Resumo: A observação da experiência brasileira de corrupção na política questiona os pressupostos sociológicos sob os quais o direito pode interferir nos processos políticos decisórios corruptos. O direito apenas cria procedimentos que ambientalizam o sistema político, permitindo à política "auto-organizar-se" através de um cálculo de risco. A autonomia autopoiética do direito e da política impede a descrição de um sistema de controle linear de corrupção, mas possibilita observar um potencial do direito em definir procedimentos capazes de garantir a transparência das motivações exteriores às decisões políticas. A experiência brasileira de corrupção no sistema político submeteu a comunicação política a um paradoxo (silêncio/fala política), cuja assimetrização exige a indicação de um terceiro valor criativo. Esse terceiro valor é um projeto aberto de futuro, que oportuniza repensar o projeto político da modernidade a partir do modelo de democracia deliberativa de Habermas.
Palavras-chave: direito; corrupção; comunicação; democracia.
1 Introdução
Diante das amostras de corrupção generalizada na Política brasileira, pode-se questionar as condições sociológicas do direito no corrompimento da corrupção. Mas a pergunta "como o direito pode corromper a corrupção?" pressupõe a assimilação prévia das formas através das quais ela ocorre na sociedade. E uma teorização simplificada da corrupção acabaria apenas reproduzindo artificialmente algumas operações corruptas e então as soluções viriam automaticamente pelas conhecidas respostas igualmente simplificadas: maior controle e fiscalização sobre os partidos políticos, aumento das punições, reforma política, substituição das fontes privadas de financiamento dos partidos por financiamentos do Estado e etc.
Esta exposição sobre a corrupção não pretende continuar nesses esforços. Qualquer pergunta a respeito da corrupção responderá muito sobre o observador que a responde, mas quase nada sobre a corrupção. O risco da observação se tornar a visão de um "super-homem" metafísico e com uma "vontade de potência" tão motivadora quanto as motivações da corrupção exigem um posicionamento espistemológico diferenciado. Mas o outro lado da "vontade de potência" é o niilismo (Nietzsche, 1966), é o silêncio diante da insustentabilidade dos valores (morais, éticos, ideológicos, políticos) que não se poderia prescindir para os próprios posicionamentos da observação.
A corrupção generalizada no Partido dos Trabalhadores obriga os intelectuais de esquerda a conhecerem o niilismo nietzscheniano, isto é, o vazio de sentido quando as premissas de seus posicionamentos diante da sociedade revelam-se paradoxalmente imprescindíveis e insustentáveis. O resultado dessa experiência incorporada (Merleau-Ponty, 2003, p. 132) de corrupção generalizada é o silêncio e a procura desesperada por diferenciações capazes de garantir o sentido daquilo que foi corrompido. Assim como os procedimentos de punição dos culpados diferenciam os culpados dos inocentes, a manutenção do posicionamento político da esquerda pressupõe uma diferenciação entre membros corruptos-culpados e corretos-inocentes. Através desses procedimentos de diferenciação, baseados em nomes e em pessoas, o sistema partidário resolve seus problemas e a "vontade de potência" pode então se redistribuir entre os partidos existentes.
Entre o paradoxo da fala política e do silêncio, ou da "vontade de potência" e do niilismo ideológico-partidário, o que cai como pressuposto é um sistema de complexidade auto-estruturada que já dispõe de mecanismos que garantem a imunização diante de interferências externas. A "blindagem" da economia diante da corrupção no partido do governo é um exemplo dessa autonomia conquistada pelo sistema político e é nesse contexto de auto-organização sistêmica que, então, pode-se fazer a pergunta: como o direito pode corromper a corrupção?
