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EL SALVADOR E A SALVAÇÃO NAS CRIPTOMOEDAS?

Agenda 13/07/2022 às 11:16

Há cerca de um ano, El Salvador, adotou o bitcoin,  como moeda oficial, esse pequeno país com uma população menor do que o Estado de Santa Catarina, viu nesse período a sua reserva nacional em bitcoin perder 60% do valor.

Um dos propósitos quando da adoção era que a criptomoeda transformasse a economia de El Salvador, fazendo uma verdadeira revolução financeira, o que passados pouco mais de 12 meses não foi exatamente o que ocorreu.

Além de perder 60% dos valores da sua reserva de criptomoedas, o uso de bitcoin entre os salvadorenhos despencou, e o país está ficando sem dinheiro vivo, depois do seu presidente, Bukele fracassar em captar novos fundos com investidores do ramo de criptomoedas.

Curiosamente em que pese o desastre financeiro, não parece ter prejudicado a popularidade de Bukele, o que prova que a bolha onde eleitores se transforma em fanáticos cegos não é uma exclusividade dessa ou daquela nação. Segundo pesquisas cerca de 8 a cada 10 salvadorenhos apoiam o presidente, em parte graças a sua popular repressão às gangues criminosas e seus subsídios sobre combustíveis, que amainaram as consequências da inflação global em seu país, semelhanças nas medidas populistas nunca são coincidências.

No ano passado, o governo de Bukele alocou o equivalente a 15% de seu orçamento anual de investimento na tentativa de incorporar o bitcoin à economia nacional.

O governo ofereceu US$ 30, cerca de 1% do que um trabalhador salvadorenho médio ganha em um ano, para todos os cidadãos que baixassem um aplicativo de pagamentos com criptomoedas apoiado pelo governo chamado Chivo Wallet; chivo significa legal na gíria local. Segundo o próprio governo, cerca de 3 milhões de salvadorenhos, ou 60% da população adulta, atenderam ao seu chamado, e mesmo assim o uso da criptomoeda despencou.

A adoção de uma criptomoeda ao nível de um país inteiro tem um problema, que é como integrar na atividade econômica um ativo que ainda mantém um valor extremamente instável, o que vai muito além do enfrentamento regulatório, pois esse a política jurídica resolve. No caso do bitcoin, com um risco relativamente baixo devido ao seu já alto nível de emissão e sua forte adoção em todos os níveis, o fato de o ativo ser como tal na fase de descoberta de valor significa que seu uso, no momento, só é adequado como uma reserva de valor,  e muito menos como moeda transacional, devido ao nível de incerteza que gera no preço de cada transação.

O efeito dessa limitação é ainda mais evidente nas economias em desenvolvimento, como a de El Salvador, devido, em primeiro lugar, ao fato de que a capacidade de utilização de ativos como reserva de valor tende a ser limitada devido à baixa capacidade de poupança da população. Em segundo lugar, há o problema do acesso à internet e as ferramentas necessárias para a realização de transações em moeda exclusivamente eletrônica, desprovidas de representação física. E em terceiro lugar, há o problema de como lidar com quedas de valor de curto prazo, comuns na fase de descoberta de valor, quando há falta de economia na forma de uma reserva que possa cobrir essas reduções temporariamente.

O problema, portanto, é especialmente relevante para economias como aquelas que, por enquanto, têm tentado aproveitar o incentivo colocado pelo potencial para que o bitcoin suba em sua fase de descoberta de valor, El Salvador e a República Centro-Africana: no caso de que, como aconteceu, o valor do ativo entre em uma fase decrescente devido a uma situação conjuntural no mercado,  investimentos feitos nesse ativo depreciaram temporariamente, e uma base de reserva sólida foi necessária para lidar com essa perda temporária de valor. Se essa reserva é muito escassa ou inexistente na população do país, pode entrar em situações de desequilíbrio significativo.

Por outro lado, o efeito de "oficialização" que muitos usuários estão esperando para adotar uma criptomoeda e que poderia ocorrer quando um país oficializa seu uso, é claramente enfraquecido quando os países que o fazem são muito fracos, instáveis ou sujeitos a fortes tensões econômicas, o que tende a dar à criptomoeda uma imagem menos prestigiada, e transmitir a ideia de que ele é usado como parte de um processo eminentemente especulativo. Em qualquer fase de descoberta de valor, processos especulativos podem ser gerados, mas para capitalizá-los, é necessário ser capaz de enfrentar possíveis momentos de baixa, algo que nesses países não é particularmente claro.

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Em países que tentam incentivar a atividade turística, o uso de uma criptomoeda pode ser útil quando se trata de proteger os turistas dos eventuais altos e baixos de uma moeda local fraca, logo sua oferta funciona como alternativa, e podendo inclusive ser estímulo aso tributos que podem ser cobrados no país de origem desses visitantes como no caso brasileiro em que se tributa com o IOF as compras realizadas no exterior, para esse caso a criptomoeda seria uma alternativa interessante de redução de custo. Mas, novamente, isso exigiria que a criptomoeda fosse mais avançada em sua fase de descoberta de valor, algo que no caso do bitcoin ainda não ocorre.

Educar a população de um país no uso de uma criptomoeda é, por outro lado, extremamente interessante, dado que estamos falando de mecanismos, como criptografia, uso de carteira ou um contrato inteligente, que terá um uso muito comum no futuro em ambientes como a chamada Web 3, logo o elemento pedagógico estaria contemplado, mas por qual preço? Qual o risco para se assumir?  No entanto, embora esse tipo de conhecimento possa se tornar muito desejável e até mesmo recomendado, seu nível de prioridade quando falamos de países em desenvolvimento é mais limitado em relação ao impacto que uma perda de valor de curto prazo de seus depósitos derivados de uma eventual fase descendente pode ter.

