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Direito Penal simbólico

Agenda 27/05/2007 às 00:00

"No momento de marchar, muitos não sabem
Que seu inimigo marcha à sua frente.
A voz que comanda
É a voz de seu inimigo.
Aquele que fala do inimigo
É ele mesmo o inimigo."

Bertolt Brecht

1 – Introdução

            Em instigante lição sobre Filosofia do Direito, tivemos a oportunidade de conhecer o ensinamento de Gofredo Telles Jr. no sentido de que "o Direito é a arte da convivência humana" (1). Partindo desta constatação, percebe-se o quão difícil é a qualquer pessoa conceber um conhecimento profundo do Direito.

            A cognição do Direito não se resume assim às leis, às doutrinas, à jurisprudência e nem mesmo às ciências como a Sociologia, a Medicina, a Psicologia, etc. O conhecimento absolutamente relevante ao jurista estaria ligado ao seu arcabouço de experiências relacionadas ao convívio humano, aos sentimentos, às ações e reações das pessoas frente às mais diversas realidades.

            Entretanto, um ingente obstáculo surge para a obtenção desse tipo de experiência.

            Este obstáculo consiste no fato de que a grande maioria das pessoas não têm a oportunidade de viverem experiências que lhes permitam um real conhecimento dos extremos da vida. Uma mediania ou mediocridade é normalmente a característica da vida das pessoas. Poucos são aqueles que têm a oportunidade de experimentar um ato de heroísmo ou de extrema covardia; a opulência e a miséria absoluta; um grande amor e o ódio profundo...

            Mesmo aqueles que possam eventualmente passar por um dos extremos citados, normalmente desconhecem o oposto por experiência própria. O estudo da convivência humana, passando pela compreensão do "outro", torna-se bastante dificultoso e não encontra solução nos manuais nem nas leis.

            Mas como poderia o pretenso jurista buscar uma formação que lhe possibilite suplantar um limite inerente à sua condição humana?

            Gofredo Telles Jr.(2) aponta o caminho da literatura, pois haveria pessoas de sensibilidade extraordinária capazes de retratarem os mais diversos sentimentos com uma fidelidade incrível, possibilitando a todos uma vivência quase autêntica de situações às quais jamais poderiam ter acesso no decorrer de uma vida pobre em experiências reais.

            Fernando Pessoa em "Autopsicografia" nos apresenta essa característica dos literatos ao dizer:

"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente"(3).


2 - Um retrato atual

            Charles Dickens, tendo como pano de fundo a história da Revolução Francesa, introduz seu romance de maneira antológica, revelando a ambigüidade das conseqüências de um movimento defensor de valores tão apreciados, mas que também produziu atos de barbárie e monstruosidade.

            Vale a transcrição:

            "Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós; íamos todos direto para o Paraíso; íamos todos direto no sentido contrário — em suma, o período era em tal medida semelhante ao presente que algumas de suas mais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação"(4).

            Mais recentemente Enzensberger narra a odisséia do personagem Robert que em viagens pelo tempo se depara com várias passagens históricas e conclui "que as pessoas, não importa a época em que vivem, são capazes de cometer as piores atrocidades e de realizar as maiores maravilhas"(5).

            Tudo isso pode ser um excelente material para compreender a ambigüidade da nossa atual realidade no campo penal, onde grassam iniciativas tendentes a um estudo sensato de alternativas e da pesquisa dos legítimos fins e aplicações do Direito Penal, ao lado de um abominável "Direito Penal Simbólico", com seus ardorosos defensores que pretendem fazer tábula rasa dos direitos e garantias individuais, em nome da pretensa solução de todos os problemas pela repressão penal como "prima ratio". No dizer de Silva Franco, "o pampenalismo, isto é, a utilização do Direito Penal como uma espécie de ´´´´panacéia para todos os males´´´´", que, "quando não traduz uma bastardização deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia"(6).

