Processo nº : 00003768120128140201
Classe : AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Autor : MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARÁ – ICOARACI
Réu : MUNICÍPIO DE BELÉM
Envolvido : Abrigo Ronaldo Araújo
SENTENÇA COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO
I – RELATÓRIO
Tratam os autos de AÇÃO CIVIL PÚBLICA, para cumprimento de obrigação de fazer, com antecipação de tutela, ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ, Promotoria de Justiça de Icoaraci, em face do MUNICÍPIO DE BELÉM, pessoa jurídica de Direito Público Interno, com sede no Palácio Antônio Lemos, Praça Dom Pedro II, s/n, Cidade Velha, com suporte nos arts. 127, Caput, e 129, inc. III, da CF c/c os arts. 1º, inc. IV, 3º e 5º, da Lei nº 7.347/85 e art. 201, inc. V, da Lei nº 8069/90.
Na exordial, afirma o MPE que instaurou INQUÉRITO CIVIL de nº 038/2011, em 07.07.2011, com o objetivo de apurar denúncias de irregularidades no ABRIGO RONALDO ARAÚJO, especificamente quanto às condições estruturais e o tratamento dispensado aos adolescentes ali acolhidos, localizado na Rua Manoel Barata, 1070, neste Distrito.
Disse, ainda, que, conforme informações fornecidas pelo próprio abrigo, sua capacidade de acolhimento é de vinte (20) adolescentes, do sexo masculino e na faixa etária de 12 a 17 anos, com vulnerabilidade social e em situação de risco.
Em inspeção efetivada em 30.08.2011, foram constatadas, em síntese, que houve mudança de perfil dos adolescentes acolhidos (passou a ser de adolescentes usuários de drogas e em conflito com a lei); equipe técnica despreparada para atender tal clientela; problemas no espaço físico, inapropriado para atender adolescentes e para propiciar melhores condições de trabalho para a equipe técnica, já que é insalubre (várias infiltrações foram detectadas); falta de quartos para adolescentes portadores de necessidades especiais; segurança do espaço quase que inexistente (muro baixo e pouca luminosidade); necessidade de um (1) veículo a disposição em tempo integral para atender os acolhidos etc.
O relatório da inspeção consta às fls. 61/98.
Foi detectada, também, a necessidade de parcerias com comunidades terapêuticas e com o Conselho Tutelar.
Constatou-se a imperiosa necessidade de se investir na intersetorialidade da equipe técnica e da Coordenação com as instâncias da rede de serviços (SESPA, SESMA, CRAS e CONSELHO TUTELAR).
Após declinar os dispositivos legais que dão suporte à pretensão deduzida, requereu a concessão de liminar (antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional), para obrigar o Município de Belém a cumprir o estabelecido nas letras “a” a “f” das fls. 10.
Concluindo, pugnou pela cominação de multa diária para o caso de descumprimento da ordem liminar, bem como pela procedência do pedido em todos os seus termos.
O MPE acostou os documentos de fls. 12 a 125.
Às fls. 127 determinei a notificação do réu para manifestar-se, em 72 horas, sobre o pedido de liminar e para dizer sobre o pedido inicial, de conformidade com o disposto nas Leis nºs. 8437 e 8429, ambas de 1992.
A SEMAJ o fez às fls. 130 a 136, sem juntar qualquer documentação.
Após detida análise, às fls. 142 a 170, concedi a antecipação total da tutela pretendida pelo MPE, para determinar ao réu o integral cumprimento do requerimento inicial constante do item 1, letras “a”, “b”, “c”, “d”, “e” e “f”, no prazo de noventa (90) dias, cominando a multa diária, pessoal, ao Sr. Prefeito do Município de Belém, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), para o caso de descumprimento, com a citação para contestar o pedido no prazo de lei.
A intimação do réu ocorreu em 15 de maio de 2012, conforme documento de fls. 173.
Em 06 de junho de 2012, o réu agravou de instrumento, comunicando a este magistrado em 12.06.2012 (fls. 177).
Verifica-se do AI nº 201230133485 (2ª Câm. Civ. Isolada/TJPA) que a nobre relatora indeferiu o efeito suspensivo e através do Acórdão nº 114.340 (DJ de 22.11.2012), foi ele julgado e negado provimento (05.11.2012).
Inconformado, o réu interpôs recurso especial em 14.01.2013, onde a Excelentíssima Presidenta do TJPA, na forma do § 3º do art. 542, do CPC, determinou que permanecesse retido e que fosse apensado ao processo principal. Dessa forma, a decisão antecipatória da tutela, até a presente data, mantém-se inabalável.
Em sede de contestação, discorreu o réu sobre a tempestividade da defesa (i); sobre os fatos (ii); e, no mérito (iii), ressaltou que, com base na vistoria realizada pela Divisão de Obras e Manutenção da FUNPAPA, em janeiro de 2012 (?), fez uma reforma no abrigo, que contemplou a maioria dos questionamentos e cobranças do MPE, evidenciando, assim, que a “ação” (sic) é totalmente incabível, bem como a própria liminar.
O MPE manifestou-se às fls. 235/242 sobre a contestação.
Designei inspeção judicial (fls. 253), que se efetivou no dia 03 de maio de 2013, sem a presença do MPE e da Procuradora do Município de Belém, cujo relatório se encontra às fls. 254/259, com fotografias, prova produzida em juízo que será oportunamente analisada por este magistrado, cabendo ressaltar que já em 24 de maio de 2013 (fls. 273), destaquei que o réu, após um (1) ano, não havia cumprido integralmente a ordem judicial liminar, ainda em vigor.
Realizei instrução e julgamento no dia 22 de novembro de 2013 (fls. 319), com a oitiva da Coordenadora do Abrigo Ronaldo Araújo.
Em alegações finais, pugnou o MPE (fls. 322/328) pela procedência do pedido inicial, considerando as provas produzidas. Já o réu, de igual modo, se limitou a ratificar os termos de sua contestação, quase que a transcrevendo e sem manifestar-se sobre nenhuma prova produzida em juízo, após aquela).
