Laura Affonso da Costa Levy[1]
Na valiosa obra Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade[2], nosso eterno Mestre Zeno Veloso já nos alertava e ensinava que as transformações que ocorriam no campo da filiação, decorrentes das modificações sociais e culturais das relações humanas.
Assim, as mudanças sócio-culturais ocorridas nos dois últimos séculos reformularam a concepção de entidade familiar, despatrimonializando as relações e abrindo espaço para concretização do ser humano enquanto ser social e cultural, culminando em uma reformulação no Direito de Filiação.
As legislações, de igual modo, vêm acompanhando esse movimento, a partir da mudança na sociedade brasileira, somado ao empurrão dado pelos doutrinadores e jurisprudências nacionais.
Saímos das normas do Direito Canônico, quando a Constituição de 1824 não dispunha sobre o casamento civil, para chegarmos à Constituição Republicana Brasileira de 1891 com esse reconhecimento, consagrando a laicidade do Estado, em que pese a ausência de reconhecimento em relação às uniões estáveis.
Na Constituição de 1937 houve a possibilidade de reconhecimento de efeitos civis do casamento religioso que perdura até a atualidade. Porém, as uniões já existentes, mas fora do casamento, continuavam estranhas ao Direito Brasileiro com exceção de raras leis que conflitavam com Código Civil para garantir a proteção em contextos fáticos específicos. A Constituição de 1967 trouxe um novo elemento, pois ao contrário das demais, não declarou ser a família constituída pelo casamento civil indissolúvel.
A codificação civil de 1916, seguindo essa compreensão e o momento histórico da época, classificava a filiação de acordo com a origem, ou seja, se era ou não advinda do matrimônio, considerando como filho legítimo aquele havido na constância do casamento, e ilegítimo o advindo de relações extramatrimoniais. Os ilegítimos dividiam-se em naturais e espúrios, e estes, por sua vez, classificavam-se em adulterinos e incestuosos.
Legítimos eram os que nasciam da relação de casamento civil; ilegítimos eram os nascidos de relação extramatrimonial. Os ilegítimos dividiam-se em naturais ou espúrios. Filhos ilegítimos naturais eram nascidos de pais que não estavam impedidos de se casar. Os ilegítimos espúrios eram nascidos de pais que não podiam se casar, em virtude de impedimento. Os espúrios classificavam-se em adulterinos e incestuosos. Dava-se o primeiro caso, quando o impedimento decorria de casamento dos pais. (...) Se o impedimento para o matrimônio procedia de parentesco entre os pais, o filho nascido dessa relação era chamado incestuoso.[3]
Desse modo, a legislação brasileira seguia baseando-se na consanguinidade, fazendo a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, e nos casos de adoção não envolvendo a sucessão hereditária (art. 337). Ilustra-se que um eventual filho ilegítimo que fosse reconhecido por um dos cônjuges não poderia residir no mesmo lar conjugal sem o consentimento expresso do outro (art. 339).
A Constituição Federal de 1988 foi um marco divisor de águas, trazendo a igualdade entre a filiação, igualdade de gêneros e o reconhecimento da união estável como unidade familiar. O artigo 226 apresentou uma revolução no conceito de família, abrindo as portas para outras formas de constituição familiar como união estável e a família monoparental garantindo a proteção do estado.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) -Lei n° 8069/90 - aborda o reconhecimento da filiação, nos artigos 26 e 27, elencando-o como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, independente de origem, trazendo grande inovação ao instituto da filiação.
Somado a isso, o Código Civil de 2002 aprofundou as mudanças trazidas pela Constituição de 1988, dando concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana com o pluralismo familiar, garantindo liberdade de construção de vida familiar. Neste entendimento, Carlos Roberto Gonçalves:
(...) as alterações introduzidas visam preservar a coesão familiar e os valores culturais, conferindo-se à família moderna um tratamento mais consentâneo à realidade social atendendo-se às necessidades da prole e de afeição entre os cônjuges e os companheiros e aos elevados interesses da sociedade.[4]
De lá pra cá, algumas construções legislativas foram incorporando ao Direito Positivo esta concepção mais ampliada. A Lei 8560/92 que versa sobre a investigação de paternidade, possibilita o Ministério Público agir em nome da criança (sujeito de direitos, pessoa em condição de desenvolvimento). Assim, a busca pela ascendência genética ou ancestralidade começa a mostrar seus contornos.
De outro lado, tem-se a Lei n.º 11.924/09, que ficou usualmente conhecida como Lei Clodovil. Ao alterar a Lei de Registros Públicos, a Lei n.º 11.924/09, dispõe:
Art. 57 - § 8o O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.
Esta norma prevê a ampliação do espectro da filiação notadamente nos contextos da conjugalidade tradicional e passa a ampliar as considerações sobre as filiações socioafetivas, multiparentalidade e famílias mosaicos situações hoje recorrentes de forma massiva.
Consagra-se a filiação socioafetiva, sendo aquela que não advêm do vinculo biológico, mas sim do vínculo afetivo. Possuir o estado de filho significa passar a ser tratado como se filho fosse, justamente perante a sociedade, como construção histórica da identidade. Decorrem do ato de vontade, respeito recíproco e o amor construído ao longo do tempo, com suporte no afeto e não nos laços de sangue.
Funda-se, assim, na clausula geral de tutela da personalidade humana, tornando a filiação elemento fundamental para a formação da identidade e personalidade da criança.
A parentalidade deixa de ser um fato físico e passa a ser um desejo decorrente da opção advinda do afeto e do cuidado. Cabendo, assim, ao direito identificar esse vínculo de parentalidade, consagrando os direitos e responsabilidades advindo do poder familiar.
Vale lembrar que, em que pese a palavra afeto não estar no texto constitucional, é elemento nuclear das entidades familiares, ganhando valor jurídico quando as relações passam a ser baseadas no respeito e trocas recíprocas visando a realização pessoal dos integrantes.
A despeito do avanço inquestionável e das novas configurações sustentadas pelo afeto, surge a multiparentalidade, como consagrador dos vínculos e laços construídos pelo afeto e cuidado, mostrando-se medida adequada ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, eis que preserva os laços biológicos e socioafetivos.
Somado a isso, o avanço da engenharia genética e uso das técnicas de reprodução humana assistida vem ganhado espaço nas discussões jurídicas, por conta das situações emergentes decorrentes das filiações oriundas de tais técnicas e demais aspectos conflitivos, que nascem no campo ético e adentram nas responsabilidades e planejamentos parentais, direitos sucessórios, autonomia, judicialização e direito à saúde reprodutiva.
Por conta de todos esses aspectos, a filiação deixa seu lugar secundário de discriminação e passa a ocupar um lugar de destaque dentro das demandas do Direito das Famílias.
Assim, por conta das inúmeras situações hoje emergentes do Direito de Filiação, pode-se, com absoluta certeza, afirmar que se trata de novo ramo do Direito, merecedor de capacitação específica.
Os advogados que hoje labutam no Direito das Famílias, precisam, necessariamente, aprofundar seus conhecimentos no Direito de Filiação, seja pelo aspecto afetivo, sucessório, empresarial ou tecnológico. As respostas para as novas demandas estão em novos conhecimentos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2017.
VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. Ed. Malheiros. 1997.