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Teorias da culpabilidade e legítima defesa putativa

Agenda 01/07/2000 às 00:00

Imagine-se a seguinte hipótese.

Em época de elevada criminalidade na cidade, com diárias notícias de homicídios, latrocínios, seqüestros relâmpagos, assaltos etc., o dono de uma pequena empresa, no dia do pagamento do salário aos seus funcionários, estando em mãos com vinte mil reais, ao constatar o súbito ingresso de dois rapazes no escritório, acreditando tratar-se de um assalto, reage com o emprego de arma, desferindo-lhes seis e letais tiros. Comprova-se, posteriormente, que os rapazes tinham ido ao escritório em busca de emprego e não para praticarem assalto.

De pronto, sem margem a discussão teórica, o fato hipotizado não comportaria enquadramento no art. 25 do CP. A legítima defesa, como excludente da antijuridicidade pressupõe, dentre outros, o requisito da agressão, atual ou iminente, sempre, porém, como fato da realidade.

O empresário apenas "pensou" que estivesse prestes a ser assaltado. Seu erro, incidente sobre pressuposto fático da legítima defesa (que dá vez à chamada "legítima defesa putativa"), comporta diferentes soluções no âmbito da doutrina do direito penal, conforme a corrente que se siga.


Segundo a teoria "extremada da culpabilidade", todo e qualquer erro que recaia sobre uma causa excludente da ilicitude deve receber o tratamento jurídico-penal dado ao "erro de proibição". Desde que o sujeito atue na suposição de que não faz algo antijurídico, contra o direito, tanto faz errar sobre elemento fático (erro sobre o fato de o prédio estar em chamas), sobre a existência (sapateiro que vende os sapatos deixados pelo freguês há mais de ano, para ressarcir-se dos serviços, pensando estar juridicamente autorizado a fazê-lo) ou sobre os limites de uma excludente reconhecida pela ordem jurídica (marido dá violenta surra na mulher ao vê-la animadamente dançando com outro).

Para Welzel, os três casos de suposição errônea de concurso de uma causa de justificação são igualmente erros de proibição: o erro inevitável exclui a culpa, o evitável atenua-se segundo a medida da culpabilidade (Derecho Penal Aleman, pág. 235).

Assim, sob o prisma da teoria extremada, os dois homicídios seriam típicos e antijurídicos, podendo ser excluída ou diminuída a culpabilidade. O erro produziria efeitos tão só no terreno da culpabilidade, permanecendo íntegra a tipicidade dolosa.

Esta teoria, de minoritário acolhimento dentre os autores, não pode ser aplicada no direito penal brasileiro em face da expressa regra do §1º, art. 20, do CP. Nossa legislação não admite que se dê ao erro inevitável sobre pressuposto fático o efeito de diminuição da culpabilidade dolosa.

Em sentido oposto, a teoria "limitada da culpabilidade" propõe um tratamento diferenciado, segundo a natureza do erro.

Será tratado como erro de proibição somente quando o erro recair sobre a existência ou limites de uma causa de justificação – erro de permissão (art. 21, do CP).

Quando o erro recair sobre um pressuposto fático da excludente, erro sobre a agressão, por ex., deverá receber o tratamento dispensado ao erro de tipo (art. 20, § 1º, do CP), embora com este não se confunda – erro de tipo permissivo.

Nesta perspectiva, acolhida pela CP, conforme consta da Exposição de Motivos da Reforma de 1984 (item nº 17), independentemente da natureza vencível ou invencível do erro no qual o proprietário da empresa incorreu, a tipicidade dolosa dos homicídios estaria prontamente excluída, restando apurar, e aí sim conforme a evitabilidade ou não do erro, sua responsabilidade por homicídio culposo.

Há quem entenda, porém, e não são em pequeno número os seus defensores, que, mesmo sendo excluída a responsabilidade à título de dolo, o efeito do erro inevitável sobre pressuposto fático não deve ser o de exclusão da tipicidade dolosa e sim o de exclusão da culpabilidade dolosa – isenção de pena (Jescheck, Wessels, Maurach).

O dolo se mantém íntegro, não havendo afetação do respectivo tipo, apesar do erro sobre pressuposto fático da excludente. E, quando evitável o erro, por analogia, a conseqüência jurídica é a da sua equiparação ao erro de tipo.

Esta compreensão parte de uma visão que dá ao dolo dupla função. Sua presença no tipo, como elemento subjetivo, não implica em perda de significado na culpabilidade.

Conforme Johannes Wessels, em face do princípio da culpabilidade, culpa e pena devem se corresponder mutuamente.

"Como as cominações legais de pena são essencialmente menores nos fatos negligentes do que nos dolosos, a representação do legislador se expressa em que entre fatos puníveis dolosos e negligentes não subsiste uma diferença só no injusto da conduta, mas também que há uma diferença de culpabilidade, que afeta a graduação da pena.

"Disso segue que com os conceitos de dolo e negligência não se devem indicar somente formas diferenciadas de conduta, mas igualmente duas formas diversas de culpabilidade, nas quais o dolo, no sentido de culpabilidade dolosa, representa o degrau mais elevado e a negligência, no sentido de culpabilidade negligente, o mais diminuto.

"No tipo de injusto o dolo é, como forma de conduta, o portador do sentido jurídico-social da ação, que compreende as relações psíquicas do autor para com o acontecimento fático exterior (= dolo do tipo em sentido estrito, como realização consciente e volitiva das circunstâncias objetivas).

