Receber a tão sonhada aposentadoria pode ser sinônimo de realização após tantos anos de trabalho e contribuições com a Previdência, assim como qualquer outro benefício que, em muitos casos, é o único recurso financeiro de toda a família e que, infelizmente, nem sempre o valor é o suficiente.
Se não bastasse isso, para muitos aposentados, pensionistas e demais beneficiários, o pagamento ainda é reduzido por conta de descontos que, em diversas vezes, acontece de maneira indevida.
Neste artigo, abordaremos algumas considerações acerca do desconto Consignação Crédito pago Benefício Anterior, em que casos ele é regular e em quais casos acontece de maneira indevida.
Primeiramente, o que é Consignação?
O próprio Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), define a Consignação na recente Instrução Normativa 128 de 2022, dizendo que:
Art. 626. Consignação é uma forma especial ou indireta de pagamento, meio pelo qual o devedor, titular de benefício, possui para extinguir uma obrigação de pagamento junto ao INSS e/ou a terceiros, comandada por meio de desconto em seu benefício.
Em outras palavras, a Consignação é uma maneira de debitar diretamente da folha de pagamento alguma obrigação assumida pelo beneficiário, ou em demais casos descritos em lei.
Para verificar se há alguma Consignação no pagamento, basta que o beneficiário ou seu procurador, acesse o Extrato de Pagamento, também conhecido como HISCRE, contracheque, holerite ou demonstrativo de pagamento, onde são apresentadas todas as informações referentes ao pagamento do benefício, como o período pago, o banco para depósito, valores creditados e os descontos, se houver.
Vale lembrar que o Extrato de Pagamento de Benefício é um relatório completo sobre o benefício, diferentemente do Extrato de Conta, que pode ser conta corrente ou poupança, que é emitido pelo banco.
No extrato de pagamento, o INSS descreve os detalhes do benefício por meio de rubricas informativas, que são códigos utilizados para identificarem a origem das operações de débito ou crédito na folha de pagamento.
Há uma tabela com todas as rubricas utilizadas pelo INSS na Portaria DIRBEN/INSS n. 992, de 28 de março de 2022, que trata sobre as normas procedimentais em matéria de Benefícios. O código da Consignação é o número 203, e a Consignação Crédito pago Benefício Anterior, o número 905.
O que pode ser descontado do Benefício?
Os descontos permitidos estão previstos no art. 626, §§1º ao 3º da IN INSS 128/2022, e também no art. 115 da Lei 8.213 de 24 de julho de 1991 (Planos de Benefícios da Previdência Social), dentre eles: contribuições à Previdência Social, pagamento indevido ou além do devido, imposto de renda, pensão alimentícia, pagamento de empréstimos, e outros especificados ao longo dos textos legais.
A normativa classifica os descontos em obrigatórios, eletivos e por determinação judicial, sendo os primeiros àqueles decorrentes de lei; os descontos eletivos a partir de obrigações assumidas voluntariamente pelos segurados, por sua expressa vontade; e, por último, os determinados judicialmente.
Mas, do que se trata o desconto de Consignação Crédito pago Benefício Anterior (905)?
Geralmente, a Consignação Crédito pago Benefício Anterior (905), acontece nos casos em que o beneficiário recebeu benefícios diferentes relativos a um mesmo período.
Exemplo: num suposto caso, foi pago ao beneficiário o valor de R$2.000,00 referente aos meses de setembro a dezembro pelo benefício Auxílio Doença. Concedida a Aposentadoria por Invalidez, em janeiro, o INSS paga novamente o mês de dezembro. Como o referido mês já foi creditado anteriormente por outro benefício, ele poderá ser descontado futuramente por configurar Cumulação de Benefícios.
Portanto, a Cumulação de Benefícios, ou pagamento em duplicidade, é justamente o recebimento de valores referentes a um mesmo período, contudo, pago por benefícios diversos, e isso gera a Consignação.
E se não for caso de Cumulação de Benefícios?
Não sendo caso de Cumulação de Benefícios, muito provavelmente estaremos diante de um desconto indevido.