É o relatório. DECIDO.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Não há preliminares e nem questões prejudiciais que inviabilizem o conhecimento do mérito.
A legitimidade do Ministério Público estadual é indiscutível e dispensa outros comentários.
A pretensão ministerial é bastante clara, haja vista que deseja o MPE o reconhecimento/cumprimento de obrigação de fazer por parte do réu que se consubstancia em alguns “problemas” detectados no abrigo Ronaldo Araújo, após visita técnica realizada.
Tais “problemas” vão desde a necessidade de reforma estrutural no espaço físico e sua manutenção e passam pela implantação de jornada integral de vigilantes; disponibilização de veículo com motorista até a adequação da equipe de atendimento especializado.
II.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÍTICA DE ATENDIMENTO
Após mudança de paradigma que superou a fase da famigerada doutrina da “situação irregular”, do filantropismo, do assistencialismo e da gestão monocrática etc., com o advento da Constituição Federal de 1988 e, depois, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, novos rumos foram traçados, a partir do reconhecimento da doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta no trato da matéria.
A Carta Magna não deixou dúvidas:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.
§ 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII;
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;
III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola;
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.
§ 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
§ 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
§ 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art. 204.
§ 8º A lei estabelecerá:
I - o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens;
II - o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas.
Assim fazendo o legislador constitucional trouxe para o ordenamento jurídico pátrio a doutrina da PROTEÇÃO INTEGRAL, como disse, já consagrada em normativa internacional, de acordo com a qual crianças e adolescentes possuem o status de sujeitos de direitos, dignos da proteção especial, em razão da sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, independentemente de sua situação socioeconômica, sendo esta a base doutrinária para o tratamento da matéria na legislação específica.
O § 7º, do art. 227, especificamente, tratou das normas concernentes à política de atendimento das crianças e adolescentes. Impondo como principais diretrizes as mesmas atreladas à política de assistência social, a saber a descentralização político-administrativa e a participação popular.
Vale dizer que a esta compreende a distribuição do poder por todas as entidades federativas, que, atuando de forma harmônica e complementar, responsabilizam-se pela definição e pela execução da apolítica de atendimento. A participação popular, neste caso, consiste no chamamento da sociedade a colaborar no processo de formação das políticas públicas, bem como a controlar as ações governamentais em todos os níveis.
No âmbito infraconstitucional, o mesmo ocorreu com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pelos artigos 3º e 4º.: CRIANÇAS E ADOLESCENTES GOZAM DE TODOS OS DIREITOS FUNDAMENTAIS INERENTES À PESSOA HUMANA, com PRIORIDADE ABSOLUTA.
O Parágrafo único do artigo 4º, sentencia: “A garantia de prioridade compreende: (...); b) PRECEDÊNCIA DO ATENDIMENTO NOS SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA; c) PREFERÊNCIA NA FORMULAÇÃO E NA EXECUÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS PÚBLICAS; d) DESTINAÇÃO PRIVILEGIADA DE RECURSOS PÚBLICOS NAS ÁREAS RELACIONADAS COM A PROTEÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE.”
Desculpas não podem ser mais aceitas! A partir da promulgação do Estatuto, determina o ARTIGO 259: “A UNIÃO, NO PRAZO DE NOVENTA DIAS CONTADOS DA PUBLICAÇÃO DESTE ESTATUTO, ELABORARÁ PROJETO DE LEI DISPONDO SOBRE A CRIAÇÃO OU ADAPTAÇÃO DE SEUS ÓRGÃOS ÀS DIRETRIZES DA POLÍTICA DE ATENDIMENTO FIXADAS NO ART. 88 E AO QUE ESTABELECE O TÍTULO V DO LIVRO II. PARÁGRAFO ÚNICO. COMPETE AOS ESTADOS E MUNICÍPIOS PROMOVEREM A ADAPTAÇÃO DE SEUS ÓRGÃOS E PROGRAMAS ÀS DIRETRIZES E PRINCÍPIOS ESTABELECIDOS NESTA LEI.”
Adverte com inteira razão Patrícia Tavares, que “a partir de então, não houve mais espaço para subsistência do modelo de atendimento centralizado, vertical. assistencialista e correicional-repressivo construído sob a égide do Código de Menores, sendo a promulgação da Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – o passo subsequente na instituição de uma nova ordem jurídico-social e, consequentemente, de uma nova política de atendimento.”[1]
Acrescente a autora citada, que, para Antônio da Costa, em razão dessa mudança de paradigma, houve uma verdadeira “revolução copernicana” que culminou com o nascimento do que hoje se denomina SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS (SGD), compreendido como o conjunto de elementos – órgãos, entidades, programas e serviços – que, sinergicamente, é capaz de tornar efetiva a Doutrina da Proteção Integral, garantindo a todas as crianças e adolescentes os direitos previstos em lei, ressaltando que a ele estão integrados vários subsistemas, destinados à tutela de direitos específicos (ex.: SUS, SUAS, SINASE etc).[2]
Entende-se, pois, como política de atendimento, o “conjunto de instituições, princípios, regras, objetivos e metas que dirigem a elaboração de planos destinados à tutela dos direitos da população infantojuvenil, permitindo, dessa forma, a materialização do que é determinado, idealmente, pela ordem jurídica. É, portanto, pelo desenvolvimento da política de atendimento – que integra o âmbito maior da política de promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes é operacionalizado.”[3]
Cabe, ainda, a advertência de que o estudo da atual política de atendimento, na esfera infraconstitucional, deve ser iniciado pelo disposto no artigo 86 do ECA, verbis:
Art. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
O comando inserido no dispositivo, ratifica a nova ordem instituída pelo § 7º do art. 227 c/c o art. 204, da CF/88, deixando claro que a nova organização político-administrativa é no sentido de que Estados, Distrito Federal e Municípios passaram à categoria de protagonistas na fixação de ações que visem satisfazer as necessidades da população infanto-juvenil, permitindo, dessa forma, o atendimento das demandas de cada localidade.
