6. Duração razoável do processo, inadimplemento estatal, estrutura e aspecto cultural.
Como já abordado anteriormente, ao monopolizar o poder jurisdicional, o Estado passou a ser responsável por estendê-lo a todos, em repúdio à idéia de tutela seletiva. Tornou-se, com isso, garantidor do resultado útil do processo. Viu-se, ainda, que a utilidade da tutela está relacionada à efetiva entrega do bem jurídico e ao compromisso de que esta se dê em tempo razoável.
É possível, diante disso, identificar um dever jurídico à prestação da tutela jurisdicional satisfatória, pois seria intolerável a via da mão-própria. Como o Direito é uno, não se divide em compartimentos estanques, como se lho faz para fins didáticos, busca-se no Direito Civil os fundamentos do que seria, sob o prisma dos efeitos da demora (práticos) na prestação jurisdicional, o equivalente ao inadimplemento.
No direito substantivo, a doutrina fala em incumprimento definitivo [21] quando a prestação não é prestada como devida, não mais o podendo sê-lo. A prestação da tutela jurisdicional a destempo equivale analogicamente à figura do adimplemento instatisfatório [22], que é espécie de inadimplemento ou, na melhor das hipóteses, equivalerá à mora.
Logicamente, não se pretende, neste estudo, adentrar no campo dos efeitos do inadimplemento pelo Estado, tampouco discutir o dever de reparar o prejuízo causado.
Todavia, atente-se que a inserção do dispositivo contido no inciso LXXVIII do artigo 5º da CR/88 visa justamente evitar que a prestação estatal seja demorada de modo tal que não possa ser fruída (total ou parcialmente) pela parte vencedora.
A inserção desse dispositivo, que, por força do parágrafo 1º do artigo 5º, tem aplicação imediata, reflete uma reação ao Sistema, que sabidamente não vem cumprindo a prestação jurisdicional segundo os fins a que o Estado se propôs. Importa, ainda, um reforço ao dever jurídico de aparelhamento dos poderes na preservação da cidadania, como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso II, da CR/88).
Nesse sentido, MARINONI sinala que o grande problema, na verdade, está em construir tecnologias que permitam aos jurisdicionados obter uma resposta jurisdicional tempestiva e efetiva. Isto é difícil não somente porque a necessidade de tempestividade modifica-se de acordo como as mudanças da sociedade e dos próprios direitos, mas também porque o Estado apresenta dificuldades em estruturar-se de modo a atender a todos de forma efetiva. [23]
Em suma, para que a prestação jurisdicional seja cumprida satisfatoriamente, além de criar procedimentos formalmente céleres e que visam à imediata entrega do bem da vida, o Estado deve aparelhar-se. Isso implica mão-de-obra (qualificada), instalações físicas e equipamentos. Mais das vezes a prestação jurisdicional, num país pobre como o Brasil, sofre os efeitos da demora também pela falta de estrutura.
Ora, não se pode, jamais, enfocar a prestação satisfatória da tutela, que tem por meio o processo, cuja duração atende ao mandamento constitucional de que seja razoável, sem atentar para a estrutura do Sistema.
Desse contexto, extrai-se mais uma conclusão: é razoável que o processo demore mais que o esperado se a estrutura disponível for determinante nesse sentido.
Por óbvio, a estrutura deve ser compatível com o volume de causas postas sob os ombros dos juízes. Todavia, concorda-se com CRUZ E TUCCI, quando afirma que E, ademais, é necessário que a demora, para ser reputada realmente inaceitável, decorra da inércia, pura e simples, do órgão jurisdicional encarregado de dirigir as diversas etapas do processo. É claro que a pletora de causas, o excesso de trabalho, não pode ser considerado, nesse particular, justificativa plausível para a lentidão da tutela jurisdicional [24].
Afora esse particular, para se aferir se a duração do processo é razoável há que se ponderar o volume de serviço e a estrutura disponível, sem desconsiderar a míngua instrumental de um país em desenvolvimento como o nosso. De se lembrar que a própria Constituição estabelece que não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver os autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão (Art. 93), punindo a prática quando injustificada, o que demonstra compreensão da ponderação dantes referida.
Por outro lado, é construtivo questionar se bastaria investimento suficiente em estrutura para resolver o problema. A resposta se apresenta olimpicamente em sentido oposto. O que se verifica é que a cultura ocidental tem utilizado como regra o recurso ao Poder Judiciário para a solução de questões prescindiriam dessa intervenção.
A saída que se apresenta mais atraente é buscar, cada vez mais o exemplo de outras culturas, tornando a apreciação pelo Poder Judiciário exceção, por meio de instâncias privadas de conciliação, como já se vê o tímido exemplo dos Juizados Arbitrais. O lento crescimento dessas instâncias deve-se ao descrédito que a sociedade tem em si mesma para a solução de conflitos, o que se deve única e exclusivamente ao aspecto cultural.