Nesse sentido, os objetivos desta pesquisa são: a) descrever as formas através das quais torna-se possível observar a corrupção; b) descrever as condições sociológicas do direito na observação da corrupção; c) indicar como o direito pode ser utilizado como um mecanismo de produção de interferências nas operações sistêmicas de corrupção e d) descrever as prescrições da democracia deliberativa de Habermas como possibilidade latente oportunizada pelo paradoxo (silêncio/fala política) na experiência brasileira de corrupção. Os primeiros três objetivos serão trabalhados sob a perspectiva sistemista de Niklas Luhmann e as prescrições da democracia deliberativa serão trabalhadas na perspectiva da ação comunicativa de Jürgen Habermas.
2 A corrupção na forma de comunicação
O sentido da corrupção aparece na história em um contexto de diferença entre perfeição e imperfeição. A perspectiva aberta por esse sentido então se tecnizou na forma natural/corrupto. Só assim a natureza pôde ser ligada à idéia de perfeição, onde apenas o homem poderia ser corrupto. Essa perspectiva de sentido da corrupção, que pode ser nitidamente observada desde o "mundo das idéias" de Platão até as teorias políticas do século XVIII, é o que possibilita a qualquer pessoa atribuir responsabilidade por atos corruptos (não naturais) a quem age corrompendo a "natureza das coisas".
Esse sentido da corrupção como diferença do natural ainda pode ser verificado empiricamente na sociedade contemporânea. Os juízos morais, éticos e religiosos a respeito da corrupção trabalham com essa tecnização natural(perfeito)/corrupto. Mas na sociedade funcionalmente diferenciada, a percepção da corrupção torna-se problemática na medida em que um mesmo evento social pode ser qualificado ou não de corrupção, conforme o contexto a partir do qual ele é observado. Heidenheimer (1970) tentou resolver esse problema criando categorias analógicas. Peters e Welch (1978) utilizaram as categorias de Heidenheimer na forma de cenários em investigações empíricas. Mas os resultados dessas análises, centrados em indivíduos, ficaram limitados à ambivalência da moralidade e da coincidência entre norma jurídica e norma moral. Basta observar que cada "máfia" possui a sua própria moral de "ajuda ao próximo" e então sequer a moral ou a ética pode servir como critério de distinção entre o corrupto e o perfeito.
Outra perspectiva de pesquisas sobre corrupção surgiu a partir das análises de riscos para investimentos, onde a corrupção era considerada como fator importante na escolha dos investimentos (Speck, 2000, p. 20). Uma análise portanto econômica da corrupção foi a que tornou possível a abstração dos juízos individuais sobre cenários corruptos. Os famosos indicadores de percepção da corrupção (IPCorr), da Transparency International (www.transparency.org), são os que reúnem vários índices para a formação de indicadores disponíveis à mensuração da corrupção em diversos países. O Brasil sedia uma representação da TI desde 2000 (www.transparencia.org.br) e os resultados positivos podem ser observados, por exemplo, no acesso de informações sobre os processos de licitação no âmbito do Estado de Santa Catarina (www.licitassist.org.br).
A partir dessa definição de indicadores é que se tornou possível a criação de ferramentas para intervenções estratégicas nas diversas formas de corrupção. São os indicadores que possibilitam criar mecanismos de motivação e monitoramento de resultados acerca das intervenções. O Banco Mundial, por exemplo, desde 1996 integrou em suas linhas de ação o controle da "institutional dysfunction" (World Bank, 2000, p. 4), para coibir "the abuse of public office for private gain". Nesse contexto, pode-se observar a corrupção ainda ligada a ações de pessoas (agentes) em um contexto de sistemas de governança global, regional e local. A corrupção, ali, é um problema de eficiência econômica, oportunizada por falhas (pobreza, analfabetismo, desigualdade social, legislação eleitoral, licitações e atribuições dos Tribunais de Contas) em sistemas de governança e que, por isso, devem ser identificados e consertados.