A política de atendimento, entretanto, perpassa pela concretização de ações destinadas à efetivação de todos os direitos constitucionalmente assegurados as crianças, adolescentes e jovens, indiscriminadamente.[4]
Assim, todos os “serviços públicos ou de relevância pública devem se adequar ao atendimento prioritário (e em regime de prioridade absoluta) a crianças e adolescentes, para tanto melhor organizando as estruturas já existentes e/ou criando novas, contratando e capacitando pessoal etc. Esse 'tratamento especial' (e preferencial) visa evitar que os interesses caiam na 'vala comum' dos demais atendimentos ou – o que é pior – sejam relegados ao segundo plano, como usualmente ocorre.”[5]
Nesse contexto, o legislador estatutário inseriu no artigo 87 um rol de ações sem as quais não será possível atingir tal objetivo. Tais ações devem ser desenvolvidas, sempre, de maneira transversal e intersetorial, de modo a permitir as necessárias integração e articulação com as demais políticas setoriais (ex.: saúde, assistência social, educação, trabalho etc.), anotando que elas não podem ser vistas como meras recomendações ao Poder Público. Ao contrário, são verdadeiros comandos normativos e, consequentemente, de execução obrigatória, cujo descumprimento legitima o ajuizamento das ações de responsabilidade a que alude o art. 208 da mesma lei.[6]
As linhas de ação da política de atendimento podem ser definidas como ações indicadas pelo legislador como imprescindíveis, como o mínimo necessário para a construção e o desenvolvimento da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.
Na dicção do artigo 87 do ECA, são elas:
I - políticas sociais básicas;
II - políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem;
III - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão;
IV - serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos;
V - proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente.
VI - políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes;
VII - campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.
Importante lembrar, assim, que, quando se pensa nas linhas de ação da política de atendimento, deve-se ter em mente que implementar políticas públicas não significa garantir, tão-somente, a distribuição de bens ou serviços à população. Significa permitir que tais bens e serviços viabilizem, sempre que possível, a emancipação social dos indivíduos, promovendo a sua cidadania e afirmando a sua dignidade, sem perder de vista que as políticas públicas não são benesses, ou favores políticos e que precisamos superar a ideia de que crianças e adolescentes são meros clientes, consumidores ou pacientes dessas políticas, concebendo-os como o que na verdade são: sujeitos de direitos.[7]
Crianças, adolescentes e sua família são o foco central dessas políticas.
Valendo-me novamente de Digiácomo[8], assento que “a garantia de prioridade absoluta à criança e ao adolescente já começa quando da elaboração das políticas públicas sociais básicas (saúde, educação, habitação, saneamento etc), a teor do disposto no art. 87, inciso I, do ECA, passando pelas políticas de assistência social (cf. Art. 87, inciso II, do ECA e arts. 2º e 23, da LOAS), políticas de proteção especial (incluindo a prevenção) e socioeducativas (cf. Arts. 101,112 e 129, do ECA)”, cabendo ao Poder Público efetuar a adequação dos programas e serviços já existentes (sem prejuízo da obrigatória implantação de outros), ao atendimento preferencial e prioritário à população infanto-juvenil, conforme previsto nos citados art. 227, caput, da CF e art. 4º, caput, do ECA. Importante mencionar que, em face do princípio jurídico-constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, o administrador público (que na forma do art. 37, da CF, está vinculado ao princípio da legalidade), fica obrigado a implementar as supramencionadas políticas destinadas à garantia da plena efetivação dos direitos infanto-juvenis assegurados pela lei e pela Constituição Federal, não podendo invocar seu suposto “poder discricionário” para privilegiar áreas diversas, não amparadas por semelhante mandamento constitucional.
E arremata:
“O cumprimento deste verdadeiro comando normativo, que decorre do princípio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, exige a adequação dos orçamentos públicos dos diversos entes federados às necessidades específicas da população infanto-juvenil, através da previsão dos recursos indispensáveis à implementação (…), com foco prioritário no atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias. Os orçamentos dos diversos órgãos públicos (cf. Art. 90, § 2º, do ECA) devem contemplar os planos de ação e de aplicação de recursos (…), nos moldes do que foi deliberado pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (art. 88, inciso II, do ECA e arts. 227, § 7º c/c 204, da CF), de acordo com as demandas e prioridades apuradas junto aos Conselhos Tutelares (art. 136, inciso IX, do ECA), Juizado da Infância e da Juventude e demais órgãos de defesa dos direitos infanto-juvenis, bem como aquelas apontadas nas Conferências dos Direitos das Crianças e do Adolescente, periodicamente realizadas (…).”
“Vale dizer que, face o princípio jurídico-constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, o administrador público (que na forma do art. 37, da CF, está vinculado ao princípio da legalidade) fica obrigado a destinar, no orçamento público, os recursos necessários à implementação das supramencionadas políticas públicas destinadas à garantia da plena efetivação dos direitos infanto-juvenis assegurados pela lei e pela Constituição Federal.”[9]
Adverte o artigo 6º do ECA, ainda: a interpretação de qualquer de seus dispositivos deve levar em consideração a) OS FINS SOCIAIS A QUE SE DIRIGE; b) AS EXIGÊNCIAS DO BEM COMUM; c) OS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS; e d) A CONDIÇÃO PECULIAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMO PESSOAS EM DESENVOLVIMENTO.
Interessa-nos, mais de perto, contudo, o disposto no inciso VI do artigo 87 do ECA, quando estabelece a necessidade de “políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à conivência familiar de crianças e adolescentes.”
