ANÁLISE DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS DO PACOTE ANTICRIME (LEI 13.964/2019)
ANALYSIS OF THE (IN)CONSTITUTIONALITY OF THE PROVISIONS OF THE ANTI-CRIME PACKAGE (LAW 13.964/2019)
Brendw Tiete Aires[1]
Tarsis Barreto Oliveira[2]
RESUMO: O presente estudo examina as reformulações inseridas no Código de Processo Penal e na Lei de Execuções Penais com o advento da lei 13.964/19, analisando os pontos de discussão quanto à (in)constitucionalidade de alguns desses dispositivos, demonstrando os acertos e as incoerências das alterações estipuladas pela lei. Com a lei anticrime foi introduzida a figura do juiz das garantias, que se encontra com eficácia suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal. No que tange à Lei de Execuções Penais, merece destaque as novas metodologias de progressão de regime, inserindo tratamento diferenciado para determinados delitos, bem como a coleta de material biológico, em contraponto ao princípio da não-autoincriminação.
Palavras-chave: Constitucionalidade; execução penal; garantismo penal; juiz das garantias; pacote-anticrime; princípio da não-autoincriminação.
ABSTRACT: This study examines the reformulations inserted in the Code of Criminal Procedure and in the Law of Criminal Executions with the advent of law 13.964/19, analyzing the points of discussion regarding the (in)constitutionality of some of these provisions, demonstrating the correctness and inconsistencies of the changes stipulated by the law. The anti-crime law introduced the figure of the guarantor judge, whose efficacy has been suspended by a decision of the Federal Supreme Court. Regarding the Law of Criminal Executions, it is worth highlighting the new methodologies for regime progression, inserting differentiated treatment for certain crimes, as well as the collection of biological material, in counterpoint to the principle of non-autoincrimination.
Keywords: Constitutionality; penal execution; penal garantism; judge of guarantees; anti-crime package; principle of non-self-incrimination.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho promove estudo acerca da Lei 13.964/19, denominada Pacote Anticrime. Trata-se de legislação criminal que promoveu ampla reforma do Direito Criminal pátrio, trazendo repercussões em diversos pontos do ordenamento jurídico.
Todavia, aqui serão discutidos os pontos polêmicos dos dispositivos introduzidos no Código de processo Penal e na Lei de Execução Penal, sendo objeto de críticas diante das suas imprecisões. Parte-se da ideia de que em um Estado Democrático de Direito, os juristas não podem ter normas de caráter dogmático discutível dentro do arcabouço jurídico. É preciso uma análise crítica e valorativa das condições de validade, tanto formal como material das normas frente ao ordenamento jurídico.
Por essas razões, requer-se dos operadores do Direito uma análise crítica do pacote anticrime, a fim de verificar se os pontos da referida lei estão em contradição com os direitos, valores e princípios constitucionais, verificando a constitucionalidade das alterações alçadas pela novel legislação.
Diante das intensas discussões doutrinárias e jurisprudências envolvendo a temática, principalmente no que tange à constitucionalidade de dispositivos trazidos pela lei 13.964/19, torna-se relevante à análise teórica da nova sistemática apresentada pela legislação.
O estudo apresentado se mostra relevante, levando-se em consideração o caráter recente das alterações, entrando em vigor no ordenamento jurídico em 23 de janeiro de 2020. Adiciona-se a isso os intensos debates gerados, sobretudo no âmbito do Supremo Tribunal Federal, engendrando embates antagônicos e entendimentos diferentes sobre os institutos criados pela nova Lei.
2. GARANTISMO PENAL E O PACOTE ANTICRIME
O Pacote Anticrime surgiu diante de anseios da sociedade brasileira em ver criminosos punidos com maior veemência, fenômeno caraterizador do populismo penal, tendo vários segmentos da sociedade, não precipuamente ligados à atividade estatal, exercido pressão para a incidência de um sistema penal mais repressivo (OLIVEIRA, 2019, p. 18).
Frente a um pretenso populismo punitivo da sociedade brasileira, relevante se faz ponderar os abusos dos princípios constitucionais e do sistema garantista. Em direção oposta, Luigi Ferrajoli (2002, p. 271) assim expressa o conceito de garantismo penal:
(...) significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, consequentemente, a garantia de sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua verdade. É precisamente a garantia destes direitos fundamentais que torna aceitável por todos, inclusive pela minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e o próprio princípio majoritário. (FERRAJOLI, 2002, p. 271.)
O sistema do garantismo penal tem como escopo garantir o Estado Democrático, tendo o condão de proteger o cidadão do poder punitivo arbitrário do Estado, de forma que o chamado jus puniendi deve obedecer de forma estrita os direitos e garantias fundamentais previstos no texto constitucional. O garantismo penal busca a redução da violência e a prevalência da liberdade do indivíduo, interpondo barreiras à potencialidade punitiva do Estado, devendo este aplicar suas normas somente em ultima ratio, fazendo prosperar a liberdade dos cidadãos.