Mas uma perspectiva jurídica a respeito da corrupção exige um maior grau de complexidade. A diferenciação funcional do direito em relação à moral e a outros contextos sociológicos de observação provocou a substituição do direito natural por um direito positivo (Luhmann, 1983). A positividade do direito então garantiu a imunidade do direito diante de considerações exteriores ao direito. A referência a partir da qual uma conduta poderia ser julgada como lícita ou ilícita não era mais um direito natural pressuposto nos considerandos das decisões jurídicas e a conduta contrária ao direito natural não poderia mais ser caracterizada como corrupta, se não proibida pelo direito positivo.
A corrupção, que pode ser vista como um problema de governança, pode também ser observada como um problema moral, ético e religioso. Mas só interessará ao direito, face a sua positividade, a corrupção que for objeto de norma jurídica, isto é, a corrupção descrita como suporte fático de norma jurídica. Assim, as expectativas sociais de punição dos corruptos podem ser satisfeitas na medida em que a conduta corrupta estiver tipificada na legislação penal e etc. Em outras palavras, se a conduta do suposto corrupto não tipificar peculato, concussão, corrupção passiva ou prevaricação, essa conduta não interessa para o direito. A observação jurídica da corrupção até pode ser ampliada se uma decisão buscar a referência nas fórmulas "função pública", onde então a conduta corrupta pode ser indicada como uma "disfunção pública" (Waldo, 2002); como também nas fórmulas "interesse público", "desvio de poder" "desvio de finalidade do ato administrativo", "bem comum" e etc. Mas mesmo assim, uma decisão jurídica – ao menos na tradição neo-kantiana do direito – parece não conseguir transpassar o simples cálculo comparativo entre o conteúdo normativo (dever ser) do direito, o conteúdo factual da conduta moralmente corrupta de pessoas (ser) e o resultado desse cálculo. Um cálculo portanto programado condicionalmente que, do ponto de vista da política, é o que permite um outro cálculo: o do risco na gestão de capitais simbólicos, como a reputação, seriedade, heroísmo e outros símbolos de valor que influenciam a opinião pública a respeito dos seus políticos.
Como se vê – e qualquer um pode, com razão, julgar essa simplificação jurídica como um reducionismo – o direito simplifica a complexidade sociológica dos eventos para tornar possível uma decisão jurídica. As operações jurídicas (decisões) estão obrigadas a essa "filtragem da realidade", porque de outro modo seriam decisões impossíveis ou não jurídicas. A diferenciação funcional do direito, conquistada através da sua positividade, é o que permite a uma decisão jurídica ser uma decisão que decide com referência à diferença entre direito e não direito, garantindo assim uma autonomia operacional que produz a própria identidade dessa decisão como decisão funcionalmente diferenciada (Luhmann, 2002). E é o que permite também, simultaneamente, aos outros sistemas planejarem suas próprias operações. A positividade do direito é o que permite aos demais sistemas da sociedade terem o sentido do futuro. Mas essa simultaneidade não significa sincronização entre direito, política, economia, ciência, educação e etc.: simultaneidade significa incontrolabilidade (Luhmann, 2002, p. 354).
O simultâneo é incontrolável porque, em uma perspectiva temporal (passado/futuro), o controle pressupõe uma comparação entre o presente e o passado: na simultaneidade, essa comparação se torna impossível; e em uma perspectiva objetiva (sistema/ambiente), já se pode supor que não há controle que não seja controlado e isso é, paradoxalmente, o que permite uma decisão jurídica sobre decisões políticas, econômicas, científicas, morais, éticas e etc., sem o risco dessa decisão jurídica deixar de ser jurídica para ser política, econômica, científica, moral, ética e etc. Por isso, para um relacionamento sistêmico entre a corrupção e o sistema jurídico, a observação precisa ir além das condutas de pessoas corruptas. Precisa observar a corrupção como um evento desvinculado linearmente das condutas de pessoas. Precisa observar a corrupção como comunicação. É desse ponto de vista (comunicativo), portanto, que se torna possível observar observações (Luhmann & De Giorgi, 2003), ou seja, observar como a observação de primeira ordem resolve os paradoxos da sua própria observação (Rocha, 1997).