Acrescido pela Lei nº 12.010/2009, “o dispositivo visa enfatizar a necessidade da implementação da uma política pública especificamente destinada a assegurar a todas as crianças e adolescentes o regular exercício do direito à convivência familiar. Tal política deve ser composta por programas de atendimento e serviços públicos intersetoriais, articulados entre si (cf. Art. 86, do ECA) e executados, fundamentalmente, pelo Poder Público (cf. Arts. 4º, caput, e 100, par. Único, inciso III, do ECA). Dentre outras iniciativas, devem ser criados programas e serviços destinados à orientação, apoio e promoção social das famílias (arts. 90, inciso I, 101, inciso IV, 129, incisos I a IV, do ECA e arts. 2º, inciso I, 6º-A, 24-A e 24-B, da LOAS), programas de acolhimento institucional e familiar (arts. 34 e § 1º, 90, inciso IV, 101, incisos VII e IX e 197-C, §§ 1º e 2º, do ECA), assim como campanhas de estímulo ao acolhimento de crianças e adolescentes sob guarda, tutela ou adoção, com a preocupação de assegurar a reintegração ou colocação familiar de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos (cf. Art. 87, inciso VII, do ECA). A criação de tais programas e serviços se constitui numa obrigação elementar do município, que pode ser compelido pela via judicial.”[10]
As diretrizes da política de atendimento são traçadas pelo artigo 88 do ECA, restando clara a opção pela municipalização do atendimento e pela criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa, entre outras.
Patrícia Tavares, mais uma vez, anota que “municipalizar o atendimento consiste em confirmar o poder de decisão – e, consequentemente, a responsabilidade – do Município e da comunidade na estruturação da política de atendimento local. Não significa, logicamente, exonerar os demais entes federativos de qualquer obrigação em relação ao setor infantojuvenil: à União e aos Estados compete a coordenação e a complementação da política de atendimento naquilo que ultrapassar as possibilidades dos Municípios. (...)” Tendo como base a repartição de competências constitucionalmente estabelecidas, é possível, então, afirmar, genericamente, que à União cabe a coordenação global da política de atendimento e a definição das normas gerais de ação; aos Estados, a coordenação da política de maneira complementar à União e a execução das políticas que extrapolem a capacidade dos Municípios e, finalmente, aos Municípios, a coordenação da política em nível local e a execução direta de políticas e programas de atendimento em sua maioria.”[11]
Prosseguindo, tem-se, ainda, que “as entidades de atendimento são responsáveis pela manutenção das próprias unidades, assim como pelo planejamento e execução de programas de proteção e socioeducativos destinados a crianças e adolescentes, em regime de: (…) IV – acolhimento institucional;” (art. 90, do ECA).
Qualquer que seja o regime ou a modalidade de acolhimento e, contudo, fundamental que o serviço oferecido observe os princípios e as regras estabelecidas na legislação estatutária (arts. 90. 91, 92, 93, 94, 100 101, do ECA) e as normas regulamentares, notadamente as constantes do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária e das Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes, sendo certo que a inobservância dos princípios, exigências e finalidades do estatuto, impede as entidades que desenvolvem programas de acolhimento de receberem recursos de origem pública (arts. 92, § 5º, do ECA).[12]
De grande importância o disposto no artigo 92 do ECA, na medida em que impõe a observância de alguns princípios, tanto para o acolhimento familiar quanto para o serviço institucional, verbis:
Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deverão adotar os seguintes princípios:
I - preservação dos vínculos familiares e promoção da reintegração familiar;
II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família natural ou extensa;
III - atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV - desenvolvimento de atividades em regime de coeducação;
V - não desmembramento de grupos de irmãos;
VI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;
VII - participação na vida da comunidade local;VIII - preparação gradativa para o desligamento;
IX - participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
§ 1o O dirigente de entidade que desenvolve programa de acolhimento institucional é equiparado ao guardião, para todos os efeitos de direito.
§ 2o Os dirigentes de entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional remeterão à autoridade judiciária, no máximo a cada 6 (seis) meses, relatório circunstanciado acerca da situação de cada criança ou adolescente acolhido e sua família, para fins da reavaliação prevista no § 1o do art. 19 desta Lei.
§ 3o Os entes federados, por intermédio dos Poderes Executivo e Judiciário, promoverão conjuntamente a permanente qualificação dos profissionais que atuam direta ou indiretamente em programas de acolhimento institucional e destinados à colocação familiar de crianças e adolescentes, incluindo membros do Poder Judiciário, Ministério Público e Conselho Tutelar.
§ 4o Salvo determinação em contrário da autoridade judiciária competente, as entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional, se necessário com o auxílio do Conselho Tutelar e dos órgãos de assistência social, estimularão o contato da criança ou adolescente com seus pais e parentes, em cumprimento ao disposto nos incisos I e VIII do caput deste artigo.
§ 5o As entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional somente poderão receber recursos públicos se comprovado o atendimento dos princípios, exigências e finalidades desta Lei.
§ 6o O descumprimento das disposições desta Lei pelo dirigente de entidade que desenvolva programas de acolhimento familiar ou institucional é causa de sua destituição, sem prejuízo da apuração de sua responsabilidade administrativa, civil e criminal.
As entidades se submetem à fiscalização do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares e ainda estão sujeitas às sanções do art. 97 do ECA, sendo certo que “as pessoas jurídicas de direito público e as organização não governamentais responderão pelos danos que seu agentes causarem às crianças e aos adolescentes, caracterizado o descumprimento dos princípios norteadores das atividades de proteção específica.” (§ 2º e art. 97, do ECA), após conclusão do procedimento próprio previsto nos artigos 191 a 193.
Sem dúvida existem quanto à responsabilidade do réu, elas não mais subsistirão após a leitura da redação primorosa do artigo 90 do ECA, verbis:
Art. 90. As entidades de atendimento são responsáveis pela manutenção das próprias unidades, assim como pelo planejamento e execução de programas de proteção e socioeducativos destinados a crianças e adolescentes, em regime de:
I - orientação e apoio sócio-familiar;
II - apoio sócio-educativo em meio aberto; (sic)
III - colocação familiar;
IV - acolhimento institucional;
V - prestação de serviços à comunidade;
VI - liberdade assistida;
VII - semiliberdade; e
VIII - internação.
§ 1o As entidades governamentais e não governamentais deverão proceder à inscrição de seus programas, especificando os regimes de atendimento, na forma definida neste artigo, no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o qual manterá registro das inscrições e de suas alterações, do que fará comunicação ao Conselho Tutelar e à autoridade judiciária.
