art. 18 da Declaração de Direitos Humanos ONU/1948 (caráter não vinculativo); (b) art. 9º da Convenção para Salvaguarda dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais/1950 (Convenção Europeia dos Direitos do Homem); (c) art. 18 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos ONU/1966; (d) art. 13 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ONU/1966; (e) Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância ou de Discriminação Fundadas Sobre a Religião ou Convicção ONU/1982 (caráter não vinculativo, mas foi o primeiro instrumento internacional especificamente direcionado à liberdade religiosa).

Desses dispositivos, ressalte-se que tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos/1966, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais/1966 e o Protocolo Adicional nº 1/1952 à Convenção Europeia de Direitos do Homem 1950, prevêem o ensino de educação religiosa segundo suas concepções dos pais, inclusive no ensino assumido pelo Estado:

Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: Art. 18. () Os Estados-Signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e dos tutores legais, se for o caso, de modo a garantir que os filhos recebam uma educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.

Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: Art. 13. 1. Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. Concordam que a educação deve ser orientada até ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam deste modo, que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efectivamente numa sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos e religiosos e promover as actividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

3. Os Estados-Signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais ou dos tutores legais, se for o caso, de escolher para os seus filhos ou pupilos escolas diferentes das criadas pelas autoridades públicas, sempre que aquelas satisfaçam as normas mínimas que o Estado estabeleça ou aprove em matéria de ensino, e permitam que os seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa ou moral de acordo com as suas próprias convicções.

Protocolo Adicional nº 1/1952 à Convenção Europeia de Direitos do Homem 1950: Art. 2. A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas.

Desta forma, há de ser reconhecido que há o dever do Estado de cooperar com os pais na educação dos filhos, sendo que aos pais se reconhece o direito de educar seus filhos segundo suas próprias convicções religiosas e filosóficas, o que enseja perfeitamente a possibilidade de ensino religioso nas escolas públicas.

No direito comparado, o Tribunal Constitucional Português teve oportunidade de avaliar este assunto e decidiu dois princípios neste dominio[74]: (a) o ensino religioso nas escolas públicas não viola o princípio da neutralidade religiosa do Estado, mas (b) não pode ser obrigatório, apenas se os alunos ou os seus pais declararem expressamente a vontade de ter essa disciplina. Em Espanha, tradicionalmente existe o ensino religioso confessional eletivo como parte do currículo ordinário, apontando-se, como fundamento jurídico, o direito à liberdade religiosa das confissões religiosas, o direito dos pais de garantir que seus filhos recebam a instrução religiosa e moral de acordo com suas crenças e a cooperação entre o Estado e as confissões religiosas. As regras básicas foram reconhecidas como constitucionais pela Suprema Corte Espanhola.[75]

O problema não reside, assim, na laicidade, na neutralidade ou na separação entre Estado e Igreja, então poderia advir de outro fator, tal como da compatibilidade com o reconhecimento de que vivemos em uma comunidade plural, em que convivem maiorias e minorias culturais e religiosas. Nesse aspecto, entende-se que o princípio da concordância prática entre os vários direitos à religião deve aqui ser complementado pelo princípio da tolerância[76], devendo respeitar-se tanto quanto possível a liberdade religiosa de cada um. Nesse sentido relativo à pluralidade, merece destaque se dizer que essa realidade impõe uma necessária tarefa de ponderação e de concordância prática de forma a não transformar certas dimensões civilizacionais em direitos hiperinclusivos pertubadores da própria inclusividade.

Alegar-se que o que pluralismo implica que a religião não pode se imiscuir em aspectos da vida dos homens em sociedade, significa usar o pluralismo como meio de limitação da religião, abafando, assim, a própria essência do pluralismo, que reside na possibilidade de expressão da diversidade em todos os âmbitos sociais[77].

Em síntese conclusiva, portanto, concorda-se com os ensinamentos de JÓNATAS EDUARDO MENDES MACHADO:

Do ponto de vista jurídico-normativo, não existe hoje lugar para qualquer forma de coação ou discriminação no ensino religioso nas escolas públicas. Este deve ser estruturado de acordo com um princípio de facultatividade pura e alargado a todas as confissões religiosas. Além disso, ele deve ser colocado, tanto quanto possível, na dependência da iniciativa dos encarregados de educação, dos estudantes e das confissões religiosas, em vez de ser estruturado, administrado e financiado pelo Estado e integrado no currículo escolar. À luz do direito constitucional vigente, não existe lugar para as ideias de coordenação ou de parceria espiritual entre o Estado e as confissões religiosas, não se percebendo a corresponsabilização financeira do Estado na realização de uma finalidade estritamente religiosa como é o ensino de uma doutrina confessional. Isto, tanto mais quanto é certo que a mesma poderia ser facilmente realizada num regime de voluntariado, não havendo aqui a considerar qualquer obstáculos fáticos que tornem semelhante tarefa especialmente onerosa.[78]

6. CONCLUSÃO

Pelo exposto, compreende-se que a liberdade religiosa deve ser tomada como princípio fundamental do regime jurídico da relação Igreja-Estado, o que daria ensejo a um Estado democrático de liberdade religiosa.

