3. ESPÉCIES DE MAUS-TRATOS
Existem diversas espécies de crime de maus-tratos e as seguintes merecem evidência, uma vez que são corriqueiramente praticadas:
3.1. Rinha de galo
Trata-se de combate entre galos e em geral com o desígnio de competição. Cumpre ressaltar que não é sabido quando se iniciaram as práticas de rinhas de galo no território brasileiro.
O que é apontado é que com a chegada dos portugueses, estes trouxeram galos para que fossem realizados embates nos navios, com o objetivo de passatempo dos tripulantes.
Tendo em vista a inserção dos galos no continente brasileiro e a colonização, a prática foi se perpetuando.
Vale frisar que o decreto federal n.º 24.645 de 1934, foi o primeiro decreto onde foram vedadas as rinhas de galo e que proibia a realização ou provimento de embate entre animais da mesma espécie ou de espécies distintas.
Urge salientar que o supradito decreto não possuía legitimidade, e tão somente no ano de 1961, que de fato as rinhas de galo foram vedadas, através do decreto n.º 50.620 de 18 de maio de 1961, do então Presidente da República Jânio Quadros.
Contudo, no ano subsequente, Tancredo Neves que era considerado admirador das rinhas, promoveu a revogação do supramencionado decreto. Logo, tornaram-se aceitáveis todas as práticas em todo território nacional.
Em 1998, com o advento da Lei de Crimes Ambientais, tornaram a ser vedadas as rinhas de galo, contudo, não havia previsão direta, assim como as previstas nos decretos anteriores.
3.2. Farra do boi
A farra do boi é considerada uma liturgia típica, porém ilegal, do litoral do estado de Santa Catarina, desde o ano de 1997.
Possui ascendência açoriana e, na semana santa, a título de exemplo, um boi, adepto a entidades pagãs, é importunado por uma multidão dotada de instrumentos perfurocortantes, sendo linchado até a morte com requintes de crueldade.
Para o professor Paulo Affonso Leme, no que diz respeito a crueldade, esta:
Crueldade é a característica ou condição do que é cruel; prazer em derramar sangue, causar dor. A Constituição teve o mérito de focalizar o tema e proibir a crueldade contra animais. O texto constitucional fala em práticas - o que quer dizer que há atos cruéis que acabam tornando-se hábitos, muitas vezes chamados erroneamente de manifestações culturais.
Instar salientar que o exato significado do aludido ritual ainda é incógnito, sendo atribuído por alguns uma conotação simbólica religiosa alusiva à Paixão de Cristo, onde o boi exerceria o papel de Judas.
Outros compreendem que o animal personifica satanás e através da crueldade deste, as pessoas livrar-se-iam dos seus pecados.
O Supremo Tribunal Federal, em sede de ação civil pública, ao julgar recurso extraordinário, manifestou-se pela inconstitucionalidade de tal prática, conforme se observa:
Costume – Manifestação Cultural – Estímulo – Razoabilidade – Preservação da fauna e da flora – Animais – Crueldade. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”
(RE 153.531, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, j. em 03.06.97, DJ de 13.03.98).
3.3. Tráfico ilegal de animais
O tráfico ilegal de animais é tão corriqueiro quanto o de armas e de drogas. Malgrado a existência de medidas com fulcro de combater o tráfico de espécies ameaçadas, o contrabando de animais silvestres se avulta em nível global. Tendo em vista ser aliciante para os agentes, torna-se eminentemente lucrativo.
O apontado delito consiste em sequestrar seres vivos de seu habitat com o escopo de auferir proveito fácil, através da mercância de espécies biológicas para o comércio nacional e internacional. Trata-se de um comportamento criminoso contra a vida e contrário a Constituição Federal de 1988.
O Brasil detém imensa biodiversidade e torna-se um dos principais alvos para os traficantes, uma vez que ainda há pessoas que obtêm e exploram tal comercialização ilegal.
