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Pluriparentalidade: reconhecimento simultâneo da paternidade biológica e socioafetiva

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Agenda 24/06/2022 às 19:10

O reconhecimento da pluriparentalidade é decorrência dos princípios da afetividade e da busca da felicidade como alicerces na formação da entidade familiar.

“Sou muito grato às adversidades que apareceram na minha vida, pois elas me ensinaram a tolerância, a simpatia, o autocontrole, a perseverança e outras qualidades que, sem essas adversidades, eu jamais conheceria.”

Napoleon Hill.

RESUMO: O presente trabalho busca a análise das principais transformações ocorridas com o conceito da entidade familiar brasileira, a identificação do fenômeno da afetividade e da paternidade socioafetiva, demonstrando suas características essenciais, e a explicação do instituto atual da multiparentalidade, bem como suas consequências jurídicas. Assim, através dos dispositivos legislativos e dos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, especialmente o da Suprema Corte, além dos princípios basilares que norteiam o direito de família brasileiro, defende-se a possibilidade do reconhecimento e a responsabilidade simultânea das filiações biológicas e socioafetivas, observando-se sempre, no caso concreto, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.  

Palavras-chave: Multiparentalidade; Afetividade; Efeitos da Pluriparentalidade.

SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO..........2.A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA ENTIDADE FAMILIAR..3.DIRETRIZES DO DIREITO DE FAMÍLIA....3.1.Principio da Dignidade da Pessoa Humana ...3.2.Principio do Melhor Interesse à Criança e ao Adolescente. 10 ..4.O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.....5.O FENÔMENO DA PLURIPARENTALIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA....6.STF: RESPONSABILIDADE SIMULTÂNEA DA PATERNIDADE BIOLÓGICA SOCIOAFETIVA...7.EFEITOS JURÍDICOS DA MULTIPARENTALIDADE...7.1.Filiação e inclusão do nome ........7.2.Da Obrigação Alimentar ........7.3.Da guarda do menor ......7.4.Do Direito de Visitas .....7.5.Direitos Sucessórios .....8.CONSIDERAÇÕES FINAIS........9.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...


1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, caput, §1ºe §2° concedeu proteção legal à família e determinou que esta fosse formada, através do casamento ou pela união estável entre homem e mulher. Além disso, considerou também como entidade familiar a comunidade formada pelos pais e seus descendentes. 

Ocorre que, ultimamente, a família não tem sido formada por apenas pai, mãe e filhos, tendo em vista que, a jurisprudência dominante vem reconhecendo, na atualidade, a formação familiar independente do casamento, constituída por apenas um genitor e descendentes, bem como através de relacionamentos homoafetivos, estando alicerçadas não somente pelo vínculo sanguíneo e jurídico, mas, sobretudo, pelos laços de afetividade.     

Saliente-se que, inicialmente, na vigência do Código Civil de 1916 predominava-se a verdade jurídica, por meio da paternidade registral. Posteriormente, com o aparecimento do exame de DNA, surgiu a possibilidade de efetivação da verdade biológica. Atualmente, verifica-se que a união entre as pessoas, por meio da afetividade, vem sendo considerado um critério fundamental para constituição da entidade familiar.

Dessa forma, questiona-se se haveria a possibilidade do reconhecimento concomitante da paternidade biológica e a afetiva?

Nesse diapasão, o objetivo do presente estudo de caso é identificar a possibilidade do reconhecimento simultâneo dos pais biológicos e socioafetivos, demonstrando que qualquer forma de hierarquia entre ambos, constitui violação às diretrizes fundamentais previstas na Constituição Federal de 1988, especialmente, a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

A problemática a ser solucionada consiste em demonstrar, através das decisões dos Tribunais brasileiros, os motivos pelos quais se considera possível juridicamente o reconhecimento do instituto da multiparentalidade, a qual acarreta diversos efeitos no campo do direito, mormente, o registral, o de guarda, alimentício e no âmbito das sucessões, observando-se sempre, no caso concreto, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. 