Assim, o Estado não deve ser neutro, nem estar absolutamente separado, nem ser estranho perante a religião, mas antes deve ser sensível à relevância social positiva do fenômeno religioso.

Deste modo, o modelo adequado é o da não identificação (separação) com cooperação, por somente ele satisfazer as exigências das diversas dimensões da liberdade religiosa. A cooperação é uma decorrência da liberdade religiosa. É um modelo de independência e cooperação, sem discriminação e sem coerção.

O modelo cooperativo enseja o ensino religioso em escolas públicas. Isso tem base em uma valoração positiva do fenômeno religioso, de onde surge o compromisso em não remeter esse fenômeno exclusivamente para o plano privado e individual, permitindo seu acesso à esfera pública, sem que isso resvale em qualquer ofensa à liberdade de religião.

A sociedade pluralista deve, necessariamente, ser uma sociedade tolerante com o diferente, inclusive na questão religiosa e mesmo dentro da escola, não sendo um caminho seguro se pretender eliminar a convivência entre os diferentes como forma de assegurar um pseudopluralismo.

Assim, conclui-se com uma análise coincidente com o acórdão do Supremo Tribunal Federal do Brasil na ADI nº 4439, haja vista que a mesma não leva à um estado arbitrário de promoção de determinado modelo de vida no aspecto religioso, mormente porque estabeleceu condições equitativas a todas as religiões e credos para serem lecionados na escola pública, sem exclusão, sem favorecimento e sem discriminação. A decisão promove a necessidade de tolerância, preserva a laicidade e a liberdade religiosa, sendo que a relação entre Estado e Igreja não resvala em qualquer promiscuidade, mantendo-se uma neutralidade sadia e colaborando para o Estado Democrático de Direito.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002.

AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol 1, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

CAVALCANTI, Themistocles Brandão. A Constituição Federal Comentada, 3ª. ed., J. Konfino Editor, 1959.

CHAPLIN, Jonathan. Talking God: The legitimacy of Religious Public Reasoning. London: Theos, 2008.

CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1993.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. De Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FERRER ORTIZ, J. (Coord.), Derecho Eclesiástico del Estado Español, Pamplona, EUNSA, 6ª edição, Pamplona, EUNSA, 2007.

GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022.

GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, religião e sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012.

HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. (trad. A. Ribeiro Mendes), 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.

_______________________________. A jurisprudência constitucional portuguesa diante das ameaças à liberdade religiosa. in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 82 (2006), p. 65-134.

MARTELO, Bruno. Neutralidade e liberdade religiosa: a porta que Achbita abriu e que Bougnaoui não fechou. Comentários ao Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Seção) de 14 de março de 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/40037454/NEUTRALIDADE_E_LIBERDADE_RELIGIOSA_A_porta_que_Achbita_abriu_e_que_Bougnaoui_n%C3%A3o_fechou_-Coment%C3%A1rio_ao_Ac%C3%B3rd%C3%A3o_do_Tribunal_de_Justi%C3%A7a_Grande_Sec%C3%A7%C3%A3o_de_14_de. Acesso em: 23/04/2022.

MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier. Religion and Law in Spain. 2ª ed., Alphen aan den Rijn, Kluwer Law International B.V., 2018.

MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2017.

NOONAN, JR., JohnvT./GAFFNEY, Edward Mcglynn G., Jr., Religious Freedom: History, Cases, and Other Materials on the Interaction of Religion and Government. 3ª ed. New York: Foundation Press, 2011.

PORTO, Larissa Cristine Gondim. Uma teoria sobre tolerância: o conceito de tolerância na formação dialética da subjetividade. (Tese de doutorado apresentado à Universidade Federal de São Carlos), São Carlos, 2019, 289 págs., disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/11777/Larissa%20C.%20G.%20Porto.%20Tese%20completa.%20Dep%c3%b3sito.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 26/04/2022.

RAIMUNDO, Miguel Assis, Direito Administrativo da Religião, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988. Consultor Jurídico, 10/07/2015, disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/direitos-fundamentais-liberdade-religiosa-dever-neutralidade-estatal-constituicao-federal-1988. Acesso em:22/04/2022.

SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.

STRUCHINER, Noel. Indeterminação e objetividade. Quando o direito diz o que não queremos ouvir. Direito e interpretação: racionalidades e instituições. Ronaldo Porto Macedo Júnior; Catarina Helena Cortada Barbieri (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2011.

WILLIAMS, Rowan. Secularism, Faith and Freedom. Palestra do Arcebispo proferida na Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Roma, 2006. Disponível em: https://virtueonline-org.translate.goog/vatican-city-secularism-faith-and-freedom-rowan-williams?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=sc. Acesso em: 21/04/2022.