§ 2o Os recursos destinados à implementação e manutenção dos programas relacionados neste artigo serão previstos nas dotações orçamentárias dos órgãos públicos encarregados das áreas de Educação, Saúde e Assistência Social, dentre outros, observando-se o princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente preconizado pelo caput do art. 227 da Constituição Federal e pelo caput e parágrafo único do art. 4o desta Lei.
§ 3o Os programas em execução serão reavaliados pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, no máximo, a cada 2 (dois) anos, constituindo-se critérios para renovação da autorização de funcionamento:
I - o efetivo respeito às regras e princípios desta Lei, bem como às resoluções relativas à modalidade de atendimento prestado expedidas pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, em todos os níveis;
II - a qualidade e eficiência do trabalho desenvolvido, atestadas pelo Conselho Tutelar, pelo Ministério Público e pela Justiça da Infância e da Juventude;
III - em se tratando de programas de acolhimento institucional ou familiar, serão considerados os índices de sucesso na reintegração familiar ou de adaptação à família substituta, conforme o caso.
Finalizando, alerta-nos o § 1º do art. 94, do ECA, que se aplicam, no que couberem, as obrigações constantes dos incisos às entidades que mantêm programas de acolhimento institucional e familiar, sendo interessante citar as que constam dos incisos I, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX e XX.
II.2. SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O artigo 1º da Resolução nº 113, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), ratificada pela Resolução nº 117, definiu o Sistema de Garantia como a “articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal.”
É destacada a necessidade de articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil para a promoção, defesa e controle para a efetivação desses direitos fundamentais.
Surgiram, dessa forma, pela Resolução citada, os seguintes eixos estratégicos de ação (art. 2º, Caput):
a) DEFESA (art. 6º) – garantia de acesso à Justiça em todos os níveis;
b) PROMOÇÃO (art. 14) – políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, previstas no artigo 86 do ECA; e,
c) CONTROLE (art. 21) – o controle das ações públicas de promoção e defesa dos direitos humanos da criança e do adolescente se fará através das instâncias públicas colegiadas próprias, onde se assegure a paridade de participação de órgãos governamentais e de entidades sociais.
No eixo da promoção estão inseridas as políticas públicas de atendimento, como a dos autos, que devem atuar em rede, de forma a garantir a integralidade dos direitos de crianças e adolescentes.
II.3 – A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA DOS DIREITOS E DE EFETIVAÇÃO DO SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Em razão da excelência com que foi tratada a matéria constante deste item por ROSSATO, ouso transcrever seus ensinamentos, haja vista eles se encaixam perfeitamente nesta decisão:[13]
“Sustenta Teori Albino Zavascki que a ação civil pública é a denominação para o procedimento instituído pela Lei nº 7347/1985, que tem por finalidade promover a tutela de direitos transindividuais.
“A coletividade infância tem, na ação civil pública, importante instrumento para a tutela de seus direitos fundamentais, potencializando ao máximo aos princípios do superior interesse da criança e a prioridade absoluta.
“Os interesses da infância, enquanto coletividade, inserem-se na classificação apresentada pelo Código de Defesa do Consumidor: interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, somando-se a eles os interesses individuais indisponíveis.
“Nos termos do art. 81, parágrafo único, I, do Código de Defesa do Consumidor, direitos ou interesses difusos são aqueles ‘transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.’ Compreendem grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não existe vínculo jurídico preciso. O objeto desses interesses é indivisível de modo que não é possível ser dividido entre os membros da coletividade. (...)
“A expressão interesses coletivos possui mais de um significado. Em sentido amplo, encampado pelo art. 129, III, da Constituição Federal, os interesses coletivos são aqueles transindividuais, de grupos, classes ou categorias de pessoas. Em sentido restrito, os interesses coletivos referem-se aos interesses transindividuais indivisíveis de um grupo determinado ou determinável de pessoas, reunidas por uma relação jurídica básica comum, conforme definição constante do art. 81, II, do Código de Defesa do Consumidor. (...)
“Os interesses individuais homogêneos, por sua vez, ‘são aqueles de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum, normalmente oriundos de mesma cricunstância de fato’ (art. 82, II, CDC).
“Apesar de mencionados no art. 210, do Estatuto, não há dúvidas de que os direitos individuais homogêneos também podem ser tutelados pela ação civil pública. Nesse sentido, ‘ao tratar dos interesses homogêneos, quis propiciar ação acoletiva substitutiva de demandas individuais semelhantes, racionalizando a prestação jurisdicional sob o pálio da economia processual.’
“É certo que o subsistema coletivo – formado da integração da Lei da Ação Civil Pública (LACP), Código de Defesa do Consumidor (CDC) e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – permite a defesa dos interesses individuais homogêneos, tal como defendido por Hugo Nigro Mazzilli: ‘Assim, a interpretação adequada a respeito é a de que, ao referir-se a interesses difusos e coletivos, o ECA quis alcançar, lato sensu, quaisquer interesses transindividuais..’
“Assim, a ação civil pública poderá tutelar todos os interesses metaindividuais de crianças e adolescentes. (grifei)
“Também poderá propiciar a defesa de interesses individuais indisponíveis (não homogêneos), sendo lícito o ajuizamento de ação civil pública para a defesa dos interesses de uma só criança.
“É certo que os direitos fundamentais de crianças possuem dupla titularidade. São pertencentes aos próprios indivíduos e, também, à sociedade, que pode exigir a sua observância, usando dos meios legais disponíveis, o que caracteriza como indisponíveis, com valor individual e social.
“A legitimidade para a defesa dos interesses metaindividuais de crianças e adolescentes decorre da integração da LACP, do CDC e do ECA.
“Desse modo, o rol dos legitimados não está adstrito ao constante do art. 210, do Estatuto, que, por exemplo, não indica a Defensoria Pública, devendo ser observado o disposto no art. 5º, da Lei nº 7347/1985. (...)