Para Ferrajoli, propositor do sistema garantista, o estado democrático de direito tem em sua essência de impor restrições por meio do texto constitucional ao poder punitivo exacerbado do Estado. Em suas palavras:
Designa, por esse motivo, não simplesmente um Estado legal ou regulado pelas leis, mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo poder público legislativo, judiciário e administrativo está subordinado às leis gerais e abstratas que lhe disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes(...). b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitada em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais, bem como dos correlativos poderes dos cidadãos de ativarem a tutela judiciária. (FERRAJOLI, 2002, p. 687-688)
Em razão de o pacote anticrime trazer um maior rigor no combate à criminalidade no país, visando atender aos anseios de segurança nacional, questiona-se ter havido exageros por parte do legislador na restrição de liberdade individuais. Em sentido contrário, apregoa-se a necessária incidência preventiva e repressiva do Estado frente às ações de grupos criminosos, afetando não apenas a condenação, mas também a execução da pena.
3. DISPOSITIVOS COM EFICÁCIA SUSPENSA PELAS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE
A lei 13.964/19 trouxe inúmeras discussões e críticas acerca de alguns dispositivos que estariam em contradição, com incorreções e até com a constitucionalidade questionada. Diante das críticas, ainda durante o período de vacância da norma, algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidades prosperaram no Supremo Tribunal Federal (STF), fazendo com que três dispositivos fossem suspensos por tempo indeterminado.
O Pacote Anticrime, assim denominado, entrou em vigor no dia 23 de janeiro de 2020. Todavia, no dia 15 de janeiro de 2020, o ministro Dias Toffoli concedeu de forma parcial, no exercício de plantão judicial, as medidas cautelares que foram intentadas nas ações diretas de inconstitucionalidades nº 6.298, 6.299 e 6.300, para suspender os artigos 3º-B, 3º-C, 3º-D, caput, 3º-E e 3º-F do Código de Processo Penal. Esses dispositivos foram suspensos por 180 dias nos termos da medida cautelar concedida. A razão desse prazo tinha como fulcro a instituição do juiz das garantias pelos tribunais brasileiros, o que, em termos temporais, seria impossível diante da tamanha reestruturação que viria a ocorrer com essa inovação. Após essa liminar, houve o ajuizamento da ADI 6.305, recebida sob a relatoria do Ministro Luiz Fux. No julgamento da ADI 6.298, que trata de decisão cautelar, este contemplou as quatro ações diretas de inconstitucionalidade acima mencionadas, ajuizadas em face de dispositivos da Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que alteraram dispositivos da legislação criminal brasileira. Nelas, suspendeu o relator a medida liminar anteriormente concedida (suspensão dos dispositivos por apenas seis meses), concedendo a suspensão por prazo indeterminado, até que o pleno do STF venha a discutir o mérito da questão.
Atualmente ainda se encontram suspensos os seguintes dispositivos:
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Artigos 3º-A a 3º-F do Código de processo Penal, que versam sobre a inserção da figura do juiz de garantias;
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Artigo 28 do Código de Processo Penal, que altera o sistema do arquivamento do inquérito policial, tendo o condão de dar maior liberdade ao ofendido e à assistência de acusação. A redação desse dispositivo confere poderes para a vítima contestar o arquivamento, podendo recorrer a um órgão superior ministerial;
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Artigo 310, §4º, do Código de Processo Penal, que versa sobre a audiência de custódia no prazo de 24 horas, posterior ao recebimento do auto de prisão em flagrante.
Esses artigos com eficácia suspensa são instrumentos que ocasionam um melhor funcionamento da justiça criminal brasileira, e como as redações anteriores foram revogadas, não existem no momento normas válidas que tratem dos temas, urgindo a necessidade de que a Corte Constitucional julgue de forma definitiva a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.298, para reprimir a insegurança jurídica da suspensão ad infinitum desses dispositivos (MARINI e HAAK, 2021). A forma adotada para que se evite a total insegurança jurídica e que está sendo feita na prática, é a utilização da redação e do entendimento anterior à lei, visto que se nada fosse feito traria diversos problemas ao trâmite da persecução penal.
3.1. Controvérsias e (in)constitucionalidade acerca do juiz das garantias.
A discussão envolvendo o juiz das garantias se centra na sua constitucionalidade material, como também formal, sendo frente de debates acalorados pela doutrina brasileira, uma vez que a contenda gira em torno de dois principais pontos, sendo eles: a inconstitucionalidade formal, em razão do vício de iniciativa atinente à competência legislativa do Poder Judiciário para transformar a organização e a divisão judiciária; e a inconstitucionalidade material, por existir uma transgressão das premissas da autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário, haja vista que é faltoso o orçamento para que sejam instituídas as alterações da Lei 13.964/19.