  1. STRUCHINER, Noel. Indeterminação e objetividade. Quando o direito diz o que não queremos ouvir. Direito e interpretação: racionalidades e instituições. Ronaldo Porto Macedo Júnior; Catarina Helena Cortada Barbieri (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2011, p. 130.

  2. Idem, p. 129/130.

  3. HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. (trad. A. Ribeiro Mendes), 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 157/158.

  4. Constituição Portuguesa: Art. 41. 4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

  5. CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1993.

  6. Adota-se uma perspectiva de que norma e texto normativo não se confundem, de modo que o texto pode permanecer inalterado, mesmo quando a norma que dele é extraída se modifique.

  7. Confira-se o texto do voto: Os modelos confessionais e interconfessionais de ensino religioso são, no entanto, incompatíveis com a exigência de separação formal entre o Estado e as religiões. Quando se permite que alunos recebam instrução religiosa de uma ou de várias religiões dentro das escolas públicas, torna-se inevitável a identificação institucional entre o Estado, que oferece o espaço público da sala de aula durante o período letivo, e as confissões, que definem os conteúdos a serem transmitidos. A violação à separação formal fica ainda mais nítida nos casos em que se exige que os professores da disciplina sejam representantes religiosos ou pessoas credenciadas por Igrejas e, ao mesmo tempo, se admite que sejam remunerados pelo Estado, em contrariedade à vedação expressa do art. 19, I da Constituição.

  8. Quando se diz religiões, já queremos deixar implícitas as opções pelo ateísmo, agnoscitismo etc., sendo utilizado em sentido amplo como opção religiosa das pessoas.

  9. Confira-se trecho do voto: Entretanto, em ambos os cenários (ensino confessional e interconfessional), o Estado afeta a garantia de liberdade religiosa, ao criar um ambiente escolar incapaz de assegurar a liberdade religiosa dos alunos que professam as crenças não representadas nas aulas. () Crianças e adolescentes, ainda em fase de desenvolvimento de sua personalidade e autonomia, são especialmente influenciáveis por seus professores e colegas e querem sentir-se aceitos e integrados em suas turmas. A sensação de exclusão, por professarem crenças diferentes da maioria dos seus colegas, pode levá-los a não expressarem suas preferências religiosas, bem como produzir uma perniciosa diminuição de sua autoestima e estigmatização face à comunidade escolar.

  10. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 415/417.

  11. Não se está a dizer que seria bom ou ruim essa reinterpretação, nem que seria juridicamente válida essa reinterpretação, mas apenas mencionando que o STF poderia fazê-lo, sem entrar no mérito se tal atitute encontraria amparo jurídico ou não.

  12. Confira-se trecho importante do voto sobre este específico ponto: Não me parece possível, que essa Corte substitua a legítima escolha que o legislador constituinte originário fez pelo ensino religioso de matrícula facultativa pelo ensino de filosofia, história ou ciência das religiões; sem, logicamente, a possibilidade de essas matérias serem ministradas paralelamente, com matrícula obrigatória.

  13. Confira-se trechos representativos: É nesse contexto que deve ser compreendida a previsão do ensino religioso: trata-se de aproveitar a estrutura física das escolas públicas tal como amplamente existente no espaço público de hospitais e presídios, que já são utilizados em parcerias; É importante ressaltar que a separação entre Estado e as igrejas, proclamada no art. 19, inciso I, da vigente Constituição tal como em todas as Cartas do período republicano -, não prejudica a colaboração do Poder Público com entidades religiosas, como aquele mesmo dispositivo ressalva. Citem-se, como exemplo, as parcerias do Poder Público nas áreas da saúde com as Santas Casas de Misericórdia (católicas) e com a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, que tanto contribuem para a saúde no Brasil.

  14. É preciso perquirir o modelo de relação entre Estado-Igreja diante de um dado e específico ordenamento, pois, embora os instrumentos internacionais de defesa da liberdade religiosa e a interpretação que deles vem sendo feita por instituições internacionais apontem no sentido de uma crescente uniformidade dos modelos nacionais, a verdade é que as opções constitucionais e infraconstitucionais de cada tempo e lugar permitem diferenciar orientações distintas. A este respeito: RAIMUNDO, Miguel Assis, Direito Administrativo da Religião, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, p. 267.

  15. Nas etapas mais primitivas da humanidade, o homem viveu encerrado em círculos pequenos, dentro dos quais reinava uma uniformidade absoluta: uma mesma raça, um mesmo espaço vital, os mesmos interesses coletivos e a mesma religião. Dentro de cada círculo não havia oposição entre ordem religiosa e a ordem temporal.

  16. A doutrina aponta como sinônimo de erastianismo e cesaropapismo.

  17. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 93.

  18. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 35.