A partir desse posicionamento pragmático-sistêmico (Rocha, 2001), pode-se observar que tanto as definições geográfica-espaciais do direito (cartesiana), como uma localização institucional (normativa neo-kantiana), perdem o sentido. A corrupção também perde o sentido de uma disfunção institucional ou geográfica. O direito e a corrupção passam a poder ser observados como formas de comunicação da sociedade que, por isso, podem estar em todo o tempo e lugar, disponíveis às decisões de qualquer sistema de organização ou de consciência. E os seus limites passam a ser limites tão-somente de sentido. Em outras palavras, o direito não está mais só na figura do Estado, mas em qualquer decisão que decide com referência ao código direito/não direito, segundo a adjudicação dos eventos do ambiente nesse código a partir de um programa condicional do tipo "se isso, então isto". E a corrupção, em qualquer decisão que decide com referência a um código estranho ao contexto da decisão. Essas observações cabem também à economia, à política, à ciência, à religião, à moral e a todos os demais sistemas autopoiéticos da sociedade. O que diferencia um sistema da sociedade dos demais não é mais sua localização geográfica ou institucional, mas sim o sentido autogerado, como propriedade emergente (autopoiética), por suas próprias operações. A onipresença dos sistemas então se desvela a partir da diferença: qualquer um pode, no ambiente da sociedade, participar comunicativamente de qualquer um dos sistemas da sociedade e, por isso, inclusive corrompê-los.
Cada sistema da sociedade disponibiliza aos demais sistemas uma estruturação da complexidade, isto é, uma redução da complexidade que, paradoxalmente, produz uma complexidade própria, estruturada em uma forma binária (código operacional). Assim, enquanto o direito estrutura a complexidade do ambiente social na forma direito/não direito, a política também se autonomiza em uma forma fechada paradoxalmente em dois lados, com valores auto-excludentes: situação/oposição. Na economia, a diferença entre pagamento/não pagamento é o que dá sentido às operações econômicas e cada sistema da sociedade existe porque suas próprias operações são realizadas a partir de uma base auto-referencial binariamente codificada (Luhmann, 1998).
Para um observador, portanto, os sistemas sociais estão onipresentes na sociedade. As estruturas dos sistemas sociais, que reduzem a complexidade produzindo uma complexidade própria, estão disponíveis a qualquer pessoa. Por isso qualquer pessoa pode decidir entre cometer um pecado ou salvar sua alma (religião), a julgar a conduta dos outros como boa ou má (moral), a decidir respeitar a lei (direito), a influenciar os outros (política), a decidir sobre os seus investimentos (economia) e a decidir sobre a veracidade ou a falsidade de suas percepções (ciência). E – o que interessa – qualquer pessoa pode tentar vencer a complexidade, calculando os impactos extra-sistêmicos de sua decisão. Assim, do ambiente, qualquer um pode decidir pelo lucro (economia) e observar se essa decisão é, ao mesmo tempo, jurídica, política, ética, ecológica e etc.
É nessa perspectiva de complexidade sistêmica, portanto, que se passa a descrever a corrupção não como condutas corruptas, mas na forma de decisões.
3 Direito e corrupção na forma de decisões
Decisões são seleções. Cada decisão seleciona uma alternativa em detrimento de várias outras. Uma decisão precisa, como condição de sua possibilidade, codificar binariamente um problema na forma de duas alternativas tautológicas (sim/não, isso/aquilo, pagar/não pagar e etc.). Em outras palavras, para que uma decisão seja possível, ela precisa codificar o evento sob o qual ela vai decidir sob apenas duas alternativas (codificação binária) e seqüencializar essa codificação em uma estrutura que pode ser denominada procedimento ou programação (por exemplo a legislação, no caso do direito). Para decidir sobre a solução de um problema, a decisão precisa decidir entre várias alternativas para que só fiquem duas auto-excludentes (codificação binária). Só então uma decisão pode decidir sobre essas duas alternativas e a alternativa selecionada fará parte de uma das alternativas em uma outra decisão futura sobre outras alternativas.
