1.INTRODUÇÃO
A constituição é uma ordem suprema, e respeitá-la é garantir a máxima efetividade de seus preceitos. Esta é a linha da pesquisa monográfica, onde se buscou discutir sobre a concretização judicial do direito de greve dos servidores públicos civis à luz da Constituição da República Federativa do Brasil (* Ver Nota de Atualização do Editor).
A análise do direito de greve dos servidores públicos justifica-se diante da necessidade de se debater sobre a efetividade das normas constitucionais e sobre as conseqüências jurídicas e sociais da deflagração cotidiana de movimentos grevistas. Se de um lado o exercício ilimitado da greve atenta contra a coesão social, por outro o seu não exercício obsta a garantia de valores inerentes à dignidade da pessoa humana.
Então, por ser justa a reflexão sobre a greve dos servidores públicos, esta pesquisa objetivou avaliar:
a)Os instrumentos que visam afirmar os direitos fundamentais;
b)A densidade normativa da norma definidora do direito de greve dos servidores públicos civis;
c)Qual a função desempenhada pelo Poder Judiciário diante das omissões legislativas inconstitucionais;
d)Quais os fatores que obstaculizam a efetivação do direito de greve;
e)Os mecanismos que visam a garantir a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais; e
f)A possibilidade de se exercer o direito de greve mesmo diante da omissão regulamentar.
Para este efeito, a abordagem do tema exposto foi baseada em novos paradigmas da teoria constitucional, onde se fez aproximar a Ciência Jurídica da Ciência Política. Assim, defendeu-se que normas que estabelecem ideais de governabilidade, ou programas, podem ser levadas à proteção judicial, pois a interposição legislativa não se constitui no único meio de conformação do direito à realidade social.
Nesta pesquisa, onde se pretendeu imprimir maior coesão ao desenvolvimento da temática proposta, a monografia ficou estruturada em sete capítulos.
Assim, no primeiro capítulo, a abordagem iniciou-se pelas considerações sobre a origem da palavra greve, seus antecedentes históricos no Brasil, a delimitação conceitual, e sobre a finalidade deste instituto.
Já no segundo capítulo, teceram-se considerações próprias da greve do servidor público, a natureza jurídica e as possíveis limitações que estes servidores poderão enfrentar quando do exercício concreto do direito. Não haveria legitimidade numa paralisação coletiva que não respeitasse princípios como da supremacia do interesse público e da continuidade dos serviços essenciais.
Por ser notório que os movimentos grevistas têm se prestado, preponderantemente, a reivindicações remuneratórias, abordou-se, ainda no segundo capítulo, sobre o instituto da negociação coletiva, onde se buscou um enfoque à luz do princípio da legalidade orçamentária.
Na seqüência, no terceiro capítulo, passou-se a analisar as variadas teorias acerca da aplicabilidade das normas constitucionais, momento em que abordou sobre as classificações propostas por Ruy Barbosa, José Horácio Meirelles Teixeira e José Afonso da Silva. As demais classificações não foram abordadas, porquanto não acrescentariam no deslinde do problema enfrentado por esta pesquisa monográfica.
Ainda neste capítulo, buscou-se interpretar o sentido da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais a que aludiu a Constituição, onde se recorreu, principalmente, aos ensinamentos do jurista Ingo Wolfgang Sarlet.
No quarto capítulo, é empreendida uma abordagem sucinta sobre o controle da inconstitucionalidade por omissão, onde foram discutidos os instrumentos de supressão desta lacuna normativa. Assim, concernentemente ao mandado de injunção, centrou-se a discussão na análise dos efeitos do provimento judicial, onde se dividiu os mesmos em: efeitos meramente declaratórios, constitutivo erga omnes e constitutivo inter partes. Defendeu-se a adoção desta última corrente, pois mais adequada ao fim desejado pelo constituinte [01].
Ainda, buscando superar a omissão legislativa sobre o direito de greve, no quinto capítulo, analisou-se a repercussão da emenda constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, no que concerne à possibilidade de se aplicar, por analogia, a Lei nº 7.783/89 aos servidores públicos que pretendem exercer o direito de greve.