“O Ministério Público, nas ações civil públicas para tutela de interesses de crianças e adolescentes, tem sua atuação – que é ampla – fundada na Constituição Federal, especialmente no art. 129, I e III e V, na Lei Complementar 75/93, nos arts. 5º, III, “e”, art. 6º, VII, “c”, e art. 83, III, nas leis complementares estaduais e no art. 201, V, do Estatuto, podendo buscar a tutela dos direitos difusos, coletivos, individuais homogêneos e individuais indisponíveis.”
Arrematando, tem-se que o objeto da ação civil pública deve ser sempre um provimento condenatório, e não declaratório ou constitutivo.
II.4 – ANÁLISE DO CASO CONCRETO
Retornando ao tema de fundo, assento, desde logo, que a via eleita pelo MPE foi a correta e que o órgão possui legitimidade ad causam para figurar no polo ativo da relação processual, assim como o município réu (art. 5º, inc. I, LACP), como disse antes.
Com fincas no que dispõe o art. 3º da Lei nº 7347/1985, o pedido tem por objeto a condenação do município de Belém ao cumprimento de uma obrigação de fazer, consistente na efetivação de várias condutas positivas, tal como consta da inicial, em relação ao Abrigo Ronaldo Araújo, em benefício de vários adolescentes que são atendidos pelo programa de acolhimento institucional.
O pedido veio instruído com o INQUÉRITO CIVIL nº 038/2011, instaurado pelo MPE de Icoaraci (§ 1º, art. 8º, LACP), com a finalidade de apurar as condições gerais de funcionamento do citado espaço (fls. 12 a 125).
Sendo a prova mater trazida aos autos pelo MPE, extraio que a Gerente do espaço de acolhimento, em resposta ao Memorando nº 91/2011, de 20.07.2011 (fls. 40 a 60), prestou informações de a) que o perfil de atendimento do espaço é de adolescentes do sexo masculino, na faixa etária de 12 a 17 anos de idade, em situação de risco, vulnerabilidade social e/ou violação de direitos; b) capacidade de atendimento: 20 adolescentes; c) quantidade de acolhidos em 06.07.2011: 08 adolescentes no abrigo; 11 em convivência familiar e 11 evadidos; e, d) que o espaço contava com adolescentes de Belém e de outros municípios do Pará e do Amazonas.
O expediente também forneceu dados importantes sobre a educação escolar, saúde física, mental e psicológica, odontológica e orientação quanto à higiene pessoal e sexual, lazer, composição do quadro técnico e auxiliar, horários e plantões (total de servidores em 20.07.2011 – 40).
Prosseguindo, teceu comentários sobre as dimensões do abrigo (80mx60m); número de alojamentos (06); banheiros, refeitório, cozinha, biblioteca, área de esporte, salão de jogos etc., acrescentando que não há ambulatório, médicos e consultório odontológico.
Disse, ainda, que existia uma previsão de reforma do espaço; que a segurança era terceirizada (empresa PUMA); um vigilante por turno de 12 horas, que era insuficiente; iluminação precária; perfil era de adolescentes “infratores” (sic); que as evasões eram constantes devido a pequena altura do muro; que aciona o CIEPAS para atender os casos de ocorrência de atos infracionais; existência de adolescentes com alto grau de dependência química, que praticam pequenos roubos, furtos e assaltos (sic) para manter o vício; que não havia qualquer tipo de vigilância eletrônica interna ou externa e que o local contava com apenas um (1) motorista e um carro Gol, apenas nos dias de segunda, quarta e quintas-feiras, durante o dia, pois de noite e nos finais de semana, quando necessário, solicitava apoio do plantão da Casa de Passagem, situada no centro de Belém.
Entre os dias 22 e 28 de julho de 2011, minuciosa vistoria foi realizada pelo MPE no Abrigo Ronaldo Araújo (fls. 61 a 98), com importante e elucidativo registro fotográfico.
Merece transcrição as conclusões obtidas (fls. 74/75):
A partir dos dados obtidos durante a visita de inspeção ao Espaço de Acolhimento Ronaldo Araújo e das observações, identificamos que houve uma mudança no perfil dos adolescentes acolhidos, esta mudança vem ocorrendo há aproximadamente um ano, quando a maioria das situações atendidas passar a ser de adolescentes usuários de drogas e em conflito com a lei. Isto se torna um entrave ao desenvolvimento do trabalho uma vez que o espaço e a equipe de não estão devidamente preparados para esta nova demanda. Entre as alternativas pensadas no espaço na perspectiva de minimizar os efeitos do problema foi apontada a necessidade de elevação do muro local, considerando que os adolescentes costumam atravessá-lo sem grandes obstáculos. Também foi destacada a importância de parceria e convênios com as comunidades terapêuticas (no atendimento e acompanhamento dos casos) e com o Conselho Tutelar II (nas situações de retorno após fuga dos adolescentes quando estes apresentarem a necessidade de atendimento no Hospital de Clínicas).
Outro aspecto que merece destaque é quanto ao espaço físico que precisa de reformas urgentes para atender melhor os adolescentes e propiciar melhores condições de trabalho aos servidores, pois se observou insalubridade decorrente das infiltrações na maioria dos cômodos. Também se faz necessária a reforma no quarto do adolescente portador de deficiência. É importante que se ressalte que o Espaço de Acolhimento Ronaldo Araújo tem uma área privilegiada para as atividades de lazer, contudo não se verificou uma proposta pedagógica para o adequado aproveitamento do local, nesse sentido, observa-se que a equipe precisa investir mais em tais atividades, pois certamente em um espaço mais atrativo e dinâmico os adolescentes apresentarão menos fugas.
Quanto ao transporte, a FUNPAPA precisa ser mobilizada para solucionar urgentemente este problema, pois é inadmissível que um espaço que atende sistematicamente e ininterruptamente adolescentes não disponha de um veículo em tempo integral. Em casos de urgência, os adolescentes não podem ficar a mercê da benevolência de X ou Y instituição, quando a principal responsável por prestar o atendimento do adolescente é a Fundação.