  19. O dualismo gelasiano, ao final do sec. V, foi a formulação do Papa Gelásio I sobre o dualismo cristão, que pode ser sintetizado em 8 pontos: (a) existem dois poderes diferentes para o governo do mundo, a sagrada autoridade dos pontífices e o poder real; (b) ambos são de ordem divina; (c) são independentes em suas respectivas ordens de competência; (d) nenhum está submetido ao outro; (e) submissão dos titulares de um poder ao outro quanto às funções próprias daquele; (f) a vida espiritual rege-se pelo poder do papa e dos bispos; (g) este poder merece maior reverência pois a dignidade da vida religiosa é superior à vida temporal; (h) essa maior reverência não se traduz num poder do Papa sobre o imperador. Esses princípios possuem um caráter prudencial, designando um difícil equilíbrio entre poder político e religião. Essa concepção gelasiana foi aceita enquanto os países da Europa continuaram a ser católicos. (ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 41/42)

  20. Também conhecido como clericalismo. As teses hierocráticas baseiam-se numa deformação medieval da doutrina de S AGOSTINHO, o chamado agostinianismo político, que reflecte uma evolução do pensamento sobre as relações entre os poderes espiritual e temporal que, a partir das formulações gelasianas, há-de chegar às posições que se redonduzem aos textos do Direito canônimo clássico. O seu núcleo doutrinal encontra-se na consideração da superioridade do poder espiritual sobre o temporal que leva a submeter o poder dos príncipes à jurisdição da Igreja porque é ao poder eclesiástico que compete julgar acerca dos pecados e absolvê-los. As bases do hierocratismo encontram-se assim no entendimento excessivamente amplo da competência em razão de pecado, como veículo de intervenção na substância das questões políticas; a isto acresce a atribuição de consequências políticas à excomunão dos príncipes, o que implicava a libertação do dever de fidelidade ao soberano. (ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 44)

  21. Também são expressões que designam essa realidade o galicanismo, jurisdicionalismo, febroanismo e josefinismo. Por regalia, apontada origem etimolígica de regalismo, designavam-se certos direitos úteis ou honoríficos dos Reis de França em algumas igrejas no tempo de vacância dos Bispados, consistente no recebimento de rendas, proposiçao de candidatos à ofícios eclesiásticos ou mesmo designação direta, o que deu origem à abusos. O regalismo consiste em um conjunto de técnicas de intervenção do monarca absoluto na parcela da Igreja presente em seu país, assentando-se no princípio da soberania dos Estados sobre todas as instituições existentes em seu território, inclusive a igreja. Portanto, há uma limitação da liberdade da Igreja e uma ingerência do Estado em questões religiosas. Ocorreu na sequência histórica da centralizaçao do poder político, a partir do séc. XVI, notadamente em países católicos. Instituições típicas do regalismo são: o padroado régio, e beneplático régio, o recurso à coroa e o controle do tribunal da Inquisição.

  22. Art. 16. Só a razão e a convicção, não a forma ou a violência, podem prescrever a religião e as obrigações para com o Criador e a forma de as cumprir; e, por conseguinte, todos os homens têm igualmente direito ao livro culto da religião, de acordo com os ditames de sua consciência; e é dever de todos praticar a indulgência cristã, o amor e a caridade uns para com os outros.

  23. Art. 10.º - Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

  24. A revolução americana é uma revolução tendencialmente pragmática, fruto do descontentamento perante a impossibilidade da expansão dos colonos ingleses para o Ocidente, em consequência do entendimento anglo-francês no final da Guerra dos Sete Anos () A revolução francesa tem, pelo contrário, um cunho acentuadamente ideológico. (ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 69).

  25. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 75.

  26. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 94, tradução livre.

  27. Um conjunto de crenças sobre a natureza e base do Estado e seu ordenamento correto em relação à religião.

  28. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 95, tradução livre.

  29. Não obstante, a tentadora ideia de que sempre exista uma definição adequada do que todos reconhecem como argumento público e razoável precisa ser encarada com atenção, não para restabelecer algum discurso dominante religioso ou ideológico que seja incontestável, mas para focalizar a questão de como uma sociedade lida com a variedade real e potencial colisão de entendimento do que é propriamente humano. Um debate, por exemplo, sobre o embrião, à eutanásia ou o casamento inevitavelmente trará argumentos que não se restringem à considerações pragmáticas de benefício individual ou do grupo. Nesse sentido: WILLIAMS, Rowan. Secularism, Faith and Freedom. Palestra proferida na Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Roma, 2006. Disponível em: https://virtueonline-org.translate.goog/vatican-city-secularism-faith-and-freedom-rowan-williams?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=sc. Acesso em: 21/04/2022.

  30. WILLIAMS, Rowan. Secularism, Faith and Freedom. Palestra proferida na Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Roma, 2006. Disponível em: https://virtueonline-org.translate.goog/vatican-city-secularism-faith-and-freedom-rowan-williams?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=sc. Acesso em: 21/04/2022.

