Para afirmar que há uma relação entre a intolerância a vingança e a Justiça Penal contemporânea, se faz necessário uma visão conceitual, ontológica e teleológica de cada uma das ideias, com o intuito de descobrir os reflexos atuais do confronto dialético existente.
É muito comum vincular os regimes autoritários à aplicação de um Direito Penal da vingança, reafirmando que só ocorre este fenômeno diante da inobservância dos Direitos Individuais e Coletivos, manifestada na violação da dignidade da pessoa humana por estes Estados irresponsáveis, coadunando com esse posicionamento a enciclopédia jurídica de Leib Soibelman (citado em Luiz Guilherme Marques2 – Direito penal dos regimes autoritários), que consideram a pena como vingança da sociedade contra o autor do crime, e não como meio de recuperação moral e emenda do condenado.
O Direito Penal da vingança tem seus alicerces fundamentais na própria formação do conceito de vingança, que nasce do decorrer da vida em sociedade e a formação dos diversos modelos estatais preexistentes. Vale ressaltar que a evolução não é taxativamente perfeita, graças as invariáveis dos regimes em épocas distintas.
Primeiro modelo a esclarecer é aquele decorrente da vingança divina no qual punia-se o infrator por desagravar a divindade (temor religioso ou mágico), com o intuito da regeneração pelo arrependimento e purgação da culpa, tanto do individuo quanto da coletividade.3 O sujeito infrator poderia ser punido desde agressões físicas e expulsão do grupo, até o sacrifício da vida. Sintetizando essa fase as palavras de Karla Karênina4, nos tempos primitivos, fortemente marcado pelo misticismo, a única sanção do ilícito era a pena a vingança; tudo resolvia em termos de vingança, prevalecendo a força física, seja do individuo, seja da tribo que ele pertencia. A ofensa, e portanto o direito de vingar-se, estendia a todo o clã, numa espécie de responsabilidade coletiva.
Com o imperativo do mais forte sobre o mais fraco, surge a vingança privada, baseada na justiça com as próprias mãos, seria o primeiro sinal de manifestação do princípio da proporcionalidade, na qual se pagava com o mesmo bem lesado. Tem-se como exemplo a Lei de Talião, Código de Hamurabi (Babilônia), pelo Exôdo (hebreus), e Lei das XII Tábuas (romanos).5
Com o crescimento populacional e o advento dos Estados Modernos, o monopólio da pena é transferido a um poder centralizado, que busca manter a ordem social, inicialmente formulada em uma vingança pública, logo, este decide os conflitos, muitas vezes arbitrariamente, justificado no interesse da coletividade, assim Hermes Lima afirma que é no meio social que o direito surge e desenvolve-se para consecução dos objetivos buscados pela sociedade, como, por exemplo, a manutenção da paz, e do bem-estar comum; de modo a tornar possível a harmonia social6, importante citação de Luiz Guilherme Marques, fase do direito penal em que a pena é considerada como vingança da sociedade, perturbada pelo crime. Daí as penas bárbaras do passado, que atingiam inclusive os descendentes do ofensor7. Nessa perspectiva penas duras e cruéis ainda são vigorantes, na qual a prisão é única medida realizadora das finalidades clássicas. Silva Sanches8 invoca que uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal da prisão, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais.
A justiça penal, logo após um visão de direito penal nuclear(penalista), enfrentou os problemas dos fundamentos do direito de punir e legitimidade das penas, nascendo alem de diversas garantias a liberdade, uma flexibilização proporcional a intensidade da sanção.9
O combate a violência, englobada nas finalidades da justiça penal (caráter preventivo geral, especial e repressivo) através da proteção dos bens jurídicos relevantes, é o anseio primordial e necessário da coletividade, como Luiz Regis Prado10 acrescenta para sancionar as condutas lesivas ou perigosas a bem jurídicos fundamentais, a lei penal se utiliza de peculiares formas de reação penas e medidas de segurança. O Direito Penal é visto como uma ordem de paz publica e de tutela das relações sociais, cuja missão é proteger a convivência humana, assegurando, por meio de coação estatal, a inquebrantabilidade da ordem jurídica.
Apesar de ser a principal motivação da formação societária, o combate a violência não vem surtindo muito efeito na modernidade, percebe-se sua evolução sistemática, impulsionada pela globalização, ocasionando uma mudança de paradigmas na justiça penal, ou seja, a progressividade, o descontrole e a massificação dos problemas impõem uma organização rígida e pautada em uma sociedade de risco, são as palavras de Luis Gracia Martin11 ao dizer que o direito penal moderno é próprio e característico da sociedade de risco. O controle, a prevenção e a gestão de riscos gerais são tarefas que o Estado deve assumir, e assume efetivamente de modo relevante. Nesse sentido Gecivaldo Vasconcelos, ao citar Roxin, ao explanar os componentes da justiça penal: o correspondente ao Estado de Direito e protetor da liberdade individual, e o correspondente ao Estado Social e preservador do interesse social mesmo à custa da liberdade do individuo.12 Mesmo com a evidência da atuação Estatal na consecução desse fim, a justiça penal em vez do enfrentamento, vem se colocando como criador de violência, focando em diretrizes meramente particulares e políticas. Exemplo interessante é a ineficiência da prisão nos dias atuais, como cita Luiz Flávio Gomes e Molina ... a pena de prisão no Brasil, na atualidade, está muito longe de cumpri sua missão (ou finalidade) ressocializadora. Aliás, não tem cumprido bem nem sequer a função inocuizadora (isolamento), visto que, com freqüência, há multiplicidade de fugas no nosso sistema. A pena de prisão no nosso país hoje é cumprido de maneira totalmente inconstitucional(é desumana, cruel, injusta, torturante e degradante).