Em síntese, pode-se dizer que o Estado que centraliza em si todos os conflitos sem capacidade de suprir a demanda torna-se inadimplente no cumprimento do encargo de garantidor do resultado útil do processo, em que se inclui, como visto, o aspecto da celeridade. O correto é buscar uma alteração paulatina desse ponto de vista consagrador do conceito de que o recurso ao Poder Judiciário é a regra na busca da paz social.
Todavia, não se pode deixar de mencionar a existência de estratégias legais para solução de conflitos que visam minorar o problema, tais como a possibilidade da autocomposição, gênero da qual são espécies a transação (concessões mútuas), a submissão (de um à pretensão de outro: reconhecimento da procedência do pedido) e a renúncia da pretensão deduzida. Há um incremento do prestígio da autocomposição como forma de solução de conflitos. Basta ver, por exemplo: a) a estrutura do procedimento trabalhista, pautado na tentativa de conciliação; b) o atual inc. IV do art. 125, CPC, que determina ao magistrado o dever de tentar conciliar as partes a qualquer tempo; c) os Juizados Especiais, também estruturados para a obtenção da solução autocomposta; d) a possibilidade de transação penal; e) a inclusão de uma audiência preliminar de tentativa de conciliação no procedimento ordinário (art. 331 do CPC), sendo possível, ainda, a inclusão no acordo jurídico de matéria estranha ao objeto litigioso (art. 475-N, III, CPC) [25].
Fredie Didier Jr. também refere a mediação como forma não estatal de solução de conflitos e a Lei nº 9.307/96, referente à arbitragem, mencionando a possibilidade prevista no parágrafo 2º do artigo 114 da Constituição Federal, desde a EC nº 45/04 [26].
Enfim, não se pode dizer que o legislador está inerte em face das questões que rondam a prestação jurisdicional, adequando o procedimento ao direito subjetivo tutelado (Princípio da adequação).
7. Conclusão.
Qualquer ensaio acerca da efetividade da jurisdição ou acerca do que é razoável duração do processo passa, inafastavelmente, pela correta aplicação de princípios constitucionais, porquanto é a Constituição que estabelece a atuação jurisdicional do Estado, cujo instrumento é o processo.
O Estado Brasileiro, nesse sentido inseriu a duração razoável do processo entre o rol de diretos e garantias fundamentais, embora o sistema já assim previa desde a integração do Pacto de São José da Costa Rica.
Importa dizer, em primeiro lugar, que esta norma não pode ser lida isoladamente de outras normas garantidoras, a fim de preservar o devido processo legal, porquanto dele emana, assim como inúmeras outras. Somente assim atuação jurisdicional será útil, já que distribuirá igualitariamente a justiça, na busca de servir como convincente meio de substituição das partes.
Sob o prisma da duração do processo, também cabe observar o tratamento estatal dispensado aos litígios que surgem no seio social, o meio objetivo em que tramita, bem como a atuação dos sujeitos processuais.
É sempre útil empenhar-se, portanto, pelas formas de composição autorizadas pelo ordenamento jurídico, bem como na criação de outras tantas quanto bastem a desafogar o sistema e melhor atender à efetividade do direito tutelado, papel que deve ser perseguido pelo Estado e respaldado pela sociedade, paralelamente à atuação daquele como prestador da jurisdição, na via administrativa.
Para solução da demora, é preciso considerar, ainda, o meio objetivo em que o processo tramita, porque não se pode exigir esforço desumano dos operadores do Direito, diante do desaparelhamento estatal, tampouco se pode atropelar a realização de diligências determinantes que, por sua natureza, não prescindem de tempo.
A atuação dos sujeitos processuais segue rigorosamente o duplo dever de pautar pela boa-fé e de fiscalizar o processo. Ao se detectar a atuação em prejuízo a qualquer das partes, esta prática deve ser censurada sob o prisma da violação de um direito fundamental. Já no plano da fiscalização e detecção, não se pode desconsiderar o comando da razoabilidade, tendo em conta esse conjunto de fatores, sem esquecer que a exigência de um direito sem dilações indevidas, ou seja, de uma proteção judicial em tempo adequado, não significa necessariamente justiça acelerada, bem como que a aceleração da proteção jurídica que se traduza em diminuição de garantias processuais e materiais (prazos de recurso, supressão de instâncias) pode conduzir a uma justiça pronta, mas materialmente injusta, conforme ponderou Canotilho.
Diante disso tudo, pode se concluir que a ponderação de todos os fatores tratados neste ensaio são instrumentos ao juízo de razoabilidade na apuração da justa duração do processo. De nada importa o empenho em editar novas leis, contudo, se não se trabalhou o fator cultural, bem como não resolve o problema recair a cobrança de celeridade somente sobre os ombros do Poder Judiciário, em que se vê um pequeno número de juízes e servidores fatigados diante de um sem número de litígios postos sem critério à sua apreciação (o que não implica dizer criar qualquer óbice ao acesso à Justiça, mas sobretudo realçar a confiança nas formas de autocomposição).