A metodologia usada na pesquisa é a histórica e dedutiva, sendo que nesta ultima está incluído o estudo bibliográfico e descritivo. As considerações finais consistem nos aspectos conclusivos da pesquisa, acompanhada dos resultados alcançados.


2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA ENTIDADE FAMILIAR

Importa trazer à baila que o Código Civil de 1916, veementemente patriarcal, regulamentava uma sociedade com o perfil conservador, tornando o vínculo matrimonial o meio exclusivo para o reconhecimento da paternidade no Brasil, conforme se vislumbra dos ensinamentos da ilustre doutrinadora Maria Berenice Dias (2005):

Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando uma unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo uma entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família enseja melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal.

Ocorre que o surgimento da Carta Magna de 1988 incluiu princípios basilares de proteção à família, ampliando consideravelmente, em seu artigo 228, o conceito da entidade familiar, fazendo com que o casamento deixasse de ser o fator preponderante para o reconhecimento da paternidade brasileira. 

Nesse diapasão, a CRFB/1988 vedou expressamente a distinção de direitos entre os filhos, ainda que oriundos de pais diversos, em observância ao princípio da igualdade, norteador da família atual brasileira.

Após, com a vigência do Código Civil de 2002, houve uma alteração significativa na definição do núcleo de família, a qual passou a ter um caráter pluriforme, formada por pessoas unidas tanto pelo elo biológico quanto pelo aspecto da afetividade. 

Consequentemente, a entidade familiar passou a assumir um caráter de pluralidade, possibilitando, assim, a ocorrência de diversos arranjos familiares (matrimonial, união estável, monoparental, dentre outros). 

Ademais, incumbe destacar que o rol de modalidades familiares previstas no dispositivo da Carta Magna/1988 é tão somente exemplificativo, podendo ser tutelada diversas formas de arranjos familiares, pautada na afetividade, ainda que não esteja prevista na Constituição Federal.

Nesse contexto, ensina o Mestre Farias e Rosenvald (2011, p.48): “é preciso ressaltar que o rol da previsão constitucional não é taxativo, estando protegida toda e qualquer entidade familiar, fundada no afeto, esteja ou não, contemplada expressamente na dicção legal.” 

Desse modo, a entidade familiar tradicional (pai, mãe e filhos biológico), foi perdendo o monopólio, haja vista o surgimento da família moderna, formada por relacionamentos homoafetivos, bem como por filhos socioafetivos, padrastos e madrastas, trazendo diversas discussões para o Direito de Família brasileiro acerca dessa nova realidade familiar, qual seja a mutiparentalidade.

Nesse sentido, em 05 de maio de 2011, foi publicado o acórdão da ADI 4277 DF, no qual os Ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceram juridicamente a união homoafetiva no país, concedendo os mesmo direitos e deveres da união estável, e, ampliando, categoricamente o conceito da entidade familiar:

EMENTA:1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação.

  1. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A  PROIBIÇÃO       DO       PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.
  2. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO  SUBJETIVO    DE    CONSTITUIR    FAMÍLIA.    INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.
  3. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
  4. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.
  5. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4277/DF. Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Relator Ministro Ayres Britto. Órgão Julgador Tribunal Pleno. Julgamento 05/05/2011).

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Dessa forma, o caráter de pluralidade da família vem possibilitando que os critérios para a definição da paternidade/maternidade, na atualidade, sejam tanto o biológico quanto o socioafetivo. Diante desse contexto, passou-se a questionar qual dos critérios poderia se sobrepor em relação ao outro? 

Os doutrinadores possuíam entendimento majoritário no sentido de que havendo a comprovação da paternidade biológica, por meio do Exame de DNA, esta sempre prevaleceria. No entanto, na ultima década, a doutrina e a jurisprudência brasileira passaram a dar prioridade à convivência harmônica e afetiva, de modo que havendo confronto entre pais biológico e socioafetivo, este último prevaleceria.