"No setor da culpabilidade, o dolo é, como forma de culpa, o portador do desvalor do ânimo, que expressa o deficiente ânimo jurídico especificadamente ligado à realização dolosa do tipo (= posição dolosa e defeituosa para com a ordem jurídica).

"Como a realização do tipo somente indicia a antijuridicidade do fato, assim também o dolo do tipo, como elemento subjetivo do injusto, só oferece um indício para o tipo de culpabilidade que lhe corresponde. Este indício pode desaparecer em situações atípicas, como, por exemplo, na tomada errônea de circunstância justificante do fato" (Direito Penal, Parte Geral, pág. 37).

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Assim, como "forma de conduta" e "forma de culpabilidade", o dolo desempenha uma "dupla função" no sistema do delito.

Quando o agente erroneamente supõe a existência de pressuposto fático da excludente (por ex., a existência da agressão), a realização dolosa do tipo não será expressão do ânimo do tipo de culpa que lhe corresponde normalmente (Wessels, ob. cit., pág. 90), como ânimo adverso ao Direito, porque, se não fosse o erro sobre a realidade, ele seria fiel ao Direito, querendo observar a lei (Munhoz Neto, A Ignorância da Antijuridicidade em Matéria Penal, pág. 86), e o fato seria lícito.

Na circunstância, a realização do tipo seria fruto de uma atenção defeituosa, de uma posição negligente para com os deveres de cuidados impostos pela ordem jurídica, igual ao que se dá nos fatos culposos, sendo, pois, a censura, qualitativamente correspondente a uma censura de culpabilidade negligente, razão pela qual é de ser equiparado, em termos de conseqüências jurídicas, quando inevitável, ao genuíno erro de proibição: o agente fica isento de pena, tendo excluída a culpabilidade. Quando evitável, o erro de tipo permissivo deve ser equiparado, em termos de conseqüência jurídica, ao erro de tipo vencível (art. 20, § 1º, do CP).

Cumpre observar que esta posição doutrinária, consagrando uma teoria de culpa que remete para as conseqüências jurídicas, não implica em confusão do erro de tipo permissivo com o erro de tipo nem com o erro de proibição. O erro sobre pressuposto fático possui natureza própria e específica, apresentando-se como um erro "sui generis", situado a meio termo entre o erro de tipo e o erro de proibição indireto.

À semelhança do erro de tipo, recai sobre um elemento do tipo justificante, e, à semelhança do erro de proibição, o sujeito erra sobre elementos que fundamentam a ilicitude material.

Mas não é erro de tipo porque o sujeito quer realizar o tipo (característica do erro de tipo é a ausência de dolo como vontade de cometimento do fato descrito pelo tipo), nem é erro de proibição porque não tem por base uma valoração da ordem jurídica e sim uma situação da realidade.

Assim, a tipicidade dolosa permanece íntegra e o agente poderá ter excluída a culpabilidade quando o erro for inevitável.

Nos casos de erro vencível, a regra do erro de tipo só lhes é aplicada com vistas a uma igualdade no tratamento jurídico com o erro de tipo (teoria da conseqüência jurídica).

Também deve ser referido que a teoria do erro "sui generis" não se confunde com a extremada.

Para a teoria extremada o erro sobre pressuposto fático é sempre erro de proibição. Para a teoria que remete à conseqüência jurídica, o erro sobre pressuposto não é erro de proibição e pode receber o mesmo tratamento dispensado ao erro de tipo, quando evitável, em uma equiparação de seus efeitos penais que se justifica pela identidade da natureza negligente do fato de que decorrem.

A aplicação desta teoria é admissível à luz do direito penal brasileiro.

O CP, embora regulamente o erro de tipo permissivo (§ 1º do art. 20) no âmbito do erro de tipo ("caput" do art. 20), não os confunde. Se os confundisse não haveria razão plausível à existência do § 1º. Ao conferir uma certa autonomia ao erro de tipo permissivo, admite que se lhe possa dar o tratamento preconizado pela teoria do "erro sui generis", única, aliás, e a observação é de Teresa Serra, "capaz de explicar teoricamente a natureza, as características e o regime deste erro" (Problemática do Erro sobre a Ilicitude, pág. 86).

Por derradeiro, seja sob o prisma da teoria extremada, da limitada ou da teoria moderna da culpabilidade (a que remete à conseqüência jurídica), tomando-se o erro do empresário como erro inevitável, não é correto afirmar-se a ocorrência de "crimes" de homicídio.

Para a teoria limitada, porque faltaria tipicidade. Para as teorias extremada e moderna, porque faltaria culpabilidade, embora afirmadas a tipicidade e a antijuridicidade.

Sendo obra do homem, o delito não é estruturado tão só por valorações da conduta frente às exigências de proteção do bem jurídico. Os juízos de tipicidade e antijuridicidade, que têm como objeto a conduta humana e por enfoque a violação ao bem jurídico protegido, não o esgotam em termos de composição. O delito também é composto de uma valoração da ordem jurídica sobre o autor da conduta típica e antijurídica, juízo de censura que a culpabilidade encerra. A culpabilidade, pois, é o terceiro elemento que dá estrutura à infração penal. Na sua falta, apesar de típico e antijurídico, o fato não se constitui em infração penal.

Sobre o autor
Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999. Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG. Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito. Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS. Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos. Possui livros e artigos jurídicos publicados. À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas. Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Carlos Otaviano Brenner. Teorias da culpabilidade e legítima defesa putativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/991. Acesso em: 22 nov. 2024.

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