A segurança do espaço precisa ser revista, pois muro baixo, luminosidade precária e apenas um vigilante para dar conta de toda a dimensão do local não garantem a proteção aos adolescentes e servidores. Isto fica mais complicado quando se observa que alguns adolescentes estão ameaçados de morte por traficantes.
No que diz respeito à intersetorialidade há muito que se investir pela equipe e coordenação do espaço de acolhimento. Intersetorialidade significa interação, parceria, diálogo entre as instâncias da rede de serviços para que esta atenda satisfatoriamente seus usuários. Nesta perspectiva, sente-se a necessidade de interação do espaço de acolhimento principalmente dom a SESPA, SESMA, Centro de Referência em Assistência Social – CRAS, Centro de Referência Especializada em Assistência Social – CREAS e Conselho Tutelar.
Quanto aos adolescentes residentes Renato e Nonato, cumpre ressaltar que os mesmos construíram relações com a comunidade local e a equipe de trabalho, sendo para estes suas únicas referências de família. Assim, compreendendo a importância de tais laços, avalia-se que no momento não se deve retirá-los de tal espaço.(sublinhei)
Realizou-se, ainda, vistoria técnica pela Eng. Civil Maylor Costa Ledo; pelo Arquiteto e Urbanista Ricardo Gel Castello Branco e pelo Assessor Técnico Paulo Marcelo Accioli (fls. 101 a 120), cuja conclusão, sem delongas, foi a de que o ABRIGO RONALDO ARAÚJO atendia “parcialmente às orientações do CONANDA e do CNAS, porém necessita urgente de serviços de manutenção como solução de infiltrações, pintura, pavimentação das passarelas, entre outros.” (relatório fotográfico – fls. 106 a 120).
Como visto, a situação do espaço de acolhimento era/é lastimável.
Este magistrado, também, sem a presença do Município e do MPE, teve a oportunidade de verificar in loco a situação descrita nos autos, via inspeção judicial (fls. 254 a 268), oportunidade em que restou comprovado que algumas melhorias foram realizadas, sem, contudo, atingir a integralidade da ordem liminar de fls.
O Município de Belém, ciente das precaríssimas condições em que estava o citado abrigo – de sua responsabilidade –, ao invés de oferecer soluções práticas e urgentes, quando se manifestando acerca da concessão ou não da liminar por este juízo, através de sua Procuradora, limitou-se a dizer que não tinha razão o Parquet, haja vista que possui autonomia administrativa e financeira e que detém poder discricionário para administrar o seu orçamento anual, chegando ao cúmulo de dizer que “a interferência constante do Ministério Público Estadual por meio de Ação Civil Pública é ilegítima” e sem qualquer respaldo legal (fls.132), o que é um absurdo e ao mesmo tempo deixa claro o pensamento da municipalidade com relação ao seu dever constitucional na República, sem se falar no que provavelmente deve pensar dos cânones da proteção integral e da prioridade absoluta.
É cediço que, partindo-se da premissa constitucional de que toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito (seja individual, coletivo, difuso, público ou privado) é passível de apreciação, sim, pelo Poder Judiciário, forçoso concluir que também a discricionariedade administrativa (quando lesiva, como é o caso) está sujeita ao controle jurisdicional, principalmente quando atinge os sagrados direitos de crianças e adolescentes previstos no ECA e em outros diplomas legais.
Totalmente descabida, portanto, as alegações do réu nesse sentido, pois “não há imunidade legal para quem infringe direito. O poder discricionário não está situado além das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e se sujeita à regular apreciação pela autoridade judicante.” (RT 721/212)
Ademais, são “valores hierarquizados em nível elevadíssimo, aqueles atinentes à vida e à vida digna dos menores. Discricionariedade, conveniência e oportunidade não permitem ao administrador que se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da Constituição Federal e de todo o sistema legal.” (TJRS, Ap. Civ. 596017897, j. em 12.03.97).
Digo eu: a única discricionariedade permitida ao Gestor municipal na seara da Infância e Juventude é tão-somente aquela que lhe conduza ao efetivo cumprimento de seus direitos, com prioridade absoluta (nem mais, nem menos), sob pena de infringência direta aos princípios constitucionais, tão caros à República, previstos no artigo 37 da Constituição Federal, estando ainda sujeito a ação civil pública por ato de improbidade administrativa, entre outros.
O Poder Judiciário já está cansado de asseverar isto e os gestores públicos continuam com seus confortáveis e convenientes ouvidos moucos. Até quando?
Prosseguindo, ante a vasta fundamentação doutrinária expendida por este magistrado e a prodigiosa legislação que embasa a matéria e esta decisão, podem-se chegar as seguintes conclusões:
-
O réu, de fato, não contestou o pedido do autor no que tange à causa de pedir. Como disse, limitou-se a desqualificar a atuação do MPE e a dizer que estava fazendo uma coisa no abrigo, reconhecendo, assim, claramente, a situação de verdadeira penúria daquele espaço e, implicitamente, a sua própria responsabilidade pela manutenção dele. Dessa forma, data vênia, diante de tal postura, outra não pode ser a conclusão, senão a de que houve o reconhecimento do pedido do autor;
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o Município, também, em nenhum momento nos autos, questionou a sua responsabilidade sobre o oferecimento do serviço (programa de acolhimento) e nem poderia fazê-lo;
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é certo dizer-se, ainda, que algumas melhorias foram introduzidas no local após a determinação deste juízo. Contudo, da mesma forma, restou claro nos autos, que outras também deixaram de ser produzida em descumprimento daquela ordem, passados já quase dois (2) anos, tal como nos adverte o Ministério Público na parte final de suas alegações finais;
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e, por fim, que, em não cumprindo integralmente a decisão antecipatória da tutela de fls., o réu está em mora e é devedor da multa que estabeleci para o caso de desobediência.
A verdade, inconteste, é a de que o MUNICÍPIO DE BELÉM deve ser responsabilizado pelo cumprimento da obrigação de fazer, tal como consta da inicial, por que legal e legítima a sua obrigação, o que já vimos de forma exaustiva, vez que não conseguiu, em nenhum momento, afastá-la. Ao contrário, a meu sentir, a reconheceu e até tentou fazer alguma coisa, muito embora em pouquíssimas proporções e de todo insuficientes.