O novo questionamento reside no sentido de haver a possibilidade do reconhecimento simultâneo dos dois tipos de paternidades, qual seja a biológica e a afetiva, as quais podem gerar, atualmente, várias consequências no Direito de Família, inclusive, a registral, a concessão de guarda e regulamentação de visita, a fixação de obrigação alimentar e os direitos sucessórios. 


3. DIRETRIZES DO DIREITO DE FAMÍLIA

Os Tribunais brasileiros vêm admitindo o reconhecimento da multiparentalidade, caracterizando a hipótese como um novo conceito, que já se encontra concebido pelo Direito de Família.

Nesse sentido, uma parte dos doutrinadores vem defendendo o reconhecimento simultâneo da filiação biológica e socioafetiva acompanhada de todos os seus efeitos jurídicos, especialmente os vínculos de parentesco com os dois pais, os alimentos e a herança. 

Dessa forma, as legislações tendem a se adequar a realidade social, como ocorreu com a Carta Magna/1988, a qual dispôs que o Estado passaria a proteger não só a família tradicional, mas também outras formas de entidades familiares, surgindo assim o reconhecimento das uniões homoafetivas e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. 

Além disso, convém salientar que a filiação não é oriunda apenas do parentesco consanguíneo, pois o artigo 1.593 do Código Civil de 2002 descreve que

“o parentesco é natural ou civil, conforme resultado de consanguinidade ou outra origem”.  Acrescente-se que o artigo 227, § 6°, da Constituição Federal de 1988, proíbe expressamente a prática discriminatória inerente à filiação. 

O Instituto da multiparentalidade, especialmente a possibilidade jurídica do reconhecimento da paternidade socioafetiva do padrasto para com o enteado também se fundamenta nos princípios constitucionais vigentes, mormente o da dignidade da pessoa humana, e o do melhor interesse da criança e do adolescente.

3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental, previsto no art. 1°, III, da Constituição Federal de 1988. Trata-se de um princípio norteador do Direito de Família brasileiro, conforme ilustra Madaleno (2011, p.42): “a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas sob a luz do Direito Constitucional”. 

Nesse diapasão, tal princípio direciona o entendimento dos tribunais acerca do instituto da multiparentalidade e proíbe distinções de tratamento entre filhos, independentemente de suas origens, conforme se verifica através dos seguintes julgados:

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DO REGISTRO. RELAÇÃO SÓCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO LIVRE E SEM VÍCIO. ARREPENDIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DIGNIDADE DA PESSOA RECONHECIDA. 1. O DIREITO AO CONHECIMENTO DA VERDADEIRA FILIAÇÃO BIOLÓGICA É CONFERIDA AO MENOR E JAMAIS AO PAI, EM VISTA DA PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, NÃO PODENDO FICAR AO ALVEDRIO DAQUELE QUE LIVREMENTE E SEM VÍCIO DE CONSENTIMENTO PROMOVEU O RECONHECIMENTO MESMO SABEDOR DE QUE NÃO ERA O PAI, SALVO SE DEMONSTRADO ERRO OU FALSIDADE, EM FACE DA  IRREVOGABILIDADE DO ATO JURÍDICO DECLARATÓRIO, SEGUNDO INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1.604 DO CÓDIGO CIVIL, O QUE NÃO SE CARACTERIZOU NA HIPÓTESE VERTENTE. 2. A PRESERVAÇÃO DO ATO MILITA A FAVOR DO RECONHECIDO, AO QUAL É FACULTADA A BUSCA DA VERDADE REAL QUANDO ALCANÇAR A MAIORIDADE, NÃO  SE PERMITIDO AO FALSO PAI VALER-SE DA PRÓPRIA TORPEZA. 3. APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA. (TJ-DF - APL: 218217520068070003 DF 0021821-75.2006.807.0003, Relator: DONIZETI APARECIDO, Data de Julgamento: 05/08/2009, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: 15/10/2009, DJ-e Pág. 92) 

