A relativização do conceito de Soberania e mesmo do poder supremo do Estado tornou-se cada vez mais evidente, principalmente por conta do fenômeno chamado de integração em comunidades supraestatais – ou supranacionais – que afeta, decisivamente, muitos países, principalmente os europeus ocidentais. Como escreve Dobrowolski (2000, p. 305), também deve ser objeto de consideração, a real perda do poder soberano do Estado, com a ascensão de novas fontes de produção jurídica. No nível externo, o fenômeno das integrações regionais exclui da capacidade decisória da organização estatal diversos tópicos, que passam a serem regidos por meio de acordos internacionais. É a segunda hipótese trazida para a discussão.
A interdependência entre os diferentes Estados faz com que todos eles devam ter em conta a reação da comunidade transnacional no momento de adotar decisões as mais diversas. Mais precisamente, o desenvolvimento de organizações transnacionais – ou comunitárias, como gostam alguns autores - levou muitos Estados a renunciarem – implícita ou explicitamente – à sua independência de ação, em muitas áreas, em favor de outros países – no caso de alianças militares com países mais fortes – ou em favor de organizações de Estados, cujo exemplo mais paradigmático é o da União Européia.
Como resultado desse processo de transnacionalização do Estado Constitucional Moderno, poderes que antes eram atribuídos ao Rei, à Nação, ao Povo ou ao Estado, estão agora, inclusive juridicamente, transferidos para outras esferas. Assim, a Soberania atual não se caracteriza como uma qualidade inalterável, que pode definir-se como um conteúdo permanente e indissolúvel. Muito pelo contrário. Muitos dos poderes do Estado Constitucional Moderno, como o de legislar, tributar ou julgar, hoje, estão transferidos a outras instâncias.
Também se deve ter em conta a relativização do conceito clássico de Soberania diante do processo de globalização econômica, pois já não são os governos do Estado Constitucional Moderno que manejam sozinhos os rumos da economia. Os "mercados" podem, atualmente, inviabilizar muitos Estados, principalmente os ditos emergentes ou em desenvolvimento.
Como é óbvio isso pode supor, num futuro não muito longínquo, a alteração da concepção básica do próprio Estado Constitucional Moderno, levando à sua superação, o que será considerado de maneira mais veemente mais adiante (CRUZ, 2004, p.48).
Quando se fala em "integração" transnacional está-se falando de algo muito além da mera cooperação. Não só o Estado Constitucional Moderno contrai obrigações vinculantes (caso dos tratados internacionais clássicos) ou, mais do que isso se submete ao controle de organismos transnacionais quanto ao seu cumprimento (como é o caso das Convenções Européia e Americana de Direitos Humanos), transferindo poderes a esses organismos, que se convertem em titulares de competências que antes lhe pertenciam: o poder deste, portanto, se "esvazia" paulatinamente.
O Estado de base nacional, que surgiu na Idade Moderna, perdura até os dias de hoje. Contudo, a partir dele, com base nele, mas em superação a ele, ao longo da Idade Contemporânea se desenvolveu uma progressiva relativização da Soberania, que está culminando presentemente na constituição da Comunidade ou União supranacional, na Europa, cuja força cultural ainda é a locomotiva da civilização ocidental. Assim como os feudos se globalizaram em estados nacionais, agora na evolução européia o processo de união continua pela globalização dos estados nacionais em comunidade supranacional (BARROS, 2005). Esse processo se desenvolve tendo origem e base na formação de um mercado comum, antes suprafeudal e agora supranacional, mas, partindo desse fundamento econômico, tem por seqüência e conseqüência a constituição de nova sociedade política por coligação e relativização, antes dos domínios feudais e agora das soberanias nacionais.
O exemplo da Comunidade Econômica Européia e sua progressiva construção podem ser considerados um paradigma neste processo. [04]
A amplitude da Comunidade Econômica Européia foi sendo efetivada mediante diversos tratados de adesão, e seu desenvolvimento institucional, no tocante às suas competências, prosseguiu por meio da aprovação da Ata Única Européia, em 1987, e o Tratado da União Européia, assinado em Maastricht, em 1992.