Cabe destacar que o tráfico de animais silvestres não é tão somente um desrespeito à lei, mas também uma insubordinação ao direito à vida, assolada e desumanamente retirada de várias espécies que não subsistem fora de seu habitat.
4. DAS PENAS
Com o advento da Lei Sansão, foi inserido o §1º–A ao art. 32, que assim dispõe:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
§ 1º-A. Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
Antes da anuência desta nova lei, a pena para tais condutas abomináveis era de 3 (três) meses a 1 (um) ano de detenção e mostrava-se insatisfatória, causando, sensação de impunidade.
Era aplicado cumprimento de pena mais brando, uma vez que a detenção não admite que o início deste cumprimento seja realizado no regime fechado.
A alteração legislativa majorou o aspecto temporal da pena bem como deliberou que a pena deverá ser cumprida em regime de reclusão, ao contrário do regime de detenção, sendo este último cabível a crimes executados contra as demais espécies animais.
Com pena de reclusão, o aludido crime será excluído dos crimes de menor potencial ofensivo, preceituados na Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Considerando que a pena máxima imposta pela Lei Sansão é superior a 2 (dois) anos, o crime não deverá ser julgado pelo Juizado Especial Criminal, senão por vara criminal (ou especializada, se admissível) da primeira instância da Justiça Estadual, nos moldes do art. 61 da Lei n.º 9.099 de 1995. O crime então passou a ser considerado de grande potencial ofensivo.
Cumpre ressaltar que com o agravamento da pena, o crime de maus-tratos em desfavor de cães e gatos constará na ficha criminal do acusado.
Assim sendo, se este vier a perpetrar outro delito, já será considerado reincidente e perderá os benefícios previstos em lei para aquele que é primário.
Corroborado o maus-tratos a cães e gatos, o agressor será considerado réu, de forma que será submetido a um processo que demande defesa técnica, realizada por advogado ou defensor público.
No curso do referido processo as partes apresentarão provas documentais, as testemunhas serão devidamente ouvidas e o réu interrogado. Via de regra, a acusação proposta pelo Ministério Público manifestará provas que responsabilizem o agressor incluindo fotografias, vídeos, documentos e oitiva de testemunhas.
De igual modo, o acusado apresentará provas da mesma natureza e, por fim, o juiz proferirá decisão que absolverá ou condenará o réu.
A pena mais severa aplicada aos crimes perpetrados contra cães e gatos, não pode ser considerada desarrazoada no comparativo com determinadas penas de crimes contra os seres humanos.
Não há respaldo na tese de inconstitucionalidade da Lei Sansão pelo princípio da proporcionalidade constitucional do direito penal, pois a Lei Sansão deve ser examinada e aplicada sob a ótica também do direito animal.
Vale frisar que havendo maus-tratos a animais que não sejam cães e gatos, o procedimento aplicado será o da Lei n.º 9.099/1995, e consiste na lavratura do termo circunstanciado, com a incontinenti soltura do agressor, se consolidar o compromisso perante a justiça, cabendo ainda, o arbitramento de fiança.
Insta salientar que a perda da guarda do animal é outra inovação suscitada no parágrafo inserido.
Tal perda deve ser empregada de forma expansiva, com o intuito de evitar que o apenado mantenha outros animais sob a sua guarda. Infelizmente, tal repreensão se reduz a cães e gatos, não existindo previsão congênere no que se refere aos demais animais.
Em razão do Princípio da Legalidade, não é exequível a aplicabilidade desta sanção em casos de maus-tratos cominados a animais que não sejam cães ou gatos.
Tal proibição/perda da guarda por ordem judicial deverá ser executada pelo transgressor condenado e se infringida configurará crime contra a administração da justiça de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito, com fulcro no art. 359, do Código Penal Brasileiro.