  (...) 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO PELO AUTOR DE FILHO ALHEIO COMO PRÓPRIO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DO REQUERENTE. PLEITO PELA REFORMA DA SENTENÇA SOB O ARGUMENTO DE NÃO SER PAI BIOLÓGICO DA REQUERIDA, TENDO REGISTRADO-A COMO SUA FILHA POR TER SIDO INDUZIDO A ERRO PELA GENITORA. INSUBSISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE PROVA DE OCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. ÔNUS QUE INCUMBIA  AO AUTOR. EXEGESE DO ART. 333, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO  CIVIL. PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IRREVOGABILIDADE DO ATO REGISTRAL. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1º, DA LEI Nº 8.560/92 E ARTIGO 1.609, DO CÓDIGO CIVIL. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO  ADOLESCENTE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. - O dispositivos legais da codificação atual viabilizam a manutenção dos vínculos de parentesco mesmo quando se verifica a ausência entre pai e filho de relação biológica. A paternidade, a maternidade e os estreitos e verdadeiros laços familiares se formam pela atenção continuada e pela convivência social; perde relevância a consaguinidade, pois o que ganha importância e significado para manter a relação jurídica de parentalidade é a posse de estado de filho. Deste modo, mostra-se impossível o "arrependimento" pelo registro voluntário de criança com a qual sabia não manter vinculação biológica. Não existe em nosso ordenamento "divórcio de filiação". Nesse viés, ainda que a paternidade atribuída ao autor (por ato próprio) tenha como fundamento inicial um ilícito civil e penal, após a consolidação da situação socioafetiva não há como ser desconstituído o registro civil da requerida, a não ser por vontade do pai biológico de vê-la reconhecida como filha, ou ainda, em face do pedido da própria filha (tudo mediante apreciação equitativa do juízo cível competente). (TJ-SC - AC: 188525 SC 2007.018852-5, Relator: Denise Volpato, Data de Julgamento: 26/08/2011, Primeira Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: Apelação Cível n. , de Laguna)

Nesse diapasão, o princípio da dignidade da pessoa humana, direito fundamental, representa a base de toda a entidade familiar, sendo resultado da junção dos sentimentos de tutela, amor, compreensão, afetividade e respeito, tornando-se, verdadeira fonte para o desenvolvimento psicológico infanto-juvenil.   

3.2. Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente

Esse princípio, o qual determina a prevalência dos interesses da criança e do adolescente na resolução de quaisquer questionamentos que envolvam os menores, possui previsão no artigo 227, da Constituição Federal de 1988:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  

Ademais, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/1990, esse dispositivo constitucional foi regulamentado, detalhadamente, protegendo, de forma cabal, os interesses dos menores, por se encontrarem em situação de extrema vulnerabilidade perante toda a sociedade.

Nesse mesmo sentido, prevê o artigo 3° da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil, por meio do Decreto-Lei n. 99.710 de 1990: “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou provadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. 

Nesse diapasão, a Declaração dos Direitos da Criança adotada pela Assembleia das Nações Unidas (1959) assim determina:

Princípio 6. Para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral e material, salvo circunstâncias excepcionais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe. À sociedade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar cuidados especiais às crianças sem família e àquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas.

Ademais, convém trazer à baila os ensinamentos do Ilustre Doutrinador Gama (2008), o qual enxerga tal princípio como garantidor da tutela do menor, pois  modificou o eixo das relações familiares, tendo em vista que a criança e o adolescente passaram a ser tratados com plena prioridade comparativamente aos demais entes de sua família das relações intrafamiliar:

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente representa importante mudança de eixo nas relações paterno-materno-filiais, em que o filho deixa de ser considerado objeto para ser alçado a sujeito de direito, ou seja, a pessoa humana merecedora de tutela do ordenamento jurídico, mas com absoluta prioridade comparativamente aos demais integrantes da família de que ele participa. Cuida-se, assim, de reparar um grave equivoco na história da civilização humana em que o menor era relegado a plano inferior, ao não titularizar ou exercer qualquer função na família e na sociedade, ao menos para o direito. 