O processo de transformação da Comunidade Econômica Européia em União Européia foi baseado, essencialmente, na cessão de competências – ou Soberania – pertencentes aos Estados-membros para a Comunidade e para a União Européia. E isso com uma importante particularidade: não se trata de competências enumeradas taxativamente, mas de competências que se definem de forma indireta.
Por outro lado, esse traslado de Soberania supôs que os órgãos da União Européia irão exercê-la de modo a espargir seus efeitos sobre todos os Estados-membros e, dentro destes, sobre os cidadãos, impondo-se sobre as normas internas desses Estados.
Esse novo Direito, chamado de Comunitário, e as instituições que o criaram e passaram a aplicá-lo não representaram um conjunto desorganizado ou incoerente de normas e poderes. Passaram a ser expressão, pelo contrário, de uma estrutura coordenada, com ordenamento jurídico próprio para o cumprimento de determinados fins. António Fernandes (1996, p. 380-381) aborda essa questão quando trata do Direito Internacional Europeu e do Direito Internacional, entendendo que o primeiro está matizado pelo segundo, mas as organizações européias também praticam atos jurídicos que escapam às regras do Direito Internacional e estão mais próximos das normas jurídicas do direito estadual. E são esses atos, previstos nos tratados originários (constitutivos), que consubstanciam a autonomia do ordenamento jurídico desta organização.
O crescimento dos poderes e funções da União Européia não deixou de suscitar reações, como seria esperado, desde a perspectiva da Soberania nacional. As reações acontecem, principalmente, com relação a dois aspectos: como deve ser feita a transferência de Soberania dos Estados-membros para a União Européia e quais seriam os limites dessa transferência.
Mas aconteceram também reações a partir de posições contrárias à globalização da economia, fatalmente vinculadas à formação de comunidades de Estados com fins econômicos. José Eduardo Faria (1996, p. 143) assinala que com o gradativo fenecimento do Estado Constitucional Moderno, a Soberania vai sendo erodida na mesma velocidade com que a política tradicional se descentraliza, desterritorializa e transnacionaliza, conduzindo, assim, a uma outra importante questão: como a globalização vai levando a "racionalidade do mercado" a se expandir sobre âmbitos não especificamente econômicos, as fronteiras entre o público e o privado tendem a se esfumaçar e os critérios de eficiência e produtividade a prevalecer às custas dos critérios "sociais" politicamente negociados na Democracia Representativa.
De qualquer maneira, pode-se dizer que a Soberania dos Estados-membros, em organizações como a União Européia, continua sendo mantida. Mesmo que essa manutenção seja meramente formal. A União Européia está definida como uma organização com vontade de permanência indefinida. Os poderes cedidos à União Européia muito provavelmente não voltarão mais aos Estados cedentes. Além disso, esses poderes – que na prática são irrecuperáveis – aumentam continuamente, subtraindo dos Estados-membros mais âmbitos da Soberania.
As reformas constitucionais são, portanto, a melhor expressão da força integradora que obriga os Estados a mudarem sua própria Constituição para adaptá-la a processos de integração.
Recentemente, o movimento para aprovação de uma Constituição Européia sofreu um sério revés. França e Holanda rejeitaram, em plebiscitos ou referendos, a Carta Constitucional européia que estava sendo proposta. O impacto da negativa por parte desses dois países foi tão grande porque são membros fundadores e grandes contribuintes para o orçamento da União Européia. Mas esse fato, ao contrário de indicar um retrocesso no processo de transnacionalização da Europa, mostra que a nova ordem que seria criada a partir da Constituição Européia não poderá apenas considerar fatores econômicos.
A dimensão, relativizada, da Soberania e da Constituição diante do processo de integração da Europa não suportaria uma "nova modernidade liberal e capitalista".
4. Soberania e Globalização
A mundialização atua restritivamente sobre as "senhas" da Soberania. Um enfoque geral pode não ser suficiente, na medida em que possa marginalizar uma parte muito importante dos dados. Efetivamente, ainda que seja característico do atual processo de superação do Estado Constitucional Moderno, a cessão (ou desaparecimento) de algumas de suas funções tradicionais, seja a favor de órgãos supranacionais, seja em favor dos poderes privados, existe uma área na qual o processo parece haver se invertido. Trata-se dos controles de fronteiras e, em geral, dos processos migratórios.