Vale destacar que a lei não apresenta o tempo para tal proibição. Não sendo possível compreender que tal restrição de direito seja cabível de forma indefinível no tempo, visto que equivaleria à previsão de pena de caráter perpétuo, o que é defeso pela Constituição Federal (art. 5.º, XLVII, “b”).
Destarte, conclui-se que a penalidade de proibição da guarda foi examinada, concluindo-se que se especifica não somente à tutela do animal notadamente maltratado, mas à de qualquer outro animal.
5. DIREITOS E PROTEÇÃO DOS ANIMAIS
A priori há de se apontar que os animais dispõem de direitos inerentes, tais como o direito à vida, ao independente desenvolvimento de sua espécie, da integridade de seu organismo e de seu corpo, bem como o direito ao não sofrimento, além dos demais direitos que lhes são outorgados mediante legislação.
Cumpre salientar que tais direitos não lhes são atribuídos pelo ser humano como uma cortesia, mas, sucedem do valor intrínseco à própria vida, acompanhando-lhes desde o nascimento.
Os animais são seres que também sentem dor e não podem ser impedidos de desfrutar uma vida digna, uma vez que todo ser vivo tem direito a ser respeitado e obter proteção.
Detendo direitos que também competem aos seres humanos, como e.g. a vida e a integridade física, não devem estes últimos, consagrados como racionais, aniquilar tais garantias de modo bárbaro e irresponsável.
Os direitos dos animais são reconhecidos em tratados internacionais, outorgados pela Carta Magna e fazem parte de suas cláusulas pétreas.
Ao agasalhar tais direitos, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tornou os animais detentores de direitos fundamentais.
A doutora Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros, referindo-se ao filósofo Tom Regan, com relação aos valores dos animais aduz que:
Regan considera de forma contundente que o direito dos animais é uma ideia simples porque, no nível mais básico, significa apenas que os animais têm o direito de serem tratados com respeito. (…) Ser bondoso com os animais não é suficiente. Evitar a crueldade não é suficiente. Independentemente de os explorarmos para a nossa alimentação, abrigo, diversão ou aprendizado, a verdade dos direitos dos animais requer jaulas vazias, e não jaulas mais espaçosas. (MEDEIROS, 2013, p.169).
A proteção destes faz parte da ética humana e careceria de ser incorporada no mesmo sistema de proteção legal outorgado aos seres humanos. Por fazer parte da dignidade humana, é um dos fundamentos do estado democrático de direito, devendo os direitos destes seres vivos serem considerados direitos de dignidade.
No enfoque normativo, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, apregoada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 1978, é o feito mais meritório que corresponde a proteção dos animais com o reconhecimento do valor da vida de todo ser vivo, de sua dignidade, integridade e respeito.
No Brasil, destaca-se a CF de 1988, em seu artigo 225, coibindo os atos de crueldade contra os animais e a Lei n.º 9605 de 1998, que delineia os crimes ambientais, além de algumas leis esparsas, corroborando o interesse crescente pelos direitos dos animais.
Alvitra Danielle Tetu Rodrigues, advogada, ambientalista e teórica pelos direitos animais:
Tanto a vida do homem quanto a do animal possuem valor. A vida é valiosa independentemente das aptidões e pertinências do ser vivo. Não se trata de somente evitar a morte dos animais, mas dar oportunidade para nascerem e permanecerem protegidos. A gratidão e o sentimento de solidariedade para com os animais devem ser valores relevantes na vida do ser humano.
6. LEI DE CRIMES AMBIENTAIS
A priori há de se apontar que antes da promulgação da Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, as infrações ambientais eram previstas em distintos diplomas legais (dispositivos inseridos no Código Penal Brasileiro, Lei de Proteção à Fauna, Código Florestal), bem como em outros textos esparsos.
Importa memorar que antes da referida lei, os crimes ambientais eram definidos como crimes de dano e só se perfaziam mediante a lesão ao bem jurídico.
As formas culposas deste crime eram restritas gerando a impunidade, quando o crime era cometido com negligência, imprudência ou imperícia.