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3 - Um diagnóstico

            Claudio Ribeiro Lopes(7) aponta um chamado "efeito pendular das ações e reações sociais" que teria se manifestado num primeiro momento "quando da elaboração da atual Carta Política, após mais de duas décadas vivenciadas pela sociedade brasileira sob a égide do autoritarismo. Foi assim que se inseriram princípios e dispositivos garantísticos, protetores dos direitos e garantias individuais, na Constituição, alguns dos quais receberam, por força do ´´´´princípio do pêndulo´´´´, exacerbada importância".

            Passado o tempo, segundo o autor, vivenciamos hoje um novo movimento pendular, agora oposto. "Até mesmo o Pretório Excelso tem entendido, lamentavelmente, que algumas daquelas normas e princípios não seriam tão absolutos assim. (...). O grave problema é que, (...), em breve estaremos cogitando e procurando legitimar barbáries em sede de Direitos Humanos, tudo em nome da ´´´´tolerância zero´´´´, da ´´´´proteção do Estado´´´´, dentre outros motivos pretensamente legitimáveis."

            Nem mesmo o caráter claramente apelativo dessa última tendência é capaz de evitar que operadores do Direito e estudiosos sejam seduzidos, certamente muito mais por efeitos retóricos do que pelo valor científico dos argumentos.

            Essa aplicação artificiosa e negativa da retórica é apontada por Perelman(8) como a responsável pelo seu alijamento das preocupações da Filosofia, pois que "sua utilização estigmatizaria os ramos do saber que dela se servem, como áreas imperfeitamente constituídas, ainda em busca de seu método e não merecedoras do nome de Ciência. Não é de espantar que esse estado de espírito tenha desviado os lógicos e os filósofos do estudo da argumentação, considerada indigna de suas preocupações, deixando-o por conta dos especialistas da publicidade e da propaganda, que caracterizavam sua falta de escrúpulos e sua oposição constante a qualquer busca sincera da verdade".

            Não obstante, a obra citada tem em si a iniciativa da recuperação do prestígio da retórica como instrumento imprescindível à manifestação coerente do pensamento em qualquer ramo do conhecimento. O autor lembra a provisoriedade e falseabilidade das teorias científicas, concluindo que a sua fundamentação filosófica não se deve basear "em verdades definitivas e indiscutíveis", partindo "do fato de que homens e grupos de homens aderem a toda espécie de opiniões com uma intensidade variável, que só é conhecida quando posta à prova"(9).

            Portanto, a argumentação deve ser valorizada porque instrumento de transmissão de idéias e convencimento. Mas sua coerência e sinceridade devem ser sempre postas à prova. Nenhuma teoria é imune a críticas ou defesas argumentativas, mas sua validade freqüentemente poderá ser aferida pela espécie de estratégia de convencimento utilizada para sua aceitação.

            E quais têm sido as vias dos defensores do agigantamento do Direito Penal, do aumento de penas e de instrumentos repressivos como solução de todos os males?

            Suas condutas pautam-se em regra pelo sensacionalismo, pelo palavreado belicoso, sendo notáveis os discursos inflamados, supostamente indignados, chegando à beira da histeria, divulgados diuturnamente pela mídia.

            Já bem lembrava Carlos Maximiliano que "apaixonar-se não é argumentar". "Exaltar, enaltecer com entusiasmo, ou maldizer, destratar com veemência não é argumentar; será uma ilusão de apaixonado, ou indício de inópia de verdadeiras razões".(10)

            A resposta fácil, embora errônea; o discurso que contorna a polêmica, embora enganador; a imagem popular, embora falsa, certamente são características marcantes e atrativas de posicionamentos que poderão ainda produzir conseqüências altamente funestas à valorização do ser humano.

            Em arremate e confirmando as lições que a literatura nos pode propiciar, podemos lembrar novamente Dickens(11) ao destacar : "Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte; a última, muito mais fácil de conceder do que as outras,..."