O juiz das garantias foi alvo das maiores discussões no momento pós publicação da Lei 13.964/19, sendo um dos pontos mais debatidos, ocasionando o ajuizamento de várias ações diretas de inconstitucionalidades. Sobre este ponto assevera Cunha (2021, p. 77-78):
Já existe corrente no sentido de que a Lei 13.964/19 padece de vício formal, mais precisamente, de iniciativa. O projeto nesse ponto (sistema do juiz das garantias) deveria ter vindo de proposta do Judiciário (art. 93, d, CF/88). Já temos ADI proposta, aguardando julgamento. Para a AMB (Associação dos magistrados do Brasil) e a Ajufe (Associação dos Juízes Federais), autoras da ação, a ei 13.964/19, não somente padece de vício formal, como também ignora princípios basilares, como o da isonomia, ao não prever o juízo das garantias no âmbito dos Tribunais. As entidades autoras da ADI argumentam, também, que a criação do juiz das garantias representa ofensa ao princípio do juiz natural decorrente da inobservância da jurisdição una e indivisível. Afinal, em primeiro grau há apenas um juiz natural criminal (estadual ou federal). Essa tese foi acolhida, em sede de liminar, pelo STF.
Entretanto, antes de adentrar ao mérito dessas questões, é necessário fazer uma breve diferenciação entre os vícios formais e vícios materiais para que uma norma seja declarada inconstitucional. No primeiro caso, tem-se a inobservância das normas constitucionais do processo legislativo, que tem como consequência a inconstitucionalidade formal da lei ou ato normativo produzido, possibilitando o pleno controle repressivo de constitucionalidade por parte do Poder Judiciário, tanto pelo método difuso quanto pelo método concentrado (MORAES, 2010, p. 712). Já o segundo caso ocorre quando o conteúdo de leis ou atos normativos contraria normas constitucionais de fundo, como as definidoras de direitos e deveres (e.g., CF, Art. 5º), sendo que essa incompatibilidade afronta o princípio da unidade do ordenamento jurídico (NOVELINO, 2020, p. 194).
Superada essa breve síntese dos vícios, passa-se ao conceito do juiz de garantias, visto ser este instituto novo, sujeito a inúmeros questionamentos. Primeiramente, é preciso que se entenda que o juiz das garantias não é um juiz investigador, embora ele atue até o momento do recebimento da denúncia. Ele não quebra a inércia jurisdicional, continuando a mesma imutável, não se vislumbrando uma posição positiva do juiz em promover ou movimentar o aparado judicial, pois em acontecendo isso há a quebra da imparcialidade objetiva. Mas em sendo assim, o que esse juiz fará na etapa investigativa da persecução criminal? O artigo 3º-B, instituído no Código de Processo Penal, anuncia as funções reservadas ao juiz das garantias, cuidando-se de rol meramente exemplificativo; todavia, para responder a este ponto, toma-se emprestada a definição de Cunha, que resume essas funções:
O juiz das garantias é o responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (art. 3º-B). Dessa forma, o juiz que julgará o caso juiz da instrução somente terá contato com o resultado da investigação depois de oferecida e recebida a inicial acusatória. A ideia que permeia a criação do instituto do juiz das garantias é a de distanciar o juiz da instrução da fase anterior, o que, acredita-se, lhe dará maior imparcialidade. (CUNHA, 2021, p. 76). (Grifo nosso).
Na fundamentação do Ministro Luiz Fux, nas ADIs propostas contra o juiz das garantias, que no exercício da presidência do Supremo Tribunal Federal suspendeu liminarmente o artigo 3º-A e seguintes a implantação do juiz das garantias por prazo indeterminado, o Ministro ponderou que a criação desse instituto não significava apenas uma mudança, mas uma verdadeira transformação da estrutura e do funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do Brasil, fazendo com que exista uma completa remodelação da justiça penal. Por essa razão, a lei 13.964/19 foi aprovada como uma reforma do Judiciário, devendo ter sido proposta pelo próprio Poder Judiciário, e não pelo legislativo, levando-se em consideração a inteligência do artigo 93 da CRFB/88 (CUNHA, 2021).
Como dito, no início deste título, a crítica que gira em torno do instituto não se refere à sua finalidade ou competência, mas sim sobre a incompatibilidade de empregar esse sistema no judiciário brasileiro em razão da verdadeira realidade dos Tribunais, principalmente em razão do seu orçamento, pois, como é cediço, muitas comarcas brasileiras contam com somente um magistrado que atua em juízo único, sendo impossível que este atue na fase investigativa e na fase processual da persecução, pois causaria quebra da parcialidade. Além disso, mesmo com as substituições e rodízios que podem ser utilizados para que se aplique o juiz das garantias, essa forma de atuação encontra óbices em termos de orçamento, visto que o impactaria abruptamente, sem contar que o tempo de vacância estabelecido para a lei foi de trinta dias, o que não seria possível de ser implementado nesse período.