É muito importante entender o conceito de risco aplicado a uma criptomoeda como o bitcoin, na qual a fase de criação do ativo está próxima de sua conclusão e a adoção já foi realizada por um grande número de atores relevantes na economia global: embora a fase de descoberta de valor ainda possa oferecer fases de alta e baixa,  estamos falando de um ativo já razoavelmente consolidado que oferece um alto potencial como um armazenamento de valor para qualquer um que possa se dar ao luxo de imobilizá-lo por um tempo potencialmente longo. Diferenciar esse processo de descoberta de valor derivado da adoção da mera especulação é importante, pois condiciona em grande parte o risco que um investidor está disposto a enfrentar ao longo do tempo. No longo prazo, tanto a adoção do bitcoin quanto a consolidação de seu valor oferecem pouca dúvida, embora temporariamente esse valor possa refletir todos os tipos de flutuações. Se aproveitar essa evolução é interessante ou não, seja no nível de um investidor ou na economia de um país inteiro, portanto depende do nível de reservas disponíveis para enfrentar essas possíveis fases descendentes, algo que no caso de países como El Salvador ou república centro-africana pode representar um alto risco macroeconômico,  mesmo inaceitável para muitos de seus habitantes, ou responder a outros tipos de interesses.

Aqui estão as perguntas e respostas que troquei com Isabella sobre o assunto:

O Bitcoin, como em todas as criptomoedas, ainda está na fase de descoberta de valor, e isso depende fundamentalmente do seu nível de adoção. O que muitos consideram especulação é apenas isso, um processo econômico em que o mercado determina o valor de um ativo. Nesse sentido, as criptomoedas são o dinheiro do futuro, mas para que elas também sejam o dinheiro do presente, outra suposição tem que ser feita: que seu valor é estável o suficiente para converter seu uso transacional em operacional. No momento, considerando o uso do bitcoin como moeda transacional é pelo menos complicado, justamente porque seu processo de descoberta de valor ainda está em suas fases iniciais.

Nesse momento Guatemala e Honduras, também estão adotando as criptomoedas no setor turístico, o que, ao meu ver, faz todo sentido.

A República Centro-Africana também optou por adotar o bitcoin como moeda oficial, embora seu caso seja ainda mais complicado considerando a baixa adoção da internet entre sua população, o que é um desafio cultural e econômico. O que os governantes que tomam essas decisões pretendem é alavancar seus rendimentos em uma criptomoeda que muitos esperam aumentar seu valor por um fator muito alto, que pode exceder uma ou duas ordens de magnitude no futuro. Se a sua economia, mesmo que seja originalmente fraca, é capitalizada em bitcoins quando o processo de descoberta de valor ainda tem um longo caminho a percorrer, você tem a oportunidade de obter retornos muito importantes, ou seja se der certo eles surfam na popularidade do ganho da moeda.

Por outro lado, estamos falando de criptomoedas cada vez mais introduzidas na economia regular, que já fazem parte das reservas de muitas empresas, que seguem os padrões de KYC (Know Your Customer) nas empresas que intermediam transações, e que funcionam não apenas como um armazenamento de valor, mas também como um escudo anti-inflação.

Lembro que do ponto de vista do usuário a criptomoeda é extremamente simples de entender, a tecnologia envolvida não tem muitas barreiras para entrar, e a única coisa que você precisa compreender são suas limitações de uso nesse momento, por ser nesse instante apenas uma boa proposta de valor. Neste momento, o mercado de criptomoedas está passando por uma fase de baixa, mas veremos o que acontece quando os cidadãos desses países se encontram, como aconteceu durante as inúmeras fases anteriores de alta, com seu dinheiro multiplicando seu valor de forma consistente. As desvantagens, obviamente, têm a ver com a baixa capacidade de poupança do cidadão médio em alguns desses países, o que pode levar a não conseguir aproveitar esses aumentos de valor esperados. Por outro lado, devemos ter em mente que o uso do bitcoin implica um acesso da população aos meios digitais, e isso, em alguns dos países que o estão realizando, não pode ser dado como certo.

O fato é que  El Salvador está sendo um grande laboratório e como tal paga seus efeitos, pois quando pensamos sobre os possíveis problemas do bitcoin, devemos ter em mente que é um ator destinado a substituir um sistema monetário internacional que é particularmente caro e ineficiente, e cujo uso gera uma enorme quantidade de atrito e despesa. Alfabetizar a população de um país no uso de criptomoedas é algo que pode ter efeitos muito positivos para sua competitividade no futuro.

Como bem destacou Henrique Dans, em recente artigo, no contexto internacional, o que alguns países estão tentando fazer é tentar ser causa e efeito: se mais países adotarem o bitcoin como moeda oficial, o valor do bitcoin deve aumentar, e isso tenderia a capitalizar os países que se tornaram os primeiros motores. Por outro lado, com muitas das empresas mais importantes do mundo, com os grandes bancos e com muitos outros atores significativos no cenário econômico já posicionados em seu uso, mesmo que seja no momento como uma reserva de valor, e com mais de 90% dos bitcoins já produzidos, podemos considerar que a maior parte do risco implícito no bitcoin já se dissipou.

O desafio regulatório para adoção dos criptoativos, é antes de mais nada uma oportunidade que pode no curto prazo, atrair sim bons investidores.

 

Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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