A efetividade da prestação jurisdicional, portanto, não se realiza com a entrega do bem jurídico em litígio, porquanto se entregue a destempo pode tornar inútil a prestação, ferindo garantia constitucional. Por fim, a busca de uma solução, em que pese requeira profundas reflexões e atitudes, também revela o empenho na elevação cultural e dos padrões morais da sociedade.
REFERÊNCIAS
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DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 4ª edição revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 1994.
MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Ed. RT, 2004.
MARINONI, Luiz Guilherme. O Custo e o Tempo do Processo Civil Brasileiro. Disponível em: http://www.professormarinoni.com.br/admin/users/05.pdf.
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol V. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 20ª edição. vol. II. São Paulo: Saraiva,1999.
TEIXEIRA, Salvio de Figueiredo. O Processo Civil na Nova Constituição. Revista da AJURIS nº 44. Porto Alegre, nov. 1988.
TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma Teoria Geral do Porcesso. São Paulo: Ed. Saraiva, 1993.
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela. 3ª edição revista e ampliada. São Paulo: Ed. Saraiva, 2000.
NOTAS
01 É por esse motivo que se opta pela terminologia Efetividade da jurisdição ou da tutela jurisdicional e não efetividade do processo. Assim se lho faz para guardar coerência lógica, porque a análise crítica tem como mote o adimplemento do papel estatal, em que o processo é o modus operandi. Em última análise, portanto, a efetividade analisada não é do instrumento jurisdicional, mas da própria jurisdição, ao passo que daquele a análise cinge-se a ser ou não eficaz para a consecução da finalidade estatal. Correta, por exemplo, a terminologia utilizada por Cândido Rangel Dinamarco, ao afirmar que O processo há de ser, nesse contexto, instrumento eficaz para o acesso à ordem jurídica justa, como refere em seu famoso livro A Instrumentalidade do Processo. (Ed. Malheiros, 4ª ed., p. 309).
02 J. J. GOMES CANOTILHO. Direito Constitucional. Ed. Coimbra-Almedina, 1993, 6ª ed., p. 95.
03 TEIXEIRA, Salvio de Figueiredo. O Processo Civil na Nova Constituição, Ajuris, Porto Alegre, 44:86-95, nov. 1988.
04 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela. Ed. Saraiva, 2000, 3ª ed., p. 64.
05 O que remonta a definição de Chiovenda acerca da jurisdição, logo no Título I do prestigioso Instituições de Direito Processual Civil, in verbis: Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-lo, praticamente, efetiva. Aqui, inclusive, a idéia de efetividade está lançada.
06O processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir. Op. Cit., p. 67.
07 FREDIE DIDIER JR.. Curso de Direito Processual Civil. Volume I, p.39. Podivm, 2007.
08 MARINONI, Luiz Guilherme. O Custo e o Tempo do Processo Civil Brasileiro. Disponível em: http://www.professormarinoni.com.br/admin/users/05.pdf.
09 Moacyr Amaral Santos leciona que o caráter de direito subjetivo processual e, portanto, público, ressalta do direito de defesa quando se considera que o réu, exercendo-o, também está a exigir do Estado a prestação jurisdicional que componha a lide. O autor, acionando, e o réu, defendendo-se, reclamam uma providência jurisdicional, uma provisão jurisdicional, pela qual se lhes faça justiça. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. II, Saraiva:1999.
10 Conforme ensina o Prof. Tesheiner, O processo é uma relação jurídica. Uma relação jurídica complexa: um autor, um juiz, um réu (Elementos para uma Teoria Geral do Porcesso. Ed. Saraiva, 1993, p. 2).
11 CARNELUTTI, Francesco. Instituições de Processo Civil. Vol. 1. Servanda: 1999, p.339-340.
12Op. Cit., p. 77.
13 MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 3ª ed. Ed. RT, 2004, p.275.
14Op. Cit., p. 677.
15 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. Malheiros, 4ª ed, p. 310.
16Op. Cit., p. 317-318.
17Op. Cit., p. 318.
18Op. Cit., p. 309.
19Op. cit., p. 54.
20 Aqui DIDIER cita interessante observação de Calmon de Passos no tocante à advertência séria acerca da cautela com o preciso sentido de instrumentalidade. Op. cit, p. 54.
21 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Tomo II. Forense:2004, p. 148.
22 Por óbvio, guardadas as distinções, porque não se está no campo do direito privado, inclusive quanto aos deveres violados e o sujeito que viola.
23 Artigo citado, disponível em http://www.professormarinoni.com.br/admin/users/05.pdf.
24 José Rogério Cruz e Tucci e. Garantia do processo sem dilações indevidas. Obra citada por DIDIER JR. Op. cit., p. 40.
25 FREDIE DIDIER JR.. Curso de Direito Processual Civil. Tomo I, p. 70.Podivm, 2007.
26Op. Cit.