O conflito entre o instituto do juiz das garantias e o orçamento do judiciário deu ensejo à discussão quanto à constitucionalidade do instituto, já que a iniciativa do projeto de lei deveria ter partido do Poder Judiciário, não do Poder Legislativo, tendo em conta que afeta a organização judiciária. No voto do Ministro Luiz Fux, em que se suspende a eficácia do dispositivo, ele fundamenta no sentido de que os dispositivos têm uma natureza materialmente híbrida, sendo ao mesmo tempo norma geral processual, e norma de organização judiciária, a reclamar a restrição do art. 96 da Constituição. A posição de parte da doutrina, ao criticar a fundamentação do relator, é apontada por Lima (2021, p. 115):
Ora, firmada a premissa de que a norma de direito processual é aquela que afeta aspectos umbilicalmente ligados à tríade da jurisdição, ação e processo, não há por que se afirmar que teria havido qualquer inconstitucionalidade nesse ponto, visto que os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D caput, 3º-E e 3º-F do CPP estão diretamente relacionados a questões atinentes ao próprio exercício da jurisdição no processo penal brasileiro. A matéria versada em tais dispositivos (...) insere-se, portanto, no âmbito da competência legislativa privativa da União prevista no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, porquanto versam sobre Direito Processual Penal. Trata-se, na verdade, de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional no exercício da sua liberdade de conformação, que deliberou por instituir no sistema processual penal brasileiro uma nova espécie de competência funcional por fase do processo. (Grifo nosso).
Quanto a este ponto, também reconhecendo a constitucionalidade do dispositivo, é semelhante o entendimento de Dezem e Souza (2020, p. 82):
Por fim, a questão da inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa. Também não me parece que haja inconstitucionalidade. Não houve mudança de organização do Poder Judiciário, mas mudança no sistema processual penal. A vingar o raciocínio apresentado, qualquer mudança processual ficaria inviabilizada, pois tudo esbarraria em organização do poder judiciário. (...) Parece que se trata mais de descontentamento com o novo modelo do que propriamente de inconstitucionalidade. É importante que reafirmemos a ideia: nem tudo o que eu desgosto é inconstitucional e nem tudo de que gosto é constitucional. (Grifo nosso).
Se levarmos em conta que a figura do juiz das garantias é norma de direito processual penal, não há que se discutir a constitucionalidade da matéria, uma vez que estaria dentro dos limites legislativos para criar normas gerais de competência. Entretanto, a contrário sensu, se for observado o caráter híbrido da norma, conforme o exposto no voto do relator, resta considerada inconstitucionalidade formal da norma, já que afrontaria diretamente a competência privativa do Poder Judiciário em alterar a organização e divisão judiciária.
Outro ponto debatido, que levou à suspensão dos artigos 3º-A a 3º-F do CPP, refere-se à constitucionalidade material da norma no plano da autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário. Nesse sentido, o ministro do STF observou em seu voto que a instituição do juiz das garantias iriai ocasionar despesas e impactos na estrutura orçamentária do judiciário, pois seria necessário aporte financeiro para que fosse implementado o novo sistema processual. Em que pese o argumento do relator ser válido, é forçoso acreditar que houve mudanças significativas quanto à estruturação do sistema dos juízos criminais com o juiz das garantias, o que nos leva a acreditar que o pacote anticrime não fez surgir novas atividades realizadas pelos juízes criminais. Para Lima (2021, p. 117):
(...) O controle de legalidade da investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Judiciário sempre foram atividades realizadas pelos juízes criminais afora. O que será necessário, portanto, é apenas redistribuir o trabalho (...). É dizer, haverá necessidade de uma mera adequação da estrutura judiciária já existente em todo o país, para que as funções de juiz das garantias e juiz da instrução e julgamento não mais recaiam sobre a mesma pessoa (...). Não há, pois, criação de órgãos novos, competências novas. O que há é uma mera divisão funcional de competências criminais existentes. Logo, não há que se falar em violação às regras constitucionais (...)
Em frente à relutância dos órgãos do judiciário em instituir o sistema do juiz das garantias, os dispositivos introduzidos pelo pacote anticrime continuam suspensos por tempo indeterminado; contudo, apesar das decisões cautelares asseverarem pela inconstitucionalidade da norma, a doutrina majoritária entende que não se passa de mero aborrecimento do Poder Judiciário, pois como todo o exposto, não se verifica vícios de constitucionalidade que obstam a implantação do instituto, bastando apenas uma reformulação na divisão de funções dentro dos juízos criminais do Brasil.
4. ALTERAÇÕES NA LEI DE EXECUÇÃO PENAL
O Pacote Anticrime, em linhas gerais, trouxe cinco grandes alterações na Lei 7.210/84, sendo elas: inclusão de parágrafos do artigo 9º-A, que dispõe sobre a identificação de perfil genético para crimes hediondos; inclusão de novo tipo de falta grave, ligada à recusa do apenado em se submeter à identificação do perfil genético; novos patamares de cumprimento de pena para a progressão de regime do artigo 112; proibição da saída temporária em caso de crime hediondo com resultado morte no artigo 122; e mudanças relativas ao regime disciplinar diferenciado do artigo 52.