Nesse caso, esgotadas as possibilidades pela via administrativa, caso não haja sucesso ou uma explicação juridicamente viável, será necessário recorrer ao Judiciário.
Na via judicial, os descontos poderão ser cessados inclusive por meio do pedido de Tutela de Urgência, sendo que já há jurisprudência favorável à concessão de liminar em favor da suspensão imediata de todos os descontos indevidos até a decisão definitiva do juiz.
Qual a Fundamentação utilizada pelo INSS?
O INSS utiliza-se de alguns dispositivos legais que, além da consignação em folha de pagamento, também podem gerar inscrição em dívida ativa.
No art. 115 da Lei n. 8213/1991, estão previstas algumas possibilidades de desconto do benefício e, em seu inciso II, dispõe sobre o pagamento indevido ou além do devido:
Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios:
II - pagamento administrativo ou judicial de benefício previdenciário ou assistencial indevido, ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da sua importância, nos termos do regulamento; (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019)
Destaque ao teto de 30% do benefício que, porventura, era o mesmo que para os descontos de empréstimos consignados, que foi alterado para 40% pela Medida Provisória 1106/2022.
No mesmo dispositivo, a lei prevê a possibilidade da inscrição em dívida ativa:
§ 3º Serão inscritos em dívida ativa pela Procuradoria-Geral Federal os créditos constituídos pelo INSS em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, nos termos da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, para a execução judicial.
§ 4º Será objeto de inscrição em dívida ativa, para os fins do disposto no § 3º deste artigo, em conjunto ou separadamente, o terceiro beneficiado que sabia ou deveria saber da origem do benefício pago indevidamente em razão de fraude, de dolo ou de coação, desde que devidamente identificado em procedimento administrativo de responsabilização.
Além da lei sobre Planos de Benefícios da Previdência Social, o Decreto 8.302 de 2014 (Regulamento da Previdência Social), também trata da possibilidade de desconto:
Art. 154. O Instituto Nacional do Seguro Social pode descontar da renda mensal do benefício:
§ 2º A restituição de importância recebida indevidamente por beneficiário da previdência social, nos casos comprovados de dolo, fraude ou má-fé, deverá ser atualizada nos moldes do art. 175, e feita de uma só vez ou mediante acordo de parcelamento na forma do art. 244, independentemente de outras penalidades legais.
Ressalte-se que, nesses casos, há que se comprovar o dolo, má-fé ou fraude, no recebimento dos valores.
Por último, há ainda a possibilidade de se configurar enriquecimento sem causa, previsto no Código Civil em seus artigos 884 e 885:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.
O que diz a Jurisprudência?
Esses argumentos foram utilizados pela autarquia em diversas ações que tratavam da restituição de valores recebidos indevidamente.
A partir desses casos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmou o Tema Repetitivo 979, com a seguinte delimitação:
"Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração da Previdência Social".
A tese firmada pelo STJ foi a seguinte:
Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados decorrentes de erro administrativo (material ou operacional), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% (trinta por cento) de valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.
Portanto, pode-se resumir que, de acordo com o STJ, a Consignação não poderá ocorrer quando:
-
For embasado em interpretação errônea ou equivocada da Lei pela Administração;
-
Comprovada boa-fé objetiva, a partir da demonstração de que não era possível a constatação do pagamento indevido.
Sobre a boa-fé objetiva, segundo Soares (2021), é como aquela em que a pessoa comum não teria como presumir que o os valores recebidos não eram legais ou definitivos, como exemplo, um servidor, sem filhos, que recebe auxílio-maternidade, nesse caso, é notório o erro e de fácil percepção ao homem médio, pois, nitidamente o beneficiário não poderia receber o benefício por não ter o requisito principal: ter filhos.
Casos concretos apreciados pelos Tribunais
Em determinada ação, a autarquia alegou que os valores pagos como retroativos configuraria cumulação, pois, o beneficiário teria recebido o auxílio-doença no período referente ao pagamento dos valores atrasados, assim, após receber o referido valor, iniciou-se a consignação sob o argumento da cumulação indevida.