Se o contexto da decisão é um contexto político (situação/oposição), a corrupção pode ser observada como uma não correspondência entre a decisão e o código operacional do contexto da decisão (Simioni, 2006, p. 177). Em outras palavras, uma decisão política só é política na medida em que codifica um evento do ambiente na diferença entre situação/oposição, conforme a orientação à opinião pública. Se uma decisão política decide sobre um evento do ambiente com base em outros códigos (por exemplo, lucro/prejuízo, amigo/inimigo, poder/sujeição e etc.), a decisão deixa de ser política para ser outro tipo de decisão. Por isso que, do ponto de vista interno de um sistema social, há diversas formas de corrupção: corrupção política, econômica, jurídica, familiar e etc. Em todos os casos, contudo, a característica que garante a unidade (identidade) da corrupção é a decisão. Toda corrupção é uma corrupção de decisões. A corrupção é comunicada à sociedade através de decisões. A identidade da corrupção, portanto, pode ser encontrada não apenas no contexto institucional onde ela aparece (Congresso Nacional, Poder Judiciário, Governo, escolas, bancos, empresas ou outras organizações), mas também nas operações de qualquer sistema de organização que atualiza o primado funcional de sistemas sociais, isto é, qualquer sistema que produz decisões.
Pode-se então observar corrupção quando uma instância de decisão competente para produzir operações de um sistema efetua essas operações com base no código operacional de outro sistema (Simioni, 2006, p. 178). Em outras palavras, ocorre corrupção quando uma decisão política, por exemplo, decide um caso sob critérios extrapolíticos (jurídicos, econômicos, ecológicos, religiosos, éticos, científicos, educativos...). Ou mais concretamente, quando uma decisão política, ao invés de adjudicar os eventos do ambiente sob a forma situação/oposição, adjudica-os sob outra forma, como por exemplo lucro/prejuízo (economia), direito/não direito (direito), verdadeiro/falso (ciência), bom/mal (moral) e etc. O código operacional da política, que constitui a unidade e o símbolo de sua identidade e que por isso não muda, é o código situação/oposição (Luhmann, 1994). Tudo na política pode mudar (opinião pública, partidos políticos). Mas desde que existe a política dos Estados Constitucionais existe a diferença entre situação e oposição e quando essa diferença cair no esquecimento da sociedade ou for substituída por outra diferenciação, é o próprio sistema político que foi esquecido ou substituído: perdeu a sua função na sociedade. No caso do sistema jurídico, o código operacional é a forma direito/não direito. Tal como na política, tudo no direito pode mudar (legislação, precedentes jurisprudenciais). Mas a diferença entre direito e não direito é o símbolo da sua validade e é, por isso, temporalmente invariável (Luhmann, 2002, p. 150).
A corrupção no nível dos códigos operacionais dos sistemas da sociedade não significa a produção de operações por um sistema com o código de outro, porque nesse caso a operação foi do outro sistema. O problema da corrupção do código surge, portanto, quando uma instância de decisão acoplada estruturalmente a um sistema produz operações de outro sistema. Uma decisão corrupta é, por exemplo, uma decisão judicial (sistema de organização judiciária) que, ao invés de decidir sob a diferença direito/não direito, decide com base na diferença lucro/prejuízo (economia), sustentável/não sustentável (ecologia), amigo/inimigo (afetividade), situação/oposição (política), moral/imoral (ética) e etc. Como também será corrupta uma decisão bancária que não operou com base no código lucro/prejuízo, mas no código direito/não direito, poder/sujeição, moral/imoral e etc. A diferenciação funcional de cada sistema da sociedade garante a unidade operacional como unidade da diferença entre identidade e diferença. Qualquer violação a essa diferença, provocada por uma instância de decisão, pode então ser chamada corrupção.