No que tange às alterações promovidas na Lei de Execução Penal, foram introduzidas hipóteses ligadas às novas percentagens estabelecidas a fim de que o apenado possa obter a progressão de regime, visto que a Lei 13.964/19 trouxe dez variantes para a progressão.
No que tange ao exame para identificação do perfil genético, a recusa do condenado poderá ocasionar falta grave. Uma vez que o exame implica em postura ativa do condenado, alega-se afronta ao princípio da não autoincriminação, também conhecido pela expressão latina nemo tenetur se detegere, haja vista que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
4.1. Novos patamares de cumprimento de pena para fins de progressão de regime e o recrudescimento punitivo
Existem três sistemas clássicos que disciplinam a progressão de regime de cumprimento de pena privativa de liberdade, sendo eles: o sistema da Filadélfia; o sistema de Auburn e o sistema inglês ou progressivo, sendo este último o adotado no Brasil pelo Código Penal e pela Lei de Execução Penal.
Masson (2021, p. 485) conceitua o sistema progressivo:
O sistema inglês ou progressivo baseia-se no isolamento do condenado no início do cumprimento de pena privativa de liberdade, mas, em um segundo momento, é autorizado a trabalhar na companhia de outros presos. E, na última etapa, é colocado em liberdade condicional.
A progressão de regime integra a individualização da pena, em sua fase executória, e destina-se ao cumprimento de sua finalidade de prevenção especial, mediante a busca da preparação do condenado para a reinserção na sociedade (MASSON, 2021, p. 486).
A benesse da progressão de regime carcerário é dependente do preenchimento de dois requisitos cumulativos: um de caráter objetivo, que é o cumprimento de um tempo de pena no regime anterior; e outro de caráter subjetivo, que é o bom comportamento carcerário, atestado pelo próprio diretor da unidade prisional conforme o previsto no artigo 112, §1º da Lei 7.210/84.
No que tange ao requisito objetivo, o pacote anticrime alterou a forma na qual era feita antes da sua vigência. Anteriormente à Lei 13.964/19, o tempo a ser cumprido, como regra geral, era de 1/6 (um sexto) da pena, e quando se tratava de crimes hediondos e equiparados, conforme estava na Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), se o condenado fosse primário era necessário que cumprisse 2/5 (dois quintos) da pena; já se fosse reincidente teria de cumprir 3/5 (três quintos) da reprimenda imposta.
Com a vigência do pacote anticrime, mudou-se o cenário da progressão de regime, sendo o artigo 112 da LEP reformulado para estabelecer novos patamares para a progressão, abandonando-se o sistema estabelecido por frações e passando a quantificar o quantum a ser cumprido para progressão em índices percentuais, subsistindo a fração apenas na progressão especial para mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, estabelecendo-se 1/8 (um oitavo) para progredir de regime.
Os novos índices originados pelo pacote anticrime são os seguintes:
Percentual da Pena |
Natureza do Crime |
Condição do agente |
16% |
Sem Violência à pessoa ou grave ameaça |
Primário |
20% |
Sem Violência à pessoa ou grave ameaça |
Reincidente |
25% |
Com Violência à pessoa ou grave ameaça |
Primário |
30% |
Com Violência à pessoa ou grave ameaça |
Reincidente específico em crime dessa natureza |
40% |
Crime Hediondo ou Equiparado sem resultado morte |
Primário |
50% |
I Crime Hediondo ou equiparado com resultado morte; II Comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; III Constituir Milícia Privada |
I Primário; II A lei não estabelece se o condenado deve ser reincidente ou primário, entendendo-se a aplicação aos dois; III - A lei não estabelece se o condenado deve ser reincidente ou primário, entendendo-se a aplicação aos dois; |
60% |
Crime hediondo ou equiparado sem resultado morte |
Reincidente específico em crime dessa natureza sem resultado morte |
70% |
Crime hediondo ou equiparado com resultado morte |
Reincidente específico em crime dessa natureza com resultado morte |
Trata-se a lei 13.964/19 de uma novatio legis in pejus, sendo, portanto, aplicada somente aos crimes cometidos a partir da sua vigência, pois cuida-se de evidente prejuízo ao agente, principalmente pela vedação do benefício do livramento condicional aos crimes hediondos com resultado morte, tendo o legislador implementado tratamento diferenciado, dificultando não somente a progressão, mas também a concessão do livramento condicional (CUNHA, 2021). Por essa razão, essas novas reprimendas não retroagem em respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal, direito fundamental insculpido no artigo 5º, inciso XL da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A lei 13.964/19 traz consigo a ideia de segurança pública ao aplicar um tratamento mais rígido aos condenados por crimes, mostrando um recrudescimento punitivo que busca legitimar uma atuação incisiva por parte do Estado, razão pela qual se invoca a relativização de direitos e garantias fundamentais, como a individualização da pena, a proporcionalidade e a dignidade da pessoa humana.