O TRF-2 não reconheceu a cumulação indevida, em um acórdão que versa inclusive sobre a responsabilidade civil do INSS. Vide TRF-2 - AC 200751018000361.
No acórdão, condenou-se o INSS a cancelar a consignação na folha de pagamento, a devolver os valores debitados, com acréscimo de juros e correção monetária, e danos morais.
Foi recepcionada a Responsabilidade Civil objetiva da autarquia, haja vista que, de acordo com o acórdão, ela própria deu causa ao dano a partir dos descontos no benefício.
Em outro caso, o TRF-4 também seguiu posicionamento a favor da suspensão da Consignação, sob o argumento de que o "dever de restituição de valores originados de pagamento indevido de benefícios não atinge os beneficiários de boa-fé", também por serem verbas de natureza alimentar e que o beneficiário, em outras palavras, não pode pagar por um erro administrativo. Ver TRF-4 RMC: 50186706620214047000.
Em resumo, nesse caso o segurado teve sua aposentadoria descontada sob o argumento de que haveria um débito com o INSS, por ter recebido períodos em duplicidade.
No entanto, o Tribunal julgou que, ainda que houvesse alguma duplicidade, não havendo má-fé do aposentado, não era legítimo o desconto por parte do INSS, haja vista que foi a própria instituição a responsável por calcular os valores a serem recebidos pelo beneficiário.
Ademais, fundamentou-se também sob a questão da natureza alimentar do benefício, ao considerar que, para que acontecesse alguma restituição, deveria existir o dolo do segurado, conquanto que a má-fé dele não pode ser presumida.
A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que, em razão do caráter alimentar dos proventos aliado à percepção de boa-fé, é impossível a devolução de valores recebidos a título de benefício previdenciário por razão de erro da Administração, aplicando-se ao caso o princípio da irrepetibilidade dos alimentos.
Quais as previsões nas Instruções Normativas do INSS?
De acordo com a Instrução Normativa INSS n. 128 de 2022, antes de se iniciar qualquer consignação ou descontos, a autarquia deverá abrir um processo administrativo com prévia cientificação do segurado.
Art. 625. O INSS pode descontar da renda mensal do benefício:
I - as contribuições devidas pelo segurado à Previdência Social, desde que não tenha havido decadência ou prescrição tributárias;
II - pagamento administrativo ou judicial de benefício previdenciário ou assistencial indevido ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, devendo cada parcela corresponder, no máximo, a 30% (trinta por cento) do valor da renda mensal do benefício, podendo o percentual ser reduzido por ato normativo específico, e ser descontado em número de meses necessários à liquidação do débito;
[...]
§ 1º O beneficiário deverá ser cientificado, preferencialmente por meio digital, dos descontos efetuados com base nos incisos I e II do caput, devendo constar da comunicação a origem e o valor do débito.
§ 2º Deverão ser compensados no crédito especial ou na renda mensal de benefício concedido regularmente e em vigor, ainda que na forma de resíduo, os valores pagos indevidamente pelo INSS, desde que o recebimento indevido tenha sido pelo mesmo beneficiário titular do benefício objeto da compensação, devendo ser observado os prazos de decadência e de prescrição, referidos nos arts. 593 e 595, respectivamente, quando se tratar de erro administrativo.
Sendo assim, o próprio INSS estabelece que deve haver uma notificação do beneficiário previamente ao início dos descontos, com a possibilidade dele exercer o contraditório administrativamente.
E, se caso existir realmente algum débito, a autarquia deverá ainda, após a notificação e possibilidade de resposta do segurado, gerar uma guia para o pagamento à vista, de acordo com o art. 22 da IN INSS nº 74/2014, in verbis:
Art. 22. A fase de cobrança administrativa tem por objetivo a adoção de medidas que visem ao ressarcimento de prejuízo causado ao erário, bem como demais valores devidos e inicia-se com a notificação do interessado da decisão administrativa definitiva proferida na fase de apuração.