Outro sentido da permissibilidade da vingança pelo Estado é o tratamento diferenciado por este a infratores de determinados delitos e seus autores, conhecida como a teoria do Direito Penal do inimigo, desenvolvida por Gunther Jakobs, o qual conceitua inimigo como aquele que afronta a estrutura do Estado desestabilizando sua ordem, por conseqüência demonstra esse individuo não ser cidadão, justificando a inaplicabilidade de certas garantias inerentes as pessoas.13Importante são as palavras de Jakobs14 ... a vigorosa sentença, segundo a qual, nos dias de hoje, todos devem ser tratados como pessoas pelo Direito, portanto, como é de se supor, necessita de uma adição: sempre que aqueles todos cumpram com seus deveres, ou, em caso contrário, sempre que estejam controlados, é dizer, que não possam resultar perigosos... parece claro que há de se distinguir entre um direito postulado com independência de que este postulado resulte mais ou menos convincente um direito modelo, e a estrutura normativa real de uma sociedade. Aquele pode orientar no futuro, no espírito, entretanto, somente este está a orientar no respectivo aqui e agora.
De forma expositiva, foi levantado que a justiça penal contemporânea, na teoria, visa à defesa da ordem pública, mas, na prática, vem buscando satisfazer setores específicos, combatendo uma violência exclusiva, e produzindo uma nova forma de violência institucionalizada (pública), que exclui do meio social os novos inimigos, é a idéia retirada de Cláudio Alberto e Themis Maria15, ao afirmarem que desta forma, podemos perceber que convivemos em um mesmo sistema penal com dois Direitos Penais, cada um deles direcionado a um tipo específico de pessoa, ou seja, um dirigido aquele que pode ser considerado não pessoa, dirigido ao inimigo, e o outro direcionado ao cidadão, que para ser considerado como tal deve se mostrar, cada vez mais, amigo do Estado, ou seja, o pressuposto da cidadania amiga é o conformismo social.
Claramente a justiça penal perdeu sua essência, transformou-se em verdadeiro gerador de novos tipos de violência, são riscos produzidos pelo próprio poder que deveria combatê-los, é a adoção de um Direito Penal do Autor, que rotula indivíduos e afasta-se do Direito Penal do Fato.16
BIBLIOGRAFIA
1...
2 MARQUES, Luiz Guilherme. Direito Penal sem compaixão é o Direito Penal da vingança. In: http://jusvi.com/artigos/28480. Acesso em: 11 de julho de 2013.
3 MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. vol 1. 7ªed. ver., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 57.
4 ANDRADE, Karla Karenina. Evolução histórica do Direito Penal. In: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4756. Acesso: 12 de julho de 2013.
5 MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Vol 1. 7ªed. ver., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 58
6 LIMA, Hermes. Introdução à Ciência do Direito. 29 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. p. 23.
7 MARQUES, Luiz Guilherme. Direito Penal sem compaixão é o Direito Penal da vingança. In: http://jusvi.com/artigos/28480. Acesso em: 11 de julho de 2013.
8 SILVA SANCHES, Jesus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002. p. 145.
9 ANDRADE, Karla Karenina. Evolução histórica do Direito Penal. In: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4756. Acesso: 12 de julho de 2013.
10 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. V. 1; 8 ed. Niteroi: Impetus, 2008.
11 GRACIA MARTÍN, Luis. Modernizacion Del derecho. In: GABRIEL, Cláudio Alberto; PACHECO, Themis Maria. O Recurso ao Direito Penal do inimigo como instrumento de Comunicação Política. In: www2.mp.ma.gov.br/ampem/ampem1.asp. Acesso em: 12 de julho de 2013.
12 FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. Principio da Proibição da proteção deficiente. In: http://jus.com.br/revista/texto/13542/principio-da-proibicao-da-protecao-deficiente. Acesso em: 12 de julho de 2013.
13 MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Vol 1. 7ªed. ver., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 95.
14 JAKOBS. Gunther. Derecho Penal Del enemigo? Un estúdio acerca de los presupuestos de La juridicidad. In: Derecho penal Del enemigo. El discurso penal de La exclusion. Buenos Aires: Edisofrer, 2006, p.96.
15 GABRIEL, Cláudio Alberto; PACHECO, Themis Maria. O Recurso ao Direito Penal do inimigo como instrumento de Comunicação Política. In: www2.mp.ma.gov.br/ampem/ampem1.asp. Acesso em: 12 de julho de 2013.
16 MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Vol 1. 7ªed. ver., atual, e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 96.