Traçadas estas considerações, foi empreendido, no sexto capítulo, uma reflexão aguçada sobre os limites à atuação positiva do poder judiciário, na medida em que os princípios da separação dos poderes e da legitimação democrática são indicados como obstáculos à concretização daquele direito. Por não ser razoável entender assim, e fundamentar a efetivação constitucional, foram propostos critérios seguros de intervenção judicial.
Por fim, no sétimo capítulo, considerando que a greve é um fato social exercido plenamente, à míngua de norma regulamentadora, tornou-se imperioso que se discutissem quais os efeitos administrativos e penais que estão sujeitos os servidores grevistas.
Pelo exposto, em que pesem os constantes estudos acerca do tema proposto nesta monografia, o assunto ainda não se encontra superado, e longe está desta harmonia. Entretanto, como o Direito é uma ciência em contínua transformação, ainda há espaço para novos debates.
2.DO DIREITO DE GREVE
2.1.ORIGEM DA PALAVRA GREVE
Na França, havia uma praça denominada Place de Grève, onde as pessoas tornavam públicos seus inconformismos com alguma situação, firmavam contratações de empregados [02] e realizavam eventos diversos, como inúmeras execuções de penas de morte, momento em que o povo parisiense se aglomerava para assistir aos espetáculos de crueldade.
Consoante lição de Rinaldo Guedes Rapassi:
A palavra GREVE deriva do latim vulgar grava, que significa praia de areia. Sua utilização com o sentido similar ao que contém hoje, remonta ao quartel do século XIX, quando, na França, os desempregados ou os inconformados com as condições de trabalho costumavam reunir-se com freqüência na Place de Grève, areal vizinho ao rio Sena. (2005, p. 22).
Por outro lado, segundo Sérgio Pinto Martins (2001, p. 24), a origem da palavra parece não vir da expressão praia de areia, mas por ser a praça uma localidade em que se acumulavam gravetos trazidos pelas enchentes do Rio Sena.
Entretanto, para não correr o risco do regresso ao infinito, é mais pertinente que se associe o termo greve à origem mais direta. Assim, no sentido que será abordado nesta monografia, tem sua origem direta no nome Place de Grève, um lugar em que os trabalhadores faziam protestos relativos aos interesses operários.
2.2.ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO BRASIL
A greve, por muito tempo, não foi vista com tolerância. No Brasil, o Código Penal (Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890) proibiu o seu exercício, ainda que de forma pacífica. A greve era, portanto, um delito. A liberdade de locomoção e de expressão, intrinsecamente ligadas a esse direito, também eram limitadas.
Todavia, a repressão geral durou pouco, pois o Decreto nº 1.162, de 12 de dezembro de 1890, restringiu a natureza criminal apenas para as greves violentas, e que violassem a ordem pública.
Com a Constituição de 1934, houve significativo avanço no que concerne aos direitos trabalhistas, mas nada dispôs sobre o direito de greve. Nesse momento histórico, várias leis [03] foram criadas com o intuito de regular as relações sociais, e mitigar as tensões entre o capital e o trabalho. Criaram-se normas de saúde e segurança do trabalho, e órgãos administrativos especializados na composição dos conflitos laborais.
No ano de 1937, com a Ditadura do Estado Novo, iniciou-se nova fase na história brasileira, diametralmente oposta à conseguida com a Revolução Constitucionalista de 1930. Foi sob os ideais fascistas e em pleno regime ditatorial que o presidente Getúlio Vargas outorgou a Constituição de 1937. Este diploma, expressamente, considerou a greve um recurso anti-social, nocivo ao capital e ao trabalho.
No campo infraconstitucional, a Lei de Segurança Nacional (Decreto-lei nº 431, de 1938), além do Código Penal de 1940 (Decreto-lei nº 2.848), tipificaram várias condutas ligadas ao movimento paredista como crime. A Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.453, de 1º de maio de 1943), ao reunir as legislações relativas ao trabalho e previdência social, deu seguimento às proibições inerentes.
Na fase final do Estado Novo, foi editado o Decreto-lei nº 9.070, de 15 de março de 1946, definindo termos e limites ao exercício da greve, excetuando a paralisação dos serviços essenciais e no setor público. Em 18 de setembro de 1946, foi promulgada uma nova Constituição, que inspirada nos ideais de redemocratização e no término da 2ª Guerra Mundial, deixou de encarar a greve como um delito, reconhecendo seu exercício como um direito [04].