Ainda nesse plano simplista de observação, a corrupção aparece também sob a forma de uma abertura arbitrária do sistema à complexidade do ambiente. Uma decisão jurídica que, a pretexto de fazer justiça, nega a restituição dos valores referentes a adiantamento de contratos de câmbio em uma falência em prol das obrigações trabalhistas faz, efetivamente, justiça aos trabalhadores da empresa falida. Mas pode provocar um aumento no custo do crédito que poderá impedir a contratação de outros trabalhadores em outros setores da economia. Ou ainda uma decisão jurídica que, utilizando o conceito econômico de moeda, nega a aplicação do Código do Consumidor para os consumidores dos "serviços" bancários. Ou ainda instrumentos regulatórios da economia (convenções coletivas de trabalho, tratados internacionais, regimentos, contratos, códigos de best pratices da Corporate Governance por exemplo), que são formalizados fora do direito (redes organizacionais e procedimentos de padronização), mas quando submetidos ao crivo do Judiciário acabam sendo corrompidos pela lógica direito/não direito, perdendo assim a sua racionalidade econômica (Teubner, 2004, p. 124). E os exemplos poderiam ser multiplicados.
Pode-se supor, nessa ordem de idéias, que a corrupção não nega a diferenciação funcional da sociedade, porque ocorre apenas nos sistemas de organização formal das decisões que atualizam os sistemas sociais. Ela ocorre apenas nas instâncias de decisão acopladas aos respectivos sistemas sociais, como é o caso do Poder Judiciário em relação ao sistema jurídico, os Poderes Legislativo e Executivo em relação ao sistema político, as instituições financeiras em relação ao sistema econômico, as organizações ambientalistas em relação ao sistema ecológico, as universidades em relação ao sistema científico, os templos em relação ao sistema religioso e etc. O direito continua sendo direito apesar de uma instância de decisão corrupta, a economia continuará a ser economia apesar de uma instância de decisão corrupta e etc.
Por isso que a corrupção no nível dos sistemas funcionais é uma ilusão de ótica de um observador que abstrai a diferença entre sistemas de organização e sistemas funcionais, descrevendo a corrupção com referência (ontológica) à natureza como unidade da diferença entre perfeição/corrupção. Corrupção só pode ocorrer nos sistemas de organização acoplados estruturalmente a esses sistemas funcionais. São as organizações que, por estarem situadas no ambiente dos sistemas sociais, é que estão sujeitas à corrupção. Pense-se também, por exemplo, na situação de um jurista que, para poder ascender no seu plano de carreira, julga seguindo critérios (códigos) políticos; ou um esportista que, para vencer a competição, utiliza doping; ou um cientista que, para a aprovação de seu projeto de pesquisa, direciona seus objetivos à satisfação de interesses econômicos do órgão financiador; ou uma empresa de consultoria ambiental que não avisa seu cliente da existência de um vazamento para avisar o órgão de fiscalização ambiental, que aplicará um auto de infração com medidas de recuperação ou medidas compensatórias muito mais lucrativas para a empresa de consultoria do que o simples conserto do vazamento e etc. Em qualquer dessas situações, não é o sistema que se corrompe, mas sim a decisão que opera fora do respectivo sistema.