Essa tendência punitivista não é novidade no cenário penal, sendo o castigo uma forma de inibir a delinquência, conforme preleciona Cesare Beccaria (2006, p. 49): A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará sempre uma impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança à impunidade.
4.2. (In)constitucionalidade da nova metodologia de progressão de regime
Com a alteração trazida pelo pacote anticrime quanto às novas quantidades de pena a serem cumpridas para a satisfação do requisito objetivo para a progressão de regime, passou-se a questionar a proporcionalidade desses percentuais em relação aos crimes praticados, com provável violação à individualização da pena. Malgrado essas alterações terem surgido em virtude de descontentamento generalizado na sociedade quanto ao cumprimento da pena no Brasil, teve o legislador como norte, na aprovação da nova Lei, o caminho para assegurar o direito social de segurança. Assim, apresentou, acertadamente, tratamento mais rigoroso aos condenados por crimes violentos ou praticados por reincidentes (OLIVEIRA e CARVALHO, 2021, p. 23).
A intenção do legislador em trazer as alterações objetivadas pela Lei 13.964/19 foi o maior rigor frente aos delitos previstos na Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), principalmente quanto aos reincidentes específicos em tais infrações, no momento da execução da pena, como se extrai dos ensinamentos de Oliveira e Carvalho (2021, p. 18) sobre o assunto:
Necessário se faz, por outro lado, valer-se de outros meios de interpretação, como lógica, teleológica, histórica e sistemática. Parece não haver dúvidas que o denominado pacote anticrime objetivou um maior rigor no combate à criminalidade, com o propósito de atuação mais incisiva por parte do Estado, sobretudo em relação às práticas de crimes hediondos e equiparados.
Contudo, diante dessa nova perspectiva, aparecem correntes no sentido de que o legislador ordinário não observou o princípio da dignidade da pessoa humana ao estabelecer patamares elevados para a satisfação do requisito objetivo, haja vista o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, como já declarado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347. Para esta posição, ao fixar estes percentuais em patamares tão elevados, tornaria o legislador, na prática, inviável a progressão de regime, resultando daí a sua inconstitucionalidade (DEZEM e SOUZA, 2020, p. 164).
Não há que prosperar tal argumentação, razão pela qual a própria Constituição Federal estabelece tratamento diferenciado aos crimes hediondos e equiparados em seu artigo 5º, inciso XLIII. Ademais, segue-se o entendimento de Oliveira e Carvalho (2021, p. 22):
As alterações legislativas são compatíveis com os preceitos constitucionais, havendo importante destaque para o princípio da individualização da pena, com atenção a diferentes balizas temporais para a progressão de regime, de acordo com a gravidade do delito e as condições pessoais do condenado. (...) utilizando-se da proporcionalidade na ponderação de interesses, chega-se a conclusão de que as alterações legislativas são proporcionais à gravidade dos delitos e as condições pessoas dos condenados, sendo, ainda, proporcionais à ofensa sofrida pelas pessoas de maneira geral, mediante a falta de segurança que atinge o país. (Grifo nosso).
Portanto, diante do respeito do legislador à individualização da pena e o tratamento diferenciado aos delitos com maior gravidade, sobretudo sobre os crimes hediondos e equiparados, a nova metodologia de progressão de regime de forma mais rigorosa se revela constitucional, permitindo tratamento jurídico igual aos iguais, e desigual aos desiguais, com base em critérios objetivos de desigualdade (MASSON, 2021, p. 486).
4.3. Fornecimento de material genético e o princípio da não autoincriminação
O fornecimento de material genético está previsto na Lei de Execução penal desde o advento da Lei 12.654/2012, que inseriu a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético. No entanto, a Lei 13.964/19 arquitetou mudanças na sua estrutura, que devem ser analisadas sobre o prisma da garantia constitucional da não autoincriminação, pois, em se fazendo uma análise perfunctória, se esta captação se restringisse apenas para a identificação criminal, sem lastro probatório, seria de todo constitucional; no entanto, a partir do momento que estes materiais passam a ser utilizados como meios de prova que serão cruzados em bancos de dados nacionais, alega-se possíveis vícios constitucionais, principalmente em razão das garantias fundamentais da autodefesa do acusado.
Na redação introduzida pelo pacote anticrime, tornou-se consequência do trânsito em julgado a submissão à colheita de material genético, sendo oportunas as palavras de Lima (2021, p. 372):
Destarte, como consequência decorrente do trânsito em julgado de sentença condenatória, o condenado deverá fornecer amostra biológica de maneira compulsória, a qual vai dar origem a um perfil genético que vai alimentar um banco de dados sigiloso. Uma vez confrontado com outros perfis já armazenados nesse mesmo banco de dados, oriundos de cenas de crimes não elucidados, ou até mesmo extraído do corpo de vítimas de crimes violentos ou sexuais, eventual coincidência (match) poderá torna-lo suspeito de tal crime, cuja elucidação talvez jamais fosse possível sem a existência de um banco de dados de perfis genéticos. (Grifo nosso).
