Seguindo o nosso compromisso de atualizar os leitores sobre pontos controversos do direito penal e processual penal, hoje iremos abordar a questão do preso, em cumprimento de pena, que se utiliza da tornozeleira eletrônica. Em caso de violação ao dispositivo (seja por falha, ausência de carga da bateria ou quebra do perímetro estabelecido) a regressão de regime é obrigatória?
Bem, para aclarar o assunto, necessário mencionar que o Código Penal e a Lei de Execução Penal possuem como fonte de inspiração o sistema progressivo para o cumprimento da pena, para o qual a pena deve ser cumprida em estágios, de forma mais rigorosa para a menos rigorosa, até que o indivíduo alcance a liberdade. A tornozeleira eletrônica pode ser, em regra, adotada no regime aberto, contudo, vários estados, por não possuírem espaços adequados para o cumprimento do regime semiaberto, ou, quando os possuem, estes são insuficientes, acaba-se adotando a utilização do aparelho como forma de controle do deslocamento do preso, verificando se está cumprindo a determinação judicial. Tudo isso em virtude do reconhecimento do estado de coisas inconstitucionais, caracterizado pela existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, como já analisado na ADPF 347/15 pelo STF.
A Lei de Execução Penal diz o seguinte:
Art. 146-B. O juiz poderá definir a fiscalização por meio da monitoração eletrônica quando:
(..)
II - autorizar a saída temporária no regime semiaberto;
(...)
IV - determinar a prisão domiciliar;
Art. 146-C. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento eletrônico e dos seguintes deveres:
I - receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos seus contatos e cumprir suas orientações;
II - abster-se de remover, de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça;
Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres previstos neste artigo poderá acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa:
I - a regressão do regime;
II - a revogação da autorização de saída temporária;
VI - a revogação da prisão domiciliar;
VII - advertência, por escrito, para todos os casos em que o juiz da execução decida não aplicar alguma das medidas previstas nos incisos de I a VI deste parágrafo;
Art. 146-D. A monitoração eletrônica poderá ser revogada:
I - quando se tornar desnecessária ou inadequada;
II - se o acusado ou condenado violar os deveres a que estiver sujeito durante a sua vigência ou cometer falta grave.
Sobre a falta grave, temos que o Superior Tribunal de Justiça já possui entendimento consolidado de que o rol de faltas graves do artigo 50 da LEP é taxativo o que inclui o artigo 39, II e V, por força do inciso VI do artigo 50.
E no caso de ocorrência de violação ou falha no sistema da tornozeleira eletrônica haverá regressão de regime automática?
Bem, preciso dizer que o STJ possui um entendimento rigoroso sobre a temática, de modo que lançamos algumas das teses do Tribunal, abaixo (CUNHA, 2020):
1) A inobservância do perímetro estabelecido para monitoramento de tornozeleira eletrônica configura falta disciplinar de natureza grave, nos termos dos art. 50, VI, e art. 39, V, da LEP.
Como vimos nos comentários à tese anterior, é dever do condenado executar o trabalho, as tarefas e as ordens recebidas (art. 39, inc. V). Quem descumpre esse dever, comete falta grave (art. 50, inc. VI).
Nos casos de prisão domiciliar com monitoramento eletrônico (art. 146-B, inc. IV), é imposta ao agente a obrigação de respeitar determinado limite espacial de deslocamento. Caso o monitorado desrespeite a ordem, comete falta grave, que acarreta a revogação do benefício:
1. Nos termos do art. 146-C, I, da LEP, o apenado submetido a monitoramento eletrônico tem que observar as condições e limites estabelecidos para deslocamento. Ao violar a zona de monitoramento e romper a tornozeleira, o apenado desrespeitou ordem recebida, o que configura a falta grave tipificada no art. 50, VI, c/c o art. 39, V, ambos da LEP, nos termos da jurisprudência deste Tribunal Superior. Precedentes (HC n. 438.756/RS, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 11/6/2018). 2. Agravo regimental improvido
(AgRg no HC 465.558/RS, j. 18/08/2020).
A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que inobservar as ordens recebidas (art. 39, V, da LEP), como é a hipótese de violação da zona de monitoramento
(AgRg no AREsp 1.704.010/TO, j. 04/08/2020).
2) A utilização de tornozeleira eletrônica sem bateria suficiente configura falta disciplinar de natureza grave, nos termos dos art. 50, VI, e art. 39, V, da LEP.
Se o condenado utiliza a tornozeleira eletrônica, mas não adota os cuidados necessários para mantê-la em funcionamento, sua omissão equivale à violação do equipamento, que fica impedido de cumprir sua função. Por isso, há falta grave:
O acórdão do Tribunal de origem encontra-se alinhado ao entendimento deste Superior Tribunal de Justiça de que a utilização de tornozeleira eletrônica sem bateria configura falta grave, nos termos dos arts. 50, VI, e 39, V, ambos da LEP, pois o apenado descumpre a ordem do servidor responsável pela monitoração, para manter o aparelho em funcionamento, e impede a fiscalização da execução da pena
(AgRg no AREsp 1.569.684/TO, j. 10/03/2020).