Em todo caso, não parece existir teoria capaz de integrar adequadamente o processo de liquefação do Estado Constitucional Moderno como resultado da mundialização e o simultâneo reforço dos controles de imigração. Sem dúvidas, até agora as teorias sobre a mundialização ignoraram esses fatos e ativeram-se, principalmente, à crise da Soberania Moderna (DEL CABO, 2000, p.20). Opera-se aqui a discussão da terceira hipótese de pesquisa nesse artigo.
As piores conseqüências nesse sentido, como observa Michel Albert (1993, p. 292) e como tem sido ao longo da história do Estado do Estado Constitucional Moderno, estão se manifestando em países pobres ou em desenvolvimento. Como diz Albert, atualmente estão os ricos ainda mais ricos e pobres cada vez mais lisos (sem recursos), iletrados e excluídos.
Dessa maneira, o Estado Constitucional Moderno acaba subordinado a um tipo de constitucionalismo mercantil global, não dirigido a controlar os poderes, mas sim a liberá-los, elevando a uma série de interesses corporativos as normas do ordenamento jurídico internacional. A dependência das sociedades nacionais às empresas e financeiras transnacionais é de tal ordem, que qualquer pronunciamento de agências privadas internacionais de avaliação de crédito e risco acabam provocando instabilidade política, provocando crises monetárias, enfim, criando dificuldades de toda ordem para o Estado Constitucional Moderno (PEREIRA, 2004, p. 631).
Esse fenômeno, por sua vez, se traduz numa degradação do Direito do Estado Constitucional Moderno, que tem que co-existir com um Direito, não oficial, ditado por múltiplos centros criadores de normas jurídicas. Estes centros, por seu poder econômico, acabam transformando seus interesses em normas jurídicas, disputando com o Estado o monopólio da violência e do Direito (DEL CABO, 2000, p. 32).
O grande desafio neste século XXI será encontrar uma nova forma de organização político-jurídica que compatibilize estas tendências de globalização econômica com a necessidade premente de distribuição de riquezas, de justiça social e de uma nova concepção de civilização.
O exame da realidade do mundo, nos dias de hoje, bem como as modificações havidas na trajetória histórica do Estado Constitucional Moderno, levam à verificação de que houve uma mudança estratégica na sua postura, tanto no plano internacional como no interno, caminhando-se, a passos largos, para a superação de seu conceito jurídico, conforme ele foi concebido como nacional, territorial e soberano (POLETTI, 1996, p.142).
Sob o ângulo econômico, também o Estado Constitucional Moderno Soberano não se sustenta. Na verdade, em face da economia mundial, a par do fenômeno das comunicações velozes, a soberania estatal perde sua substância. A planetarização da economia gerou relações de interdependência, na quais os Estados têm sido, no mínimo, obrigados a reunirem-se em grupos, as fronteiras comerciais desaparecem e a moeda nacional será, pouco a pouco, substituída por outro instrumento comum de troca e de compra e venda.
Com o advento da globalização econômica, podemos constatar a crise ou o declínio do Estado Constitucional Moderno, decorrente da transnacionalização da economia, respaldada pela teoria econômica do neoliberalismo, em face da gradual erosão da Soberania, da obsolescência das fronteiras nacionais, do retraimento da esfera pública em favor do mercado e da perda dos direitos políticos dos cidadãos como resultado do esvaziamento da sua participação política (LIMA, 2004, p.154).
Países como o Brasil que, assim como toda América Latina, desde sua independência se debatem para encontrar seu modelo de desenvolvimento completo, não só o econômico, está no "olho do furacão" da economia globalizada e encontram dificuldades em vislumbrar – e propor - outras alternativas, pelo menos a curto e médio prazos.
O Estado Constitucional Moderno não consegue mais dar respostas minimamente consistentes às sociedades atuais. Mesmo nos países ricos, como já registrado, está sendo substituído por conglomerados financeiros e industriais ou dominado por seus tentáculos.
