Os magistrados são os incumbidos da árdua tarefa de dizer o direito daqueles que batem à porta do judiciário, em busca da solução dos seus conflitos. Trata-se de difícil missão, pois nos processos há duas partes, dois polos, duas pessoas, repletas de subjetividades e complexidades.
São diversas as áreas de atuação, diga-se aqui, competências, dos magistrados, que cotidianamente atuam em ações penais, empresariais, fiscais, contratuais, trabalhistas, dentre outras. Em cada uma dessas há desafios específicos, que demandam conhecimentos e capacitações específicas, como é o caso dos juízes das varas de família, que diante da desconstrução e reconstrução que o ramo em que atuam enfrentou nas últimas décadas, necessitam, igualmente, desconstruir-se e se reconstruir.
As famílias atuais são, em muito, diferentes das famílias de algumas décadas atrás, haja vista que vivemos na era da modernidade líquida (BAUMAN, 2001), em que os valores sociais são líquidos, no sentido de fluírem com rapidez. Mudando os valores sociais, mudam-se, também, as instituições que os refletem, como é o caso da família; e, mudando as instituições sociais, muda-se, outrossim, o regramento jurídico acerca delas, e, no presente caso: o direito das famílias.
Já se percebe evoluções a partir da terminologia acima empregada, direito das famílias, ao invés de direito de família, e isso por uma questão simples: atualmente se reconhece como entidade familiar não apenas as decorrentes do casamento, como outrora, mas todas aquelas formadas por sujeitos que, lastreados no afeto, buscam viver a vida juntos (DIAS, 2005). Em suma, o que faz a família ser família não é o vínculo sanguíneo ou matrimonial, mas sim afetivo:
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana e da solidariedade (TARTUCE, 2019, p. 1065).
Em suma, com fundamento na dignidade da pessoa humana o afeto passou a ser o elemento constituidor da entidade familiar, bem como do vínculo daqueles que a formam, tanto é que se reconhece, na atualidade, a parentalidade socioafetiva, que nada mais é do que o vínculo de parentesco entre pessoas que embora não sejam parentes sanguíneos, consideram-se aparentadas por força do afeto (OLIVEIRA, 2020).
Depreende-se que houve a humanização do direito das famílias, que passou a tutelá-las com fim naqueles que as formam, visando o alcance da máxima plenitude individual, para que se realizem e realizem os que junto vivem (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 98). Em resumo, o direito das famílias evoluiu a ponto de se sensibilizar com as mais íntimas questões existenciais da pessoa humana. Neste linear, a doutrina familiarista (NETTO, 2018) e a jurisprudência do STF (Recurso Extraordinário 898060/SC) reconhecem a busca pela felicidade como um direito.
Como já dito, os magistrados têm a missão de dizer o direito, por meio da jurisdição (juris direito; dicere dizer). Atualmente, entende-se que a função judicante vai além, sendo juris-satisfação (NEVES, 2019), ou seja, não basta reconhecer o direito, devendo, também, satisfazê-lo, concretizá-lo, e, se o novo direito das famílias é um conjunto de normas humanizadas, para que estas sejam materializadas é necessário que o magistrado atue de forma também humanizada.
Mas no que consistiria essa humanização do julgador? Trata-se de difícil questionamento, tendo em vista que desde os bancos acadêmicos é cultivada a ideia equivocada do que vem a ser o juiz isento. De fato, espera-se imparcialidade do magistrado; porém, imparcialidade não é indiferença, nem insensibilidade. A despeito, verifica-se que não é possível ao julgador conhecer de demanda baseada no afeto e no direito à felicidade se não considerar que por de trás das partes, do polo ativo e passivo da ação, há pessoas confiando a ele dramas de sua existência.
Concluindo essa reflexão, trago sábias palavras do ministro aposentado do STJ, Cesar Asfor Rocha, em sua obra cartas a um jovem juiz, que sintetiza bem o ideal de magistratura humanizada, necessário nas demandas de família: a única forma de realizar objetivos humanos no domínio da jurisdição é vestir-se o juiz da pele da humanidade, jamais imaginando que, sem essa condição, será capaz de entender tudo que o processo esconde (2009, p. 69).
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Trad. Plínio Dentzien. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DIAS, Maria Berenice. A ética do afeto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 668, 4 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6668. Acesso em: 17 jul. 2022.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011.
NETTO, Ernesto J. Silveira. A busca da felicidade no âmbito do Direito de Família e Sucessões. Portal do IBDFAM: artigos, Belo Horizonte, 23 jul. 2018. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1286/A+busca+da+felicidade+no+%C3%A2mbito+do+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+Sucess%C3%B5es. Acesso em: 17 jul. 2022.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, volume único. 11. ed. Salvador: Juspodvm, 2019.
OLIVEIRA, Lhigierry Carla Moreira. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva - efeitos. Portal do IBDFAM: artigos, Belo Horizonte, 17 jul. 2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1506/Multiparentalidade+e+parentalidade+socioafetiva+%E2%80%93+efeitos. Acesso em: 17 jul. 2022.
ROCHA, Cesar Asfor. Cartas a um jovem juiz: cada processo hospeda uma vida. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.