3) O rompimento da tornozeleira eletrônica configura falta disciplinar de natureza grave, a teor dos art. 50, VI e art. 146-C da Lei n. 7.210/1989 LEP.
Se o descumprimento do perímetro imposto e a utilização da tornozeleira sem carga de bateria configuram falta grave, com muito mais razão deve ser punido o rompimento do equipamento de fiscalização, atitude que pode ser equiparada à fuga do condenado:
Adequada a regressão de regime determinada em razão da prática de falta grave, consubstanciada na evasão do regime semiaberto e no rompimento da tornozeleira eletrônica
(AgRg no HC 594.828/SP, j. 13/10/2020).
Nos termos do art. 146-C, II, da LEP, o apenado submetido ao monitoramento eletrônico tem que observar o dever de inviolabilidade do equipamento, no caso a tornozeleira eletrônica, não podendo remover, violar, modificar ou danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração, ou mesmo permitir que outrem o faça. III Ao romper a tornozeleira eletrônica, o paciente praticou conduta que configura a falta grave, que pode ser equiparada, em determinadas hipóteses, à própria fuga, conforme previsto no art. 50, II, ou na inobservância das ordens recebidas, a teor do art. 50, VI, c.c. o art. 39, V, c.c. o art. 146-C, todos da Lei de Execução IV Na hipótese em apreço, o eg. Tribunal a quo, de forma fundamentada, considerou a conduta praticada equivalente à própria fuga (art. 50, II, LEP), considerando o fato de que, ao romper o equipamento, o paciente permaneceu sem fiscalização por aproximadamente 3 (três) anos e 6 (seis) meses, quando foi recapturado
(HC 527.117/RS, j. 03/12/2019).
O rompimento da tornozeleira eletrônica ou o uso da tornozeleira sem bateria suficiente constitui falta grave, nos termos do art. 50, inc. V , da Lei nº 7.210 /84, passível de regressão de regime nos exatos termos do inc. I do art. 118. do mesmo Diploma Legal. Contudo a decisão pela regressão de regime ou outra medida adequada deve ser tomada à luz do caso concreto.
Devemos estar atento às normas da execução penal, para que se possa perquirir a melhor estratégia defensiva.
A execução penal é um conjunto de princípios e normas que norteiam a execução das penas e das medidas de segurança, bem como as relações entre o Estado, detentor do jus puniendi, e o condenado (COELHO, 2011).
A Execução Penal é regida pelos princípios: da humanidade das penas; da legalidade; da personalização da pena; da proporcionalidade da pena; da isonomia; da jurisdicionalidade; da vedação ao excesso da execução e, finalmente, da ressocialização, em consonância, óbvio com os princípios constitucionais e os Tratados Internacionais. Da personalização da pena ecoa o principio da proporcionalidade e da isonomia, de modo que em relação a estes, deve o advogado demonstrar ao juiz que, no caso concreto, a regressão do regime por violação mínima e pontual do dispositivo da tornozeleira eletrônica (por dolo ou culpa) é desproporcional, atentando também contra o principio da ressocialização.
O enfrentamento do tema é complexo e o advogado deve estar preparado para argumentar com foco nas questões circunstanciais que levaram ao descumprimento das condições impostas. Para tanto, em caso de falha na bateria ou rompimento do lacre, necessário comprovar que o reeducando tentou entrar em contato com a central de monitoramento, através de ligações, além de anexar fotos e vídeos do aparelho, nos autos, imediatamente.
Nesse caso argumenta-se a ausência de dolo na violação, tendo ocorrido a título de culpa.
Além disso, o causídico deve demonstrar que aquela violação não causou prejuízo ao cumprimento da pena, dado seu caráter pontual. Ainda assim, em caso de rompimento do perímetro estipulado, justificar a situação de urgência que levou o reeducando a prática de tal ato (problemas de saúde ou necessidade de acompanhar terceiros em situações inadiáveis)
Tendo em vista que, na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-á em conta a pessoa do faltoso, a natureza e as circunstâncias do fato, bem como as suas consequências (artigo 57 da LEP), é possível a aplicação de advertência ou suspensão de outros direitos, ao invés da regressão de regime, medida extrema.
O objetivo do artigo não é exaurir o tema, mas sim propor o debate, tendo em vista que, cada vez mais, a mídia repercute notícias relacionadas ao aqui aludido.
E você, qual sua opinião?
Referências
CUNHA, Rogério Sanches. Teses do STJ sobre falta grave na execução penal IV (1ª Parte). Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/11/13/teses-stj-sobre-falta-grave-na-execucao-penal-iv-1a-parte/ . Acesso em 02 jun. 2022.
LAW, INDEPENDENT BRANCH OF BRAZILIAN. Considerações sobre os princípios que regem a execução penal como ramo autônomo e jurisdicional do direito brasileiro. Revista Internauta de Práctica Jurídica, n. 27, p. 149-151, 2011.