A noção de Estado Constitucional Moderno Soberano se transforma cada vez mais em uma categoria oca e sem conteúdo. É um mero critério formal de caracterização. É provável que se esteja vivendo o "tempo de transição" entre a modernidade e a era que a substituirá e, em conseqüência, de superação da Soberania Moderna (FERRAJOLI, 1999. p.149). Hoje, graças à rapidez das comunicações, todos os fatos que ocorrem no mundo são de interesse de todos os habitantes do planeta, assim como nenhuma parte do planeta pode ser esquecida.
Deve ser objeto de consideração a real perda do poder soberano do Estado, com a ascensão de novas fontes de produção jurídica. Em nível externo, como já foi visto, o fenômeno das integrações regionais exclui da capacidade decisória da organização estatal diversos tópicos, que passam a serem regidos por meio de acordos internacionais (DOBROWOLSKI, 2000. p.305).
Tudo leva a crer que o principal fator dessas crises cíclicas esteja localizado exatamente no próprio Estado Constitucional Moderno. Ou, melhor dizendo, é o próprio Estado Constitucional Moderno.
Pode-se especular, já sem muita preocupação com erro essencial, que o Estado – pelo menos o Estado Constitucional Moderno surgido das revoluções burguesas do Século XVIII – já seja uma construção político-jurídica insuficiente para atender à complexidade da Sociedade atual (OLLER I SALA, 2002. p. 10) Os motivos pelos quais o Estado Constitucional Moderno foi concebido há mais de dois séculos, como o individualismo, capitalismo, economia de mercado e acumulação de riqueza ilimitada, em suas versões globalizadas, podem determinar seu desaparecimento.
Essa tendência colabora para modificar substancialmente a Soberania como um dos paradigmas teóricos fundamentais sobre os quais se há sustentado o poder e a legitimidade do Estado Constitucional Moderno. Na verdade, nos encontramos diante de uma profunda crise do Estado Constitucional Moderno, tal como foi concebido até o presente.
Definitivamente, a Soberania no seu sentido clássico deixou de existir. Trata-se, agora, de uma Soberania limitada, compartilhada ou parcial, coisa que é contraditória com sua própria definição. A noção de Estado Constitucional Moderno Soberano, desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, se constituiu num autêntico progresso em comparação com a noção de feudalismo da Idade Média, mas hoje se converte num verdadeiro freio para questões vitais para a sobrevivência do mundo. Nesse sentido, o Estado Constitucional Moderno tornou-se muito pequeno para os grandes problemas e demasiado grande para os pequenos problemas, em referência que Oller I Sala faz a Daniel Bell (2001, 45).
Ou como escreve Ulrich Beck (2004, p. 45), ao afirmar que a Soberania da informação, por exemplo, do Estado Constitucional Moderno, como parte da Soberania política, faleceu. O Estado Constitucional Moderno já não pode continuar vivendo esse ambiente de conflito internacional. Sua atuação fora de suas fronteiras é desastrosa.
O Estado Constitucional Moderno verdadeiramente Soberano, na acepção do termo, não poderia jamais abandonar sua Soberania e nem consentir que fosse restringida (MARITAIN, 1983. p. 216). Enquanto o corpo político, que não é soberano, mas tem direito à plena autonomia, pode livremente abandonar esse direito – à autonomia – se reconhece que já não é uma Sociedade perfeita e decide entrar numa Sociedade mais vasta, verdadeiramente dotada dos pressupostos de uma Sociedade justa, transnacional, pautada por solidariedade e cooperação.
O futuro do Estado Constitucional Moderno é certamente voltado ao seu esgotamento Deve-se ter em conta que os atuais estados constitucionais modernos constituíram, em seu momento, uma resposta institucional necessária diante de novas formas de organização social surgidas depois da Idade Média. Está-se numa situação semelhante, atualmente. Tudo dependerá da capacidade para teorizar outro tipo de Estado, fora dos paradigmas teóricos do Estado Constitucional Moderno.
Resta saber quem serão os substitutos de Descartes, Bodin, Hobbes, Rousseau, Adam Smith, Mill, Locke, Constant, Kant e Sieyès, para citar apenas alguns dos "construtores teóricos" daquilo que seria uma inevitabilidade histórica, como afirmou Francis Fukuyama [05].