  31. De fato, em razão da separação o Estado não se identifica com qualquer confissão religiosa, abstendo-se de interferir nesse domínio de sentido último da vida, para poder ser casa comum de todos os cidadãos, diferentemente dos Estados totalitários ou naqueles em que se verifica uma união com a religião.

  32. Insta registrar, porém, que os diversos regimes políticos delineiam, cada qual, uma noção de neutralidade para chamar de sua. O liberalismo, o socialismo/comunismo, o republicanismo, o comunitarismo e até mesmo o nacional-socialismo elaboraram noções de neutralidade que, apesar de diversas, têm como fundamento uma única preocupação: o estreitamento ou afastamento entre política e ética, a influência dos juízos de valor sobre decisões políticas. (GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022).

  33. A esse propósito, Bruno Martelo bem reconhece que a neutralidade não se assume como princípio constitucional uniforme aplicável a todo espaço europeu, antes cabendo a cada Estado definir por que forma vai relacionar-se com a religião, tratando-se, sobretudo, de uma opção política, influenciada pela tradição histórica e pelas características morais, sociais e culturais de cada país. (MARTELO, Bruno. Neutralidade e liberdade religiosa: a porta que Achbita abriu e que Bougnaoui não fechou. Comentários ao Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Seção) de 14 de março de 2017)

  34. Ingo Sarlet ilustra bem a controvéria com a controvérsia da colocação de símbolos religiosos em escolas e repartições públicas (v.g. crucifixo), concluindo que não se trata de necessariamente de uma única resposta correta, mas de uma resposta mais ou menos constitucionalmente adequada. (SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988. Consultor Jurídico, 10/07/2015, disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/direitos-fundamentais-liberdade-religiosa-dever-neutralidade-estatal-constituicao-federal-1988. Acesso em:22/04/2022)

  35. MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 427, apud ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, p. 435.

  36. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 87, tradução livre.

  37. No Brasil, THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI já observava que a laicidade absoluta é uma forma de intervenção do Estado nas consciências, porque contribui para formação do espírito leigo, hostil a qualquer manifestação de natureza religiosa. (CAVALCANTI, Themistocles Brandão. A Constituição Federal Comentada, 3ª. ed., J. Konfino Editor, 1959, p. 101)

  38. ESBECK, Carl. A Constitucional Case for Governmeental Cooperation with Faith-Based Social Service Providers, 1997, p. 46, apud AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 87/88, tradução livre.

  39. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 97, tradução livre. Apontam-se as conclusões de referidos autores: O modelo do Estado laico traz consigo certos perigos. O separacionismo em um sentido puramente estrutural, onde o Estado e os corpos religiosos enquanto instituições são mantidos separados, não é tão problemático. O muro pode servir bem à religião, protegendo-a dos tentáculos da interferência estatal. O separacionismo em sua forma ideológica - uma estrita quarentena de ideias e influências religiosas de todas as instituições públicas e vida política é uma questão diferente () Embora seja concebível que o secularismo possa assumir formas benignas e imparciais que acolhem contribuições religiosas para a esfera pública, a tendência mais prevalente, na prática, é que o secularismo seja hostil à religião. O secularismo raramente permanece por muito tempo como uma recusa direta do Estado em se alinhar ou estabelecer uma fé particular; em vez disso, a experiência sugere que ela inexoravelmente desenvolve um compromisso de buscar ativamente uma política de incredulidade estabelecida. Uma completa privatização da religião pelo Estado, agravada pelo endosso oficial de crenças seculares, nega a muitas confissões o testemunho público que desejam, e de fato são obrigados a dar. (p. 123, tradução livre)

  40. CHAPLIN, Jonathan. Talking God: The legitimacy of Religious Public Reasoning. London: Theos, 2008, ch 1, 23.

  41. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 112/119.

  42. Todavia, isso nem sempre é fácil. Por exemplo, se a polícia se recusar a permitir que os policiais usem barba, a comparação apropriada seria daqueles que desejem usar chapéus ou joias ou daqueles que, por razões médicas, não podem se barbear devido à sensibilidade da pele?

  43. NOONAN, JR., JohnvT./GAFFNEY, Edward Mcglynn G., Jr., Religious Freedom: History, Cases, and Other Materials on the Interaction of Religion and Government. 3ª ed. New York: Foundation Press, 2011, p. 798/809, tradução livre.

  44. Wisconsin vs Yoder foi o caso em que a Suprema Corte dos EUA concluiu que as crianças Amish não podiam ser submetidas à educação obrigatória após a 8ª série.

  45. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 116.