A questão mais complexa, contudo, diz respeito a como operam os estímulos à corrupção de uma instância de decisão por outros sistemas da sociedade. A partir da posição privilegiada dos sistemas de organização na sociedade, que lhe permitem observar o ambiente com um grau bastante alto de complexidade, uma organização pode planejar seus objetivos conforme as prestações que os sistemas funcionais cumprem na sociedade. Assim, uma organização empresarial pode decidir criar expectativas de lucro para uma outra organização encarregada da produção de decisões coletivamente vinculantes (as organizações políticas, por exemplo), estimulando a corrupção. Como também uma organização ambientalista pode criar expectativas de poder para uma organização encarregada da produção de decisões políticas, notadamente quando a questão ecológica da sociedade ganha a simpatia da maioria dos eleitores. Pode-se observar, também, a criação de expectativas de segurança, pelo meio da comunicação do terror (observa-se a tecnização), por organizações militares às organizações políticas.
Pode-se supor também que alguns sistemas parecem exercer estímulos mais atrativos à corrupção do que outros, como é o caso do poder (política) e do lucro (economia). Qualquer pesquisa científica, por exemplo, precisa financiamento, isto é, precisa criar oportunidade de lucro para quem a financia, nem que seja a mera possibilidade de abatimento desses gastos no imposto de renda, transformando então o gasto em investimento. Por isso é muito mais fácil justificar uma pesquisa científica sobre biotecnologia do que sobre ecologia. A política também pode corromper as organizações científicas quando estimula, através de financiamentos (bolsas), a pesquisa em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país em detrimento de outras. E em se tratando de organizações judiciárias, sem dúvida, uma decisão judicial que abandona o código direito/não direito para utilizar códigos de bondade (moral), sustentabilidade (ecologia), salvação (religião), verdade (ciência) e etc. parecem não ser tão comuns quanto à sabotagem do código jurídico por códigos políticos e econômicos.
Trata-se, no entanto, novamente de uma ilusão de ótica: o poder e o lucro não são os principais sabotadores dos sistemas de organização. A questão é a partir de onde se pode observar a corrupção. Apenas do ponto de vista dos sistemas normativos (direito, ética, moral, religião) é que se pode observar corrupções pelos atratores da economia e da política. Há muita corrupção de códigos que passa despercebida pelo observador moral. Só um observador moral pode ver a atual corrupção generalizada nas organizações políticas brasileiras. Pense-se, por exemplo, na corrupção da arte pela tecnologia digital (Lèvy, 1998); a corrupção da ciência pelos sistemas normativos (religião, ética, moral, direito), quando, por exemplo, uma decisão científica substitui o código verdade/falsidade por verdades absolutas, dogmas, mantras ou, em outras palavras, substitui a hipótese pela certeza; a corrupção do direito pela educação nas decisões judiciais que, a pretexto de pretender dissuadir a reiteração de certo evento social, baseiam a parte dispositiva da decisão no caráter educativo da sanção do direito aplicado; a corrupção da economia pela política, quando uma instituição financeira toma decisões sobre concessão ou não de crédito sob critérios de situação/oposição (política), independentemente de lucro ou prejuízo (economia); a corrupção da economia pelo direito quando se realiza um contrato tendo por base apenas a validade ou não das cláusulas contratuais, independentemente das perspectivas de lucro ou de prejuízo com o negócio e etc.
Diante da complexidade que envolve qualquer decisão jurídica, o juiz pode já se tornar terapeuta ao decidir que os pais devem cuidar conjuntamente o filho de um matrimônio fracassado (Luhmann, 2002, p. 157); ou tornar-se consultor empresarial ao negar uma pretensão material lícita que pode prejudicar a empresa no futuro. Enfim, pode-se perceber que "el juez, si bien siegue siendo juez, ya no opera en el sistema jurídico." (Luhmann, 2002, p. 157). E essa corrupção dos códigos operacionais do sistema jurídico não são observáveis pelos observadores morais. Exatamente porque a corrupção é uma decisão desvinculada do primado funcional do sistema que confere o próprio sentido da decisão como operação do sistema, isto é, como uma operação a partir de uma forma de diferença que separa dois mundos: o que se indica (auto-referência) e o que não se indica (hetero-referência) e que por isso cai como pressuposto da própria observação da distinção indicada (Luhmann, 1996, p. 271).