O meio ambiente, bem como toda a sua dimensão é o bem jurídico protegido nos crimes ambientais. Vale ressaltar que qualquer pessoa poderá ser o sujeito ativo, desde que seja imputável, isto é, que possua discernimento para compreender a ilicitude do ato perpetrado.
O sujeito passivo, no entanto, é a coletividade, uma vez que é titular do bem jurídico lesado, pois de acordo com a Constituição Cidadão de 1988, o meio ambiente é bem comum de uso do povo.
O art. 32 da predita lei assim dispõe:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
O professor Fernando Capez arrola cada uma das práticas expressas no supradito art. 32, da seguinte forma:
a) praticar ato de abuso significa fazer uso excessivo, uso errado daqueles animais. b) praticar maus-tratos consiste em bater, espancar, tratar com violência, ou ainda, manter o animal em lugar sujo, inadequado. c) ferir significa causar ferimentos, fraturas ou contusões. d) mutilar consiste em extirpar parte do corpo do animal. e) realizar experiência dolorosa ou cruel (§1) consiste em submeter os animais, por atos dolorosos ou cruéis, a uma série de operações, por exemplo, observações, avaliação, provas, ensaios em condições determinadas, tendo em vista resultado determinado. Essas experiências, ainda que sejam realizadas para fins didáticos ou científicos, e, quando existirem recursos alternativos, são proibidas quando provocam dor ou sofrimento ao animal (2017, p. 109).
O §1º do supradito artigo, por sua vez, penaliza o exercício de experiências agonizantes e/ou cruéis com animais vivos, como e.g., a vivissecção que é o ato de dissecar o animal vivo com o desígnio de produzir estudos, isto é, utilizá-los em testes laboratoriais. Trata-se de um ato de intervenção invasiva em um organismo vivo, com intuito científico-pedagógico.
Tal experiência dolorosa ou cruel ocorrerá nas finalidades de fins didáticos ou científicos e sem fins didáticos ou científicos. Sendo a conduta perpetrada para fins didáticos ou científicos, só haverá crime se existia outra opção para o cientista/pesquisador, mas este optou por aquela que ocasionou dor ou mostrava-se cruel.
Quanto a vivissecção, assim pondera o Promotor de Justiça do Estado de São Paulo Laerte Fernando Levai (2004, p. 63):
Abrange a vivissecção um procedimento cirúrgico realizado em animal vivo. No Brasil, a exemplo do que ocorre em quase todo o mundo, diariamente milhares de animais perdem a vida em experimentos cruéis, submetidos a testes cirúrgicos, toxicológicos, comportamentais, neurológicos, oculares, cutâneos, etc., sem que haja limites éticos – ou mesmo relevância científica – em tais atividades. Macabros registros de experiências com animais praticadas nos laboratórios, nas salas de aula, nas fazendas industriais ou mesmo na clandestinidade, revelam os ilimitados graus de estupidez humana. Sob a justificativa de buscar o progresso da ciência, o pesquisador prende, fere, quebra, escalpela, penetra, queima, secciona, mutila e mata. Em suas mãos o animal vítima torna-se apenas a coisa, a matéria orgânica, enfim, a máquina viva.
Quando realizamos uma análise jurídico-normativa acerca do artigo 32, parágrafo 1.º, da Lei n.º 9.605/1998 verifica-se que o bem jurídico tutelado é a dignidade animal, tendo como sujeito passivo o animal não-humano e como sujeito ativo pessoa – física ou jurídica – não havendo uma qualidade especial do agente, sendo, portanto, considerado como crime comum. (FEIJÓ; GREY; SANTOS, 2010, p. 163)
Vale frisar que o 1º-A ora explicitado será explorado mais adiante e quanto a previsão do §2º, se o agente, dolosamente, ceifar a vida do animal silvestre ou nativo, o crime será o previsto do art. 29 da Lei n.º 9.605/1998.