  46. A própria natureza supostamente neutra da neutralidade também é de ser pensada, pois como adverte Jónatas Machado: os valores do Estado Constitucional, incluindo os valores da dignidade, da liberdade, igualdade, democracia, da imparcialidade e do respeito mútuo, não nasceram num vácuo histórico, religioso e cultural, antes podem reclamar para si um pedigree com uma matriz filosófica e religiosa bem identificada. Os mesmos estão longe de constituir uma evidência, como bem demonstra a história das ideias e das instituições políticas. Neste sentido, a própria neutralidade do Estado Constitucional é sempre relativa, na medida em que o próprio tem subjacentes decisões de valor (Wertentscheidungen) que, em última análise, não são inteiramente neutras nas suas pressuposições fundamentais. (MACHADO, Jónatas. A jurisprudência constitucional portuguesa diante das ameaças à liberdade religiosa. in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 82 (2006).

  47. O documento atualiza a Declaração Dignitatis humanae/1965, decorrente do Concílio Vaticano II. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20190426_liberta-religiosa_po.html. Acesso em: 23/04/2022.

  48. Sobre a esfera pública e razão pública: no início do Estado Moderno, essa noção de neutralidade teve sua razão de ser, principalmente em face de conflitos religiosos. O neutralismo era o argumento que justificava a separação entre Estado e Igreja, de modo que Locke afirmava não caber ao magistrado o uso da força em questões de credo, pois a perseguição é um instrumento irracional para a conversão, já que não é capaz de gerar a verdadeira fé, e o magistrado não é autoridade legítima para julgar acerca da salvação das almas alheias, porque seu poder se impõe apenas sobre questões terrenas (LOCKE, 2007, p.57). Ocorre que, posteriormente, o argumento do neutralismo não intervencionista sofisticou-se e passou a abranger outras dimensões da vida humana, como a economia e a moral, dando origem a um Estado Mínimo em conteúdo, que encontra na neutralidade um fundamento de justiça e inclusão. A antiga divisão entre Estado e Igreja deu origem à distinção entre esfera pública e privada, e as decisões de fé ampliaram-se para as decisões acerca de concepções de vida boa e de bem, ou seja, concepções sobre valores em geral. Essa espécie de neutralidade deu origem, à sobrevalorização de sujeitos políticos neutros e racionais, que fundam a sociedade civil a partir de um pacto sobre princípios de justiça universais, como na teoria política de John Rawls (2002. p. 19). Em sua teoria, Rawls afirma que um conjunto de pessoas, submetidas a um véu da ignorância, utilizariam um procedimento eletivo sobre determinadas questões para, assim, chegar à formulação geral de princípios de justiça universais que regeriam a estrutura básica da sociedade. Uma característica importante desses princípios, além da sua suposta universalidade, é o fato de que eles representam esquemas procedimentais de justiça que independem de um conjunto de concepções de bem, ou de uma noção substancial do que seja uma vida boa, para serem articulados na vida política. A neutralidade é, portanto, uma garantia de justiça, tendo em vista que, em face do pluralismo, a ostentação pública de uma determinada concepção de bem poderia servir como meio de opressão e exclusão. E, para garantir que isso não aconteça, é necessário que seja feito um acordo racional sobre as regras que regem a discussão pública, ou seja, torna-se necessário o surgimento de um conceito de Razão Pública, como forma apropriada de discussão entre cidadãos iguais. É nesse cenário que o neutralismo influencia um segundo conjunto de teorias liberais, conhecidas como teorias deliberativas, que têm como fundamento regras do discurso e justificações internas que preveem não só a necessidade da participação, real ou possível, de todos os concernidos, mas que também se preocupam com a livre articulação dos atos da fala que, na esfera política, poderiam ser descritos como o direito de voz e voto. Acontece que, mesmo em teorias deliberativas, os acordos relativos à racionalidade pública têm como fundamento uma esfera pública neutra. Essa neutralidade é garantida pelas regras do jogo linguístico, que não possuem abertura suficiente para a aceitação de discursos tradicionais, fundamentados em valores comunitários e não em racionalidades instrumentais. Geralmente esses discursos são excluídos da esfera pública, por não serem considerado razoáveis. (GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022)

  49. Laicidade é sinônimo de não confessionalidade e não se confunde com laicismo. No contexto europeu, a doutrina costuma distingui-los: (a) laicidade pretende designar uma atitude de neutralidade benevolente por parte dos poderes públicos, respeitadora da do religioso nas suas diversas manifestações, nos termos da qual estes se abstêm de tomar posição sobre o problema da verdade religiosa. ; (b) laicismo designa uma verdadeira filosofia ou ideologia, no sentido de concepção global do mundo, da existência e da conduta moral, consistindo em um dogma antidogmático, de uma metafísica antimetafísica, de um racionalismo antropológico que exclui qualquer referência teológica a uma verdade transcendente alicerçada na revelação (MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 306, nota de rodapé nº 1011); nessa medida, traduz-se numa atitude de relativa hostilidade perante a religião, ao seu afastamento do espaço público e à promoçao deliberada de uma secularizada e indiferente perante a religião. Ressalte-se que, o pensamento laicista teve papel importante na consolidação jurídico-constitucional da igual liberdade religiosa das minorias e da separação das confissões religiosas do Estado. Muitos de seus excessos, devem-se, segundo aponta Jónatas Eduardo Mendes Machado, à obstinação com que as confissões religiosas dominantes procuravam conservar os seus privilégios tradicionais e as suas prerrogativas de direito público, bem como ao modo como esconjuravam toda a dissidência religiosa. Por isso, o clericalismo era visto como um inimigo a ser combatido. Do pensamento laicista o constitucionalismo deve reter a ênfase na liberdade de pensamento e de religião, bem como no princípio da neutralidade do Estado e dos espaços públicos. (MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 307/308). O laicismo é radicado no republicanismo europeu e pretendia estabelecer um corte radical com os modelos de unidade político-religiosos do antigo regime, substituindo-os por uma abordagem crítico-racional dos vários domínios da vida social. Fundamenta-se em pré-compreensões positivistas, racionalistas, cientificistas e anti-metafísicas, e à um método de verificação. As proposições religiosas são consideradas superstição e fruto da menoridade intelectual dos indivíduos. A razão e a ciência são aliadas ao progresso econômico, social e cultural, enquanto a fé é associada à estagnação e à ignorância.