A Constituição de 1967 [05] também reconheceu na greve um direito. Com o advento da grande Emenda Constitucional de 1869 [06], foi mantida a legalidade do movimento, exceto quanto aos serviços públicos e as atividades essenciais, assim definidas em lei [07].
Atualmente, a constituição de 1988 também assegurou o direito de greve, inovando ao estender os direitos aos servidores públicos civis, mantendo a vedação apenas para os militares.
Na constituição de 1988, foi mencionado, quanto aos particulares em geral, que uma lei definirá quais serviços serão reconhecidos como essenciais, e, quanto aos servidores públicos, mencionou-se que lei específica definirá os termos e limites em que o direito será exercido.
O Poder Constituído editou a Lei n.° 7.783/89, que regulamentou tal direito para o setor privado, deixando de fazer o mesmo em relação aos servidores públicos.
2.3.CONCEITO
A palavra greve tem significante relevo. A depender do que se entende por ela, o que está fora de sua incidência conceitual terá conseqüência jurídica diversa da estabelecida pelo ordenamento pátrio.
Rinaldo Guedes Rapassi conceitua a greve como sendo:
a recusa, total ou parcial, pacífica, temporária, voluntária e coletiva de cumprir obrigações decorrentes do contrato de trabalho, decidida por empregados e pré-declarada por seu sindicato ou por assembléia geral visando à não-depreciação, à melhoria das próprias condições de trabalho ou, ainda, ao mero cumprimento, em seu próprio favor, das disposições legais ou convencionais já em vigor. (2006, p. 56).
Assim, não se poderá reconhecer uma greve intentada por uma só pessoa, já que é um ato, necessariamente, plurissubjetivo. Uma paralisação individual poderá ser vista como desídia, insubordinação, revolta ou qualquer outra manifestação do pensamento, mas nunca será uma greve.
Sobre o termo paralisação, merece esclarecer que este não é o único meio de se proceder à greve, mas o tanto mais comum quanto o mais grave. Qualquer interferência considerável na execução do contrato de trabalho, com suficiente força reivindicatória, pode ser um método de realização do movimento.
Logo, pode ser mencionado outro importante elemento do conceito apresentado, que é a temporariedade. Com efeito, o movimento só se justifica enquanto perdurar a situação julgada insustentável pelos obreiros. Uma vez que seja findada a negociação ou declarada a abusividade do movimento, aqueles deverão retornar às suas atividades laborais ordinárias. Esse elemento tem como justificativa direta a máxima de que a paralisação deverá ter uma utilidade. Portanto, razoavelmente, deve buscar um fim útil para os participantes, enquanto trabalhadores.
Enfim a greve é um instrumento que se vale determinado segmento da sociedade civil para participar da organização do Estado, da formulação de políticas públicas, e da distribuição das prioridades de governo.
2.4.FINALIDADE
A greve não é um fim em si mesmo, tem natureza instrumental, e somente deverá ser deflagrada após a frustração das negociações com o empregador. Não sendo um fim, pode-se dizer que o movimento, como mencionado, busca uma utilidade para seus participantes, consistindo na criação ou afirmação de interesses, direitos ou prerrogativas inerentes à relação de trabalho. Serão estes os objetos das reivindicações da categoria, desde que possível juridicamente.
De acordo com suas finalidades, José Afonso da Silva classificou os tipos de greve:
os trabalhadores podem decretar greves reivindicativas, objetivando a melhoria das condições de trabalho, ou greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos, ou greves políticas, com o fim de conseguir as transformações econômico-sociais que a sociedade requeira, ou greves de protestos. (2002, p. 304).
Todavia, reconhecer tamanha abrangência aos fins da greve não é a melhor solução. Parece que o constituinte, ao classificar que a greve é um direito fundamental do trabalhador, não quis imprimir ao movimento conotações que vão além da relação laboral. Por isso, o Comitê de Liberdade Sindical editou a súmula nº 481, cujo enunciado prescreve que "as greves de caráter puramente político e as greves decididas sistematicamente muito antes que as negociações sejam levadas a cabo não caem no âmbito dos princípios da liberdade sindical".
3.DA GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO
3.1.TOPOLOGIA CONSTITUCIONAL
O direito de greve dos servidores públicos está previsto no art. 37, VII, da Constituição do Brasil que dispunha em sua redação original:
Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:
[...]
VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar;
Com o advento da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, o legislador constituído emprestou nova redação ao dispositivo. Segue o texto atual:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;
Percebe-se que a alteração consistiu apenas na exigência de edição de lei específica, não mais necessitando de lei complementar para definir os termos e limites em que deverá ser exercido o direito. Sobre a importância desta alteração e outros comentários reflexivos, a abordagem será desenvolvida adiante.
3.2.CONCEITO DE SERVIDOR PÚBLICO
O capítulo VII da Constituição do Brasil traça, em sua seção I, disposições gerais sobre a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nesse capítulo, a Constituição não define, expressamente, a expressão "servidor público". Entretanto, as normas são destinadas, conjuntamente, aos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos (da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos).
Diante da abrangência apontada, dá-se para ter uma idéia do que seja servidor público para fins constitucionais. São servidores públicos os titulares de cargos, funções e empregos públicos da administração direta e indireta de qualquer dos poderes e de qualquer ente federativo.
Entretanto, concernentemente ao direito de greve, os servidores públicos são os civis, porquanto os servidores militares são impedidos, expressamente, nos termos do art. 142, da Constituição do Brasil.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[...]
IV - ao militar são proibidas a sindicalização e a greve;
Para os demais servidores públicos, o direito de greve é plenamente aplicável, já que a constituição não restringiu a amplitude conceitual mencionada. A restringibilidade ficou deferida à legislação infraconstitucional, mediante Lei Específica, onde se poderão excluir algumas categorias de servidores da tutela paredista, a exemplo dos membros de Poder, os detentores de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais, considerando a natureza das funções que exercem.
Não interessa, para fins de greve, o regime que ampara cada categoria de servidores públicos. Os mesmos podem estar amparados pelo regime legal (estatutário) ou pelo contratual (regidos pelo Decreto-Lei n.° 5.452, de 01 de maio de 1943 - CLT). Importa, efetivamente, qual regime jurídico a pessoa empregadora está submetida: se de direito público ou de direito privado.
Com efeito, não se justificaria submeter os servidores de pessoa jurídica de direito privado (sociedade de economia mista e empresas públicas) ao regramento do direito de greve dos servidores públicos em geral, pois a estes se aplicam as normas inerentes ao setor privado, com algumas limitações principiológicas.
Enfim, o servidor público civil, em relação ao direito de greve prescrito no inciso VII, do art. 37, da CRFB/88, deve ser, logicamente, os titulares de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional de qualquer dos poderes e de qualquer ente federativo. (grifos nossos).
3.3.NATUREZA JURÍDICA
A colocação textual do dispositivo constitucional autorizador do direito de greve, já oferece suporte para defini-lo como direito social fundamental. Veja-se que são dois preceitos; um para a greve dos trabalhadores em geral [08], e outro específico aos servidores públicos civis. O primeiro dispositivo tem colocação perfeita no capítulo relativo aos direitos sociais e no título dos direitos fundamentais. O segundo dispositivo, por sua vez, encontra-se disposto no capítulo relativo à administração pública, não fazendo referência a que espécie de direito se enquadra.
Pois bem, como o direito de greve é um só, e a diferenciação se encontra na particularidade do exercício de cada qual, tem-se em conta que a natureza jurídica é única, independente da localização dos dispositivos constitucionais que o regulam. Assim, também a greve dos servidores públicos se enquadra como direito social fundamental à paralisação da atividade com vistas à aquisição, efetivação ou ampliação de um ou mais direitos trabalhistas, sendo esta a natureza jurídica.
Esse direito se insere dentre aqueles considerados de segunda dimensão, composto pelos direitos econômicos, sociais e culturais. A segunda dimensão dos direitos fundamentais origina-se com a transição do Estado Liberal para o Estado Social, momento de grande participação social na política dos Estados. A idéia histórica não era baseada no individualismo puro e na ausência estatal do domínio econômico-social. Passou-se a exigir dos governantes a elaboração de políticas públicas, bem como a efetivação das mesmas.
Os movimentos sociais lograram êxito quanto à positivação constitucional de direitos sociais, econômicos e políticos. Entretanto, como tais direitos, em regra [09] exigem o dispêndio de recursos financeiros por parte do Estado, logo se difundiu a tese de que os mesmos não seriam dotados de exigibilidade, porquanto seriam meros conselhos ou ideais de governabilidade. Estava inaugurada a grande crise de eficácia dos direitos fundamentais.