Tratar-se-ia, então, de verdadeira produção de provas realizada pelo próprio condenado, podendo ser descobertas outras infrações cometidas que nunca foram solucionadas pelo Estado, criando provas que poderão ser utilizadas em eventual condenação, tratando-se de produção probatória por meio de conduta positiva, com pretensa violação ao princípio da não autoincriminação.
A previsão ao direito de não produzir provas contra si mesmo se estatui do artigo 5º, inciso LXIII da CRFB/88, sendo também uma derivação da dignidade da pessoa humana. A referência ao direito ao silêncio, enquanto garantia fundamental, não deve, nem pode ser tomada literalmente, circunscrevendo somente às manifestações verbais. Há de se ater ao núcleo dessa garantia, à sua ratio essendi, consubstanciada no direito à não autoincriminação, mesmo porque são normas limitadoras de direitos que desafiam interpretação restritiva, e não concessivas, ainda mais ao veicularem direitos fundamentais. Se ninguém será privado da sua liberdade sem o devido processo legal, será inconstitucional qualquer coerção não estampada, expressamente em lei; daí os preceitos restritivos, e não concessivos de direitos, estarem submetidos a uma intelecção afunilada (SANTOS, 2020, p. 449).
A razão da discussão acerca do procedimento de colheita de material genético deve se assentar no que tange à voluntariedade do agente em fornecer a colheita, visto que a captação deste meio probatório exige do condenado uma postura positiva, um fazer que possa lhe restar prejudicial, e se esse procedimento de captação será evasivo a seu organismo ou não. Se o apenado aderir ao procedimento, não há que se falar em prova ilícita, sendo que o meio de coleta foi absolutamente límpido, merecendo destaque neste ponto a lição de Santos (2020, p. 449): Em não sendo compelido a um fazer, inexiste ilicitude a ser declarada, devendo responder pela consequência dos seus atos, consectário lógico da auto responsabilidade, um dos princípios reitores das provas no processo penal.
Deve existir uma atenção especial à forma na qual esta extração será realizada. Em razão da postura positiva, se essas provas forem obtidas por procedimentos evasivos, como a coleta de amostra de DNA à força, ou a retirada de fios de cabelo de forma que o agente não aquiesça, revelar-se-á conduta coercitiva, rechaçada pela jurisprudência dos tribunais superiores.
Além da análise quanto à forma de retirada do acusado, é salutar a discussão acerca da atribuição de falta grave ao acusado, por se recusar a se submeter à extração do material, sendo novidade oportunizada por meio do pacote anticrime, estampada no Artigo 9º-A, § 8º e Artigo 50, inciso VIII, ambos da Lei de Execução Penal. A atribuição dessa falta infere em direitos da execução penal que o condenado possa vir a usufruir futuramente, visto que ao ser submetido a ela, o mesmo perde o status de boa conduta carcerária, requisito primordial para a progressão de regime, além do que pode perder até um terço dos dias remidos, entre outros, fazendo com que a resposta penal seja desproporcional ao previsto constitucionalmente, pois, em tese, a recusa seria legítima pela garantia constitucional.
Tipificar a recusa sobre a coleta de material genético como falta grave extrapola os limites da proporcionalidade, mas, em sendo a coleta realizada por meio de vestígios deixados, por exemplo, em uma cela, em roupas ou até mesmo em seu dormitório, ou seja, sem qualquer tipo de intervenção corporal, sem ser o condenado obrigado a se submeter a este procedimento, esta será então feita de acordo com os limites constitucionais. Neste caso, não haverá posição ativa de cooperação do condenado, não tendo que se falar em recusa e nem violação a seu direito de não se incriminar.
De todo modo, salutar o comentário feito por Santos (2020, p.484):
Ainda que firmada a constitucionalidade da coleta de material biológico para definição de perfil genético, alçar a negativa do sentenciado aos status de falta grave é inconstitucional por atentar contra a proporcionalidade, sob o ângulo da necessidade, sendo manifesto excesso legislativo, ainda mais diante da jurisprudência dos STJ e dos pronunciamentos monocráticos que vêm sendo tomados no âmbito do STF. (Grifo nosso).
No mesmo sentido entende Cunha (2021, p. 374): Não nos parece razoável que a recusa em se submeter à identificação de perfil genético acarrete, ao condenado, qualquer sanção disciplinar, especialmente falta grave, com implicações severas no tempo e na qualidade de pena a ser cumprida.