  50. MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier. Religion and Law in Spain. 2ª ed., Alphen aan den Rijn, Kluwer Law International B.V., 2018.

  51. O que significa para o governo tratar os cidadãos como iguais? Essa questão, penso, é igual à questão do que significa para o governo tratar todos os cidadãos como livres, como independentes ou com igual dignidade. De qualquer modo, é uma questão que tem sido central para a teoria política desde Kant, pelo menos. Pode-se responder de duas maneiras fundamentalmente diferentes. A primeira considera que o governo deve ser neutro sobre o que se poderia chamar de questão de viver bem. A segunda supõe que o governo não pode ser neutro em tal questão porque não pode tratar os cidadãos como seres humanos iguais sem uma teoria do que os seres humanos são [...] A primeira teoria da igualdade supõe que as decisões políticas devem ser, tanto quanto possível, independentes de qualquer concepção particular do que é viver bem, ou do que dá valor à vida. Como os cidadãos de uma sociedade divergem em suas concepções, o governo não os trata como iguais se prefere uma concepção à outra, seja porque as autoridades acreditam que uma é intrinsecamente superior, seja porque uma é sustentada pelo grupo mais numeroso ou mais poderoso. A segunda teoria afirma, pelo contrário, que o conteúdo do igual tratamento não pode ser independente de alguma teoria sobre o que é bom para o homem ou o bom da vida, pois tratar uma pessoa como igual significa tratá-la de maneira como a pessoa boa ou verdadeiramente sábia desejaria ser tratada. O bom governo consiste em tratar cada pessoa como se ela desejasse levar a vida que de fato é boa, pelo menos na medida do possível. (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 285).

  52. SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5, p. 1763. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.

  53. GONDIM, Larissa Cristine Daniel. O conceito de neutralidade: aspectos políticos e jurídicos. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=798e5a5dc5f4a19a, acesso em: 24/04/2022. Conquanto a autora trabalhe com a noção de neutralidade em um sentido mais amplo e não especificamente relacionado às questões religiosas ou à relação entre Estado e Igreja, seus fundamentos calham, porque os valores religiosos participam dos valores subjetivos que interferem na neutralidade, bem como parece bem interessante os problemas que a autora aponta em se defender a separação entre os espaços público e privado.

  54. MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 61.

  55. A liberdade de religião configura-se principalmente como uma liberdade negativa; pois, consistindo no direito de abraçar ou não uma religião e de mudar de religião, isto significa que ela é uma liberdade de defesa perante o Estado. O Estado não pode proibir religiões (salvo nas práticas incompatíveis com a dignidade humana), nem impor a ninguém qualquer religião, assim como não pode impedir ninguém de professar determinada religião. A dimensão negativa é ainda a dimensão dominante quanto ao cumprimento dos deveres pelos seguidores de uma determinada religião (em matéria de culto, família, ensino) sem prejuízo das dimensões prestacionais positivas do Estado no sentido de proporcionar as condições para o cumprimento desses deveres (por ex, reconhecimento dos casamentos religiosos, abertura das escolas públicas ao ensino da religião, condições de assitência religiosa nas instituições públicas, nomeadamente prisões, hospitais, forças armadas etc.). (CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol 1, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 610)

  56. Sobre dimensão positiva dos direitos, confira: MIRANDA, Jorge. Direitos fundamentais. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 128

  57. De fato, são várias as indicações constitucionais a respeito da importância dada ao fenômeno religioso, o que determina que seja encarado com um viés positivo pelo Estado e pelo Direito. Portanto, uma vez mais se destaca o sentido que a separação deve ter para ser adequada, chegando alguns autores a diferenciar separação de separatismo. Nesse sentido: GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, religião e sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012, p. 32.

  58. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 420.

  59. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 508.