Para não deixar de classificar o direito de greve, reconhece-se a ele um caráter preponderantemente de defesa. Pela doutrina tradicional, o exercício deste direito subjetivo depende apenas duma abstenção por parte dos seus destinatários, prescindindo de atos materiais ou positivos para sua concretização. São direitos de fruição imediata e plena.
Neste contexto, a norma definidora do direito de greve pode ser vista sob dois aspectos: o externo, como normas de atribuição negativa para os destinatários passivos, impedindo ingerências na esfera jurídica do titular; e o interno, como norma que permite o exercício positivo do direito e define uma liberdade pública.
Por este motivo, ulterior recurso à jurisdição deverá ter como pedido uma ordem ou mandado de não-fazer, garantindo intangibilidade funcional dos envolvidos no movimento paredista.
3.4.POSSÍVEIS LIMITAÇÕES PRÁTICAS
Como delineado, o direito de greve deverá ser exercido nos termos e limites estabelecidos em lei específica. Neste diapasão, uma vez fixados, o poder de polícia teria lugar apenas na contenção dos abusos cometidos.
Os limites podem ser de duas ordens: de ordem prática, que diz respeito aos cuidados que os trabalhadores devem observar durante o movimento; e de ordem jurídico-constitucional, que diz respeito aos limites da atuação concretizadora do direito carente de interposição legislativa.
Por outro lado, segundo a classificação de Sérgio Pinto Martins (2001, p. 60), "é possível dividir as limitações ao direito de greve sob o aspecto objetivo, da previsão da lei, e sob o aspecto subjetivo, dos abusos cometidos".
E continua o autor em reforço argumentativo:
Assegura o caput do art. 5º da Constituição o direito à vida, à liberdade, segurança e á propriedade. Greves que venham a violar direitos já estarão excedendo os limites constitucionais. O inciso XXII do art. 5º da mesma norma ainda determina o direito de propriedade, não sendo possível que a greve venha a danificar bens ou coisas. Os atos empregados pelos grevistas não poderão causar ameaça ou dano à propriedade ou à pessoa. (MARTINS, 2001, p. 60).
Neste contexto, durante a greve, não deverá ser permitido qualquer ato que viole os direitos e garantias fundamentais dos participantes ou de terceiros, a exemplo da proibição do acesso ao ambiente de trabalho, mediante ameaças dirigidas aos seus pares.
Enfim, como adiante se verá, a greve tem de respeitar a supremacia do interesse público e a necessidade de se manter intangível os serviços essenciais à dignidade e à existência da pessoa humana.
3.4.1.Princípio da supremacia do interesse público
A Administração Pública é suprema pelos interesses que defende, apresentando-se numa ascendência vertical em relação ao servidor público que a representa, e sobre os particulares em geral. O princípio da supremacia do interesse público assume, portanto, um caráter instrumental, viabilizando o bem comum ou o bem da coletividade. Desta maneira, como regra, numa eventual colisão de interesses, haverá prevalência do interesse público sobre o individual.
Com efeito, e no intuito de relacionar o princípio ao tema desta pesquisa, sobreleva-se ressaltar que a greve dos servidores públicos apresenta certas particularidades, como o efeito transcendente-subjetivo do movimento paredista.
Na greve de direito privado, o empregador é quem mais sofre, suportando perdas na lucratividade; enquanto que a greve de direito público faz transcender a ofensa da Administração Pública para todos os administrados de forma mais danosa.
Exemplificativamente, uma greve deflagrada por servidores do Instituto Nacional da Previdência Social-INSS atinge de modo violento a comunidade relacionada diretamente aos serviços previdenciários. Os segurados que deixam de receber seus benefícios, como por incapacidade (auxílio-doença e aposentadoria por invalidez), acabam por suportar maiores prejuízos que a própria autarquia e que o próprio governo federal, alvos diretos do inconformismo. Há inegáveis riscos à sobrevivência e à saúde dos indivíduos. A questão é bastante delicada. Devido a exemplos como estes é que se negou, por muito tempo, o direito de greve aos servidores públicos.