§ 1º Constatada a existência de débitos anteriores na forma do inciso II do parágrafo único, do art. 21, os respectivos processos administrativos serão apensados e a cobrança dos referidos valores se dará de forma unificada, hipótese em que as notificações conterão dados referentes a todos os créditos e serão feitas no mesmo ato.
§ 2º A notificação deverá conter:
I - cópia das decisões administrativas definitivas;
II - demonstrativo (s) atualizado do débito ou da penalidade;
III - prazos e formas de pagamento;
IV - previsão das consequências decorrentes do inadimplemento; e
V - guia para pagamento à vista.
Há que ser observado, ainda, o prazo prescricional para que a autarquia alegue que foram creditados benefícios pagos indevidamente. O art. 595 da IN INSS 128/2022 diz:
Art. 595. Prescreve em 5 (cinco) anos, a contar da data em que deveria ter sido paga, toda e qualquer ação para recebimento de prestações vencidas, diferenças devidas, ou quaisquer restituições, seja pelo INSS ou pelo beneficiário.
Dessa maneira, segundo as próprias normativas do INSS, há um procedimento a ser realizado antes de quaisquer descontos a serem aplicados ao benefício, sendo considerado um ato lesivo, com a geração de danos morais, a redução e consignação injustificada previamente do benefício, devido aos transtornos que podem afetar a subsistência do segurado.
Ademais, também deve ser levado em conta a posição hipossuficiente do beneficiário no tocante a compreensão dos procedimentos relativos ao seu benefício, onde muitos não possuem nenhum acompanhamento jurídico ou acesso a uma orientação adequada, não sabendo distinguir se tal pagamento foi realizado da maneira correta ou não, daí a configuração da boa-fé objetiva mencionada no Tema 979 do STJ.
Na seara Previdenciarista, ao tratarmos de assuntos como esse, não nos referimos somente a uma lesão patrimonial, ainda que sejam de extrema importância as ferramentas fiscalizatórias do INSS para impedir ações fraudulentas que podem lesar o bem público. Mas, abordamos uma incisiva lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana que, a partir de casos como esse, ferem a subsistência de tantos aposentados, demais beneficiários e suas famílias.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil Brasileiro - Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: L10406compilada (planalto.gov.br)
BRASIL. Portaria DIRBEN/INSS n. 992, de 28 de março de 2022. Diário Oficial da União. Disponível em: PORTARIA DIRBEN/INSS Nº 992, DE 28 DE MARÇO DE 2022 - PORTARIA DIRBEN/INSS Nº 992, DE 28 DE MARÇO DE 2022 - DOU - Imprensa Nacional
BRASIL. Instrução Normativa n. 77 de 21 de janeiro de 2015. Diário Oficial da União. Disponível em: INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 77, DE 21 DE JANEIRO DE 2015 - Imprensa Nacional
BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 - Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: L8213compilado (planalto.gov.br)
BRASIL. Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999 - Aprova o Regulamento da Previdência Social e dá outras providências. Disponível: D3048compilado (planalto.gov.br)
INSS. Instrução Normativa INSS n. 74 de 03 de outubro de 2014 - Dispõe sobre o procedimento de apuração e cobrança administrativa de valores devidos o INSS. Disponível em: Instrução Normativa INSS Nº 74 DE 03/10/2014 - Federal - LegisWeb
INSS. Instrução Normativa INSS/PRES Nº 128 DE 28/03/2022 - Disciplina as regras, procedimentos e rotinas necessárias à efetiva aplicação das normas de direito previdenciário. Disponível em: [Instrução Normativa INSS/PRES Nº 128 DE 28/03/2022 - Federal - LegisWeb](https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=429426#:~:text=Disciplina as regras%2C procedimentos e,das normas de direito previdenciário.)
SOARES, Fernanda Fortes Rodrigues. Tema 979 do STJ - Segurado tem que devolver os valores recebidos de boa-fé? O Guia Previdenciário. Disponível em: TEMA 979 DO STJ - Segurado tem que devolver os valores recebidos de boa-fé? - O Guia Previdenciário (oguiaprevidenciario.com.br)
STJ. Precedentes Qualificados. Tema Repetitivo 979. Disponível em: STJ - Precedentes Qualificados