  60. Antunes Varela citado em: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 434.

  61. Os regimes de coincidência tanto podem ser de teocracia, com subordinação do poder civil ao religioso, como de cesaropapismo, regalismo ou jurisdicionalismo, formas estas às quais é comum a assunção pelo próprio Estado de poderes em matéria espiritual e de intervenção na vida das confissões religiosas: todos são afastados pelo princípio de separação. (RAIMUNDO, Miguel Assis, Direito Administrativo da Religião, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, p. 274)

  62. RAIMUNDO, Miguel Assis, Direito Administrativo da Religião, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012, p. 270.

  63. AHDAR, R./LEIGH, I. Religious Freedom in the Liberal State, Oxford, Oxford University Press, 2005, p 251.

  64. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 307.

  65. A equidade, conforme já se ressaltou, muitas vezes demanda atuações estatais ou disponibilização da estrutura pública. Nesse tocante, a liberdade religiosa, como integrante do núcleo de valores que dá significado e importância à vida da pessoa, é passível de, em determinadas situações, demandar atuações públicas ou a disponibilização de estrutura pública para que tenha valor ao indivíduo. Negar à liberdade religiosa qualquer atuação ou disponibilização, mesmo que importante para a sua eficácia, pelo argumento da laicidade do Estado, é voltar aos termos do liberalismo clássico, em que a liberdade seria tão melhor e efetivamente vivenciada quanto maior fosse a abstenção e não intervenção do Estado. Nesse sentido: SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.

  66. SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio. Laicidade, neutralidade e igualdade: ensino religioso em escolas públicas. RJLB, Ano 6 (2020), nº 5. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/5/2020_05_1753_1779.pdf. Acesso em: 22/04/2022.

  67. Importa considerar que a função promocional do Estado junto aos direitos de personalidade revela-se, tão e mais sensível, quando se foca na igualdade informada pela justa oportunidade: aos pais que podem custear ensino particular, é possível a opção por um colégio cuja grade curricular contenha o ensino de determinada religião; aos pais que não possuem condições de pagar por uma educação dessa natureza, não se lhe asseguraria ao filho o acesso à educação religiosa, ainda que fosse do seu gosto. Nesse sentido: SIQUEIRA, Natercia Sampaio; SIQUEIRA, Marcelo Sampaio, ob cit.

  68. Alguns consideram que a disciplina do ensino religioso não deveria, pura e simplesmente, integrar o currículo escolar; sendo concebida, quando muito, como atividade extra-curricular, que a escola poderia acolher como acolhe outras atividades da sociedade civil. Porém, MIGUEL ASSIS RAIMENDO entende que há um valor e um sentido para a educação religiosa como parte da educação integral, mesmo em um Estado laico, que justifica a inclusão curricular. (RAIMUNDO, Miguel Assis, Direito Administrativo da Religião, in OTERO, P. e GONÇALVES, P. (Org.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. VI, Livraria Almedina, Coimbra, 2012 P. 367)

  69. CANOTILHO, MOREIA, ob. cit. p. 615.

  70. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 342.

  71. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 508.

  72. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol 1, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 627.

  73. ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. (dissertação de doutoramento) Coimbra: Almedina, 2002, p. 435.

  74. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito, religião e sociedade no Estado Constitucional. Lisboa: IDILP, 2012, p. 331.

  75. MARTÍNEZ-TORRÓN, Javier. Religion and Law in Spain. 2ª ed., Alphen aan den Rijn, Kluwer Law International B.V., 2018.

  76. A tolerância, para além de representar um ato de suportar algo desagradável, mesmo que se pudesse evitá-lo, está mais bem representada por uma perspectiva intersubjetiva, já que esse algo desagradável, na verdade, é um outro sujeito que exterioriza certa conduta. Assim, tolerância passa a corresponder a restrição recíproca de um desejo em si em face do desejo de outro, de forma que o sujeito tolerante restringe seu desejo e opera um duplo movimento negativo, em que se alheia e ao mesmo tempo se identifica com o sujeito tolerado, este que também realiza o mesmo movimento de forma recíproca. Assim, através do reconhecimento, ambas as partes, seja o tolerante ou o tolerado, podem realizar uma unidade em si e para si e, assim, estabelecerem-se reciprocamente como sujeitos. Para maior aprofundamento sobre a ideia de tolerância, confira: PORTO, Larissa Cristine Gondim. Uma teoria sobre tolerância: o conceito de tolerância na formação dialética da subjetividade. (Tese de doutorado apresentado à Universidade Federal de São Carlos), São Carlos, 2019, 289 págs., disponível em: https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/11777/Larissa%20C.%20G.%20Porto.%20Tese%20completa.%20Dep%c3%b3sito.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 26/04/2022.

    MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p 380.

  77. Nesse sentido: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, p. 441.

  78. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p 380.

Sobre o autor
Ari Timóteo dos Reis Júnior

Procurador da Fazenda Nacional. Mestre em Direito. Professor de Direito Tributário. @ari_timoteo_junior

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!