 Os Tribunais brasileiros vêm aplicando o entendimento no sentido de ser possível o reconhecimento da paternidade socioafetiva, quando corresponder o melhor interesse da criança/adolescente, ainda que não haja o consentimento do pai biológico:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 45 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NÃO OCORRÊNCIA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA DEMONSTRADA COM O ADOTANTE. MELHOR INTERESSE DO ADOTANDO. DESNECESSIDADE DO CONSENTIMENTO DO PAI BIOLÓGICO. 1. Cinge-se a controvérsia a definir a possibilidade de ser afastado o requisito do consentimento do pai biológico em caso de adoção de filho maior por adotante com quem já firmada a paternidade socioafetiva. 2. O ECA deve ser interpretado sob o prisma do melhor interesse do adotando, destinatário e maior interessado da proteção legal. 3. A realidade dos autos, insindicável nesta instância especial, explicita que o pai biológico está afastado do filho por mais de 12 (doze) anos, o que permitiu o estreitamento de laços com o pai socioafetivo, que o criou desde tenra idade. 4. O direito discutido envolve a defesa de interesse individual e disponível de pessoa maior e plenamente capaz, que não depende do consentimento dos pais ou do representante legal para exercer sua autonomia de vontade. 5. O ordenamento jurídico pátrio autoriza a adoção de maiores pela via judicial quando constituir efetivo benefício para o adotando (art. 1.625 do Código Civil). 6. Estabelecida uma relação jurídica paterno-filial (vínculo afetivo), a adoção de pessoa maior não pode ser refutada sem justa causa pelo pai biológico, em especial quando existente manifestação livre de vontade de quem pretende adotar e de quem pode ser adotado. 7. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1444747 DF 2014/0067421-5, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 17/03/2015, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/03/2015)

Por outro lado, questiona-se se o reconhecimento da dupla paternidade prejudicaria o desenvolvimento físico e/ou psicológico do infante?  A jurisprudência brasileira vem decidindo no sentido de que a família multiparental resguarda, veementemente, o melhor interesse da criança e do adolescente:

DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. EXAME DE DNA. PAI BIOLÓGICO QUE VINDICA ANULAÇÃO DO REGISTRO DO PAI REGISTRAL. EXCLUSÃO DO NOME DO PAI REGISTRAL. INOVAÇÃO RECURSAL. INCLUSÃO DO PAI BIOLÓGICO SEM PREJUÍZO DO PAI REGISTRAL. INTERESSE MAIOR DA CRIANÇA. FAMÍLIA MULTIPARENTAL. POSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. 1. 1. Resguardando o melhor interesse da criança, bem como a existência de paternidade biológica do requerente, sem desconsiderar que também há paternidade socioafetiva do pai registral, ambas propiciadoras de um ambiente em que a menor pode livremente desenvolver sua personalidade, reconheço a paternidade biológica, sem, contudo, desfazer o vínculo jurídico oriundo da paternidade socioafetiva. 4. Recurso provido na parte em que foi conhecido para reformar a sentença.(TJ-RR - AC: 0010119011251, Relator: Des. ELAINE CRISTINA BIANCHI, Data de Publicação: DJe 29/05/2014).

A pluriparentalidade, portanto, vem sendo viabilizada tanto pelos doutrinadores quanto pelas jurisprudências, por ser considerado o instrumento que engloba duplicidade de afeto, amor, carinho, zelo e cuidado, em prol da criança e do adolescente, tutelando-se, assim, um maior interesse dos menores.  

Sobre a autora
Kelly Rabelo Santana Alves

Graduada em Direito pela UCSAL Especialista em Direito Civil pela PUC - MG Especialista em Psicologia Jurídica pela Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Kelly Rabelo Santana. Pluriparentalidade: reconhecimento simultâneo da paternidade biológica e socioafetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6932, 24 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98436. Acesso em: 22 dez. 2024.

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