4 – Conclusão

            O uso do Direito Penal, este instrumento extremo, como uma via fácil para a demonstração da suposta característica atuante de certos políticos, vem se constituindo em um dos grandes males do nosso País. As soluções reais sequer entram na pauta de discussão, enquanto algum oportunista acena com mais uma lei penal ou com o maior rigor emprestado a uma lei penal ou processual penal já vigente por meio de alterações pontuais.

            É urgente que os políticos (legisladores) entendam que a grandeza do estadista está no reconhecimento de que ele é o "responsável pela liberdade"(12) e não o seu "coveiro"(13). Mas, para isso seria necessário um quase milagre, pois o que temos é um modelo de político "fazedor de leis" que Jaspers classificaria como de "baixo nível", daquela espécie que simplesmente "segue a linha de menor resistência e faz o que promete maior vantagem", ao reverso do "grande político", que, "em tensão, encontra a forma de agir que lhe permite auto-afirmar-se, elevando-se a seu povo e a si mesmo à dignidade do humano. Ele não pode abandonar-se à ´´´´Realpolitik´´´´, ao oportunismo. Não admite comprometer moralmente a comunidade nacional pela prática de atos repreensíveis, ainda que, de momento, pareçam convenientes. Por meio de seu próprio agir, educa seus concidadãos. Não se agarra ao poder a qualquer preço, quando sua consciência política e moral lhe proíbe subscrever o que é contrário à dignidade e aos interesses da nação"(14).

            Navegando em nosso mar de mediocridade e demagogia, não é de estranhar que, finalmente, alguém proponha um projeto de lei para solucionar todos os problemas brasileiros. Quem sabe esse "nobre" legislador utilize os versos de Chico Buarque na canção "João e Maria":

"E pela minha lei
a gente era obrigado a ser feliz".

            E assim então a violência, a desigualdade, a pobreza, o analfabetismo, o abandono da saúde e da educação públicas, entre outros males, certamente estariam todos resolvidos. Afinal, "a gente" seria obrigado por lei a ser feliz!

            O único risco seria que tudo acabasse melancolicamente como acontece nos versos finais da poesia de Chico Buarque:

"Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá desse quintal
Era uma noite que não tem mais fim".

            Antes que isso tudo aconteça seria bom que os legisladores e os operadores do Direito (re)descobrissem que tratam com uma ciência humana por excelência e que precisam de muito mais que o conhecimento e a produção de leis frias e abstratas para tratar com os problemas que devem enfrentar: os problemas que compõem a complexidade do ser humano.


Notas

            (1) Aulas da disciplina de Filosofia do Direito do Curso de Mestrado em Direito Ambiental e Social da Unisal, sob a orientação do professor dr. Luis Alberto Peluso.

            (2) Ibid.

            (3) PESSOA, Fernando. Melhores Poemas, seleção de Tereza Rita Lopes, São Paulo: Global, 1996, p. 43.

            (4) Um Conto de Duas Cidades, trad. Sandra Luzia Couto, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 19.

            (5) ENZENSBERGER, Hans Magnus. Por Onde Você Andou, Robert?, trad. João Azenha Jr., São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 217.

            (6) FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, São Paulo: RT, 1994, pp. 36-37.

            (7) LOPES, Cláudio Ribeiro. "O Direito Penal simbólico pragmático e o ´´´´terrorismo´´´´ estatal", Boletim IBCCrim, 87/7, fev. 2000.

            (8) PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação - A Nova Retórica, trad. Maria Ermantina Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 577.

            (9) Ibid.

            (10) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 277.

            (11) DICKENS, Charles, Um Conto de Duas Cidades, p. 288.

            (12) JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico, trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota, São Paulo: Cultrix, 1971, p. 68.

            (13) Ibid., p. 71.

            (14) Ibid., p. 69.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal simbólico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1425, 27 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9926. Acesso em: 17 nov. 2024.

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