Por outro lado, não há como generalizar a essencialidade dos serviços e sua repercussão negativa sobre o interesse público. No plano da dogmática de realização constitucional, não se sustenta a tese indiscriminada da existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Assim, ainda quando referida supremacia do interesse público se manifesta, constitucionalmente, legalmente ou mediada pelo juiz, como critério de solução de colisão de interesses ou bens constitucionais, ela não poderá ser absoluta, eis que utilizada como medida de ponderação (SCHIER, 2007).
3.4.2Princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais
Após comentário sobre a supremacia do interesse público, resta agora tecer considerações sobre umas de suas vertentes: a necessidade de se manter contínua a prestação do serviço essencial. E que seria um serviço essencial?
A menção à essencialidade de certas atividades é encontrada, exemplificativamente, no §1º, art.9º, da CRFB/88, e no artigo 22 do CDC, dando azo a controvérsias a respeito de seu significado. A uniformização ou consenso sobre a expressão normativa é importante quando se considera que serviços públicos dessa natureza são insuscetíveis de interrupção e, sendo de execução obrigatória, pode gerar responsabilização administrativa, civil e penal aos seus infratores.
A Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, em seu art.10, informa sobre o que se entende por serviço essencial.
Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II - assistência médica e hospitalar;
III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV - funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI compensação bancária.
E completa, eu seu art. 11, e parágrafo único:
Art. 11. Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
A ausência de um serviço essencial gera revolta em seus destinatários, e essa revolta pode vir acompanhada de protestos não organizados, crises de desespero para o salvamento de vidas, além de outras conseqüências ligadas ao caos. Neste ponto percebe-se que há nítida repercussão na ordem pública, sendo que, quanto mais perdurar a cessação de um serviço essencial, mais grave será a resposta dos cidadãos diretamente afetados e daqueles que se solidarizem.
A Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, por se referir apenas às atividades do setor privado, não poderá ser aplicada integralmente ao setor público. Melhor seria que se editasse uma lei com este intuito, delimitando o que seja um serviço público essencial. Grosso modo, todos os serviços públicos seriam dotados desta característica.
Os serviços militares e de segurança pública, de tão essenciais, são expressamente proibidos de serem suspensos parcial ou totalmente, considerando a potencialidade lesiva à segurança nacional.
A Constituição do Brasil, como visto, proibiu a greve dos militares. A preservação da segurança coletiva foi elevada a princípio. Diante desta realidade, qualquer serviço que se relacionar com a segurança pública, doméstica e internacional, deverá sofrer restrições proporcionais ao bem que se quer tutelar.
Ante o exposto, a míngua de lei específica, pode-se concluir que serviços públicos essenciais são aqueles que, uma vez ausentes, põe em risco a vida, a saúde, e outros direitos fundamentais dos cidadãos, mediante ofensas à ordem pública ou à segurança nacional.
3.4.3.Relativização do instituto da negociação coletiva nas greves remuneratórias ante o princípio da legalidade orçamentária
A greve dos servidores públicos, na linha do que se vem apresentando, não é um procedimento em que se pode tudo quanto se reconhece à greve no setor privado. O espaço negociável neste setor é consideravelmente mais amplo que naquele. Logo, convém dizer que o instituto da negociação coletiva deverá ser vista com as devidas ponderações.
Pois bem, a negociação coletiva (Art. 7º, XXVI, da CRFB) é um dos mais eficazes instrumentos de pacificação social e de equilíbrio dos interesses das partes envolvidas no movimento paredista. Entende-se por negociação coletiva o procedimento preparatório ao ajuizamento de dissídio coletivo perante a Justiça do Trabalho (Art. 114, § 2º, da CRFB). Tal instituto não foi expressamente assegurado aos servidores públicos, somente para os empregados da iniciativa privada, agentes administrativos de empresas públicas e de sociedade de economia mista, porquanto sujeitos ao regime de direito privado.
A extensão, ao servidor público, do direito à negociação coletiva, é tema controverso, sendo aqui abordado apenas superficialmente.
A problemática gira em torno do princípio da legalidade do orçamento público. Desafia a competência privativa do chefe do Poder Executivo para deflagrar processo legislativo que implique aumento de despesas para a Administração Pública.
Por outro lado, como a vedação informada não veio prevista de forma taxativa pelo constituinte, cabe discussão sobre a relatividade do aparente impeditivo. Para tanto, deve-se verificar, caso a caso, a existência de liberdade para deliberar sobre os assuntos pautados.