Quanto à constitucionalidade da colheita há entendimentos diversos na doutrina, consoante exposto por Lima (2021, p. 373):
Não há, in casu, qualquer inconstitucionalidade decorrente da violação ao princípio constitucional (e convencional) que veda a autoincriminação (nemo tenetur se detegere), nem mesmo nas hipóteses em que pessoa certa e determinada se negar a fornecer material biológico para a obtenção de seu perfil genético, ou seja, quando o exame recair sobre fonte conhecida sem que esteja disposta a consentir com a identificação genética. (Grifo nosso).
No entanto, o mesmo autor entende que a identificação do perfil genético é válida desde que o acusado não seja compelido a praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo, nem tampouco a se sujeitar à produção de prova invasiva para obtenção do seu perfil genético (LIMA, 2021, p. 375).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pacote anticrime propiciou grande remodelação na legislação criminal brasileira, precipuamente no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal, alterações estas que ocasionaram debates acalorados na doutrina e ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
A presente pesquisa buscou uma análise teórica com foco nas críticas surgidas em face da lei 13.964/19, adentrando questões essenciais, mormente no plano do recrudescimento punitivo imposto pela nova lei.
Ainda que o conjunto de medidas estipuladas na nova lei ocasione um endurecimento no enfrentamento da criminalidade, há de ser considerado que o tratamento diferenciado a determinados crimes está previsto na Constituição Federal de 1988, o que legitima as alterações propostas pela nova legislação.
Inicialmente, foi analisado o instituto do juiz das garantias, que recebeu a maior parte das críticas, especialmente no que tange à competência legislativa para se criar essa figura, o que fez o dispositivo ser suspenso por decisão do STF, permanecendo até o momento sem previsão de julgamento do mérito. Apesar da dúvida quanto a sua constitucionalidade formal e material, o entendimento que se sobressai afirma a sua constitucionalidade em razão da competência privativa da União em estabelecer normas gerais processuais. Em sentido contrário, a fundamentação utilizada pelo relator da medida cautelar que suspendeu o juiz das garantias afirma que a novidade constitui norma de caráter híbrido, devendo ter partido de iniciativa do próprio Poder Judiciário, já que afeta a sua organização e divisão, e prejudica o seu orçamento, o que traz a discussão quanto à inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, e a inconstitucionalidade material em razão do vício de matéria previsto no artigo 96 da CRFB/88.
Em seguida, foram discutidas as novas metodologias de progressão de regime estipuladas pela lei, já que a crítica reside no sentido de violação da individualização da pena e do princípio da dignidade da pessoa humana, conferindo elasticidade no quantum de pena a ser cumprido para se gozar do benefício da progressão. Todavia, houve acerto do legislador ao obrar dessa maneira, pois o tratamento diferenciado a crimes cometidos com violência e grave ameaça se revela necessário. Ademais, na própria Constituição os delitos hediondos e equiparados tendem a ter um tratamento diferenciado, o que veio a ocorrer com a nova metodologia, não havendo desproporcionalidade, mas sim uma reafirmação da essência da lei 13.964/19, que é a ideia da busca da segurança pública dos cidadãos. Considerando-se os preceitos constitucionais da individualização da pena e o rigor no tratamento dos crimes hediondos, entende-se pela harmonia e constitucionalidade do dispositivo frente ao ordenamento jurídico.
Por derradeiro, foi analisada a coleta obrigatória de material biológico e o princípio da não autoincriminação, e a estipulação de falta grave em caso de recusa por parte do condenado. Neste ponto foi abordada a postura positiva do condenado em produzir provas contra si mesmo, o que afeta a garantia do direito ao silêncio, violando garantia fundamental, o que torna essa coleta nebulosa quanto a sua constitucionalidade, mesmo em existindo entendimento jurisprudencial pela sua validade. Assim, afirma-se a inconstitucionalidade da coleta obrigatória de material genético a ser utilizado para fins probatórios, pois ao ser armazenado em banco de dados permitirá o cruzamento de dados que pode ocasionar em nova condenação.
Merece críticas ainda a reprimenda da falta grave em se recusando o condenado a se submeter à colheita de material genético, pois tipificar a recusa sobre a coleta de material genético como falta grave extrapola os limites da proporcionalidade, existindo aqui um excesso legislativo. Assim, mesmo que se reconheça a constitucionalidade da coleta, deve ser declarada inconstitucional a tipificação da recusa como falta grave, pois, em sendo aplicada a sanção administrativa, esta afeta diretamente os direitos do condenado na execução da pena.
A lei 13.964/19, conhecida como pacote anticrime, surgiu para endurecer as medidas no combate à criminalidade, atendendo aos anseios de segurança nacional e à pressão da sociedade civil no combate ao crime organizado. Trata-se de legislação passível de críticas em diversos pontos, mas que, pelo seu propósito, atingiu o resultado que almejava, conferindo tratamento mais rigoroso à criminalidade.
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Graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: brendwtiete@gmail.com.
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Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito Penal da Universidade Federal do Tocantins. Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Estadual do Tocantins. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Coordenador e Professor da Especialização em Ciências Criminais da UFT. E-mail: tarsisbarreto@uft.edu.br.