Dalmo de Abreu Dallari é taxativo: “essa exigência legal é bem ampla e se impõe a todos os órgãos públicos competentes para legislar sobre a matéria, estabelecer regulamentos, exercer controle ou prestar serviços de qualquer espécie para promoção dos interesses e direitos de crianças e adolescentes. A partir da elaboração e votação dos projetos de lei orçamentária já estará presentes essa exigência. Assim, também, a tradicional desculpa de “falta de verba” para a criação e manutenção de serviços não poderá mais ser invocada com muita facilidade quando se tratar de atividade ligada, de alguma forma, a crianças e adolescentes. Os responsáveis pelo órgão público questionado deverão comprovar que, na destinação dos recursos disponíveis, ainda que sejam poucos, foi observada a prioridade exigida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Quanto à multa pelo descumprimento dos efeitos da tutela antecipatória, assento que a municipalidade não se desincumbiu da ordem em todos os seus termos, valendo dizer também que ela não foi revogada ou suspensa pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Pará em sede de agravo, tenho-a como certa e devida, no valor que adiante declinarei.
Especificamente, a Lei Federal nº 7.347, de 24.07.1985, disciplina a matéria, dando os contornos da ação civil pública.
Dispõe o artigo 3º que esta ação tem por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
O MPE pode instaurar inquérito civil (§ 1º).
“Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.” (art. 11)
O mandado liminar também é plenamente possível (art. 12 c/c o artigo 213 do ECA e § 3º do art. 84 do CDC).).
Aplica-se a esta ação o Código de Processo Civil e o Código de Defesa do Consumidor (arts. 19 e 21).
Na jurisprudência pátria a questão versante dos autos é pacífica quanto à obrigação da municipalidade, como se vê dos seguintes arestos:
REEXAME NECESSÁRIO e APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Preliminar de impossibilidade de antecipação de tutela em face do Poder Público rejeitada. Cabimento inclusive nas causas sujeitas ao reexame necessário. Imposição de multa. Possibilidade prevista em lei e em conformidade com pacífico entendimento jurisprudencial. Inadequado fornecimento de recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar. Violação do artigo 134, parágrafo púnico, da lei 8069/90. Condenação da municipalidade ao fornecimento de equipamentos ao Conselho Tutelar. Recursos improvidos. (Reexame Necessário e Apelação nº 00023578320118260028, Rel. Des. Camargo Aranha Filho, TJSP, Câmara Especial, de 10.06.2013)
PROCESSUAL. CIVIL. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADO. OBRIGAÇÕES DE FAZER E ENTREGAR COISA. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. CABIMENTO, INCLUSIVE CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. VALOR DA MULTA. PRAZO PARA PAGAMENTO. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 07/STJ. 1. É cabível, mesmo contra a Fazenda Pública, a cominação de multa diária (astreintes) como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer (fungível ou infungível) ou entregar coisa. Precedentes: REsp 770.515, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavaschi, DJ de 19.09.2005 e AgRg no REsp 727.983/RS, 1ª Turma, Min. Francisco Falcão, DJ de 05.09.2005.
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. TRATAMENTO DE SAÚDE E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A NECESSITADO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. FAZENDA PÚBLICA. INADIMPLEMENTO. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. ASTREINTES. INCIDÊNCIA DO MEIO DE COERÇÃO. 1. Ação Ordinária c/c pedido de tutela antecipada ajuizada em face do Estado objetivando o fornecimento de medicamento de uso contínuo e urgente a paciente portadora de cirrose biliar primária. 2. A função das astreintes é vencer a obstinação do devedor ao cumprimento da obrigação e incide a partir da ciência do obrigado e da sua recalcitrância. 3. In casu, consoante se infere dos autos, trata-se obrigação de fazer, consubstanciada no fornecimento de medicamento a pessoa portadora de cirrose biliar primária, cuja imposição das astreintes objetiva assegurar o cumprimento da decisão judicial e consequentemente resguardar o direito à saúde. 4. ‘Consoante entendimento consolidado neste Tribunal, em se tratando de obrigação de fazer, é permitido ao juízo da execução, de ofício ou a requerimento da parte, a imposição de multa cominatória do devedor, mesmo que seja contra a Fazenda pública’. (AGRGRESP 189.108/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 02.04.2001). (...)(REsp. nº 715.974/RS, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, j. 08.11.2005, DJU 28.11.2005, p. 217).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS, OBRIGATORIEDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA. O Estatuto da Criança e do Adolescente confere ao Ministério Público, através dos seus artigos 201 e 212, legitimidade para litigar na defesa dos interesses individuais e homogêneos das crianças e adolescentes, protegidos pelo estatuto menorista. A saúde é um direito de todos (art. 196, CF), e a obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos a quem deles precisa está em conformidade com o parágrafo segundo do artigo 11, letras ‘a’ e ‘b’ do parágrafo único do art. 4º, inciso V, do art. 201, e art. 213, todos do estatuto da criança e do adolescente, visto em combinação com o artigo 23, inciso II, art. 196, art. 198, caput e incisos, e art. 227, todos da Carta Constitucional Brasileira. Apelo improvido. (TJRS, 8ª Câm. Civ., Apelação e Reexame Necessário 70010656163, Rel. Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, j. 07.04.2005). No mesmo sentido: TJRS, Ag. De Instrumento 595037557 e Ap. e Reexame de Sentença 700002508679.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MUNICÍPIO DE BENTO GONÇALVES. CONSTRUÇÃO DE ABRIGO. POLÍTICA DE ATENDIMENTO. MUNICIPALIZAÇÃO. É de responsabilidade do Município de Bento Gonçalves a manutenção de crianças e adolescentes em abrigo específico, propiciando-lhes atendimento compatível com a medida de proteção, respeitadas as diretrizes orçamentárias. Aplicação dos arts. 86, 88 e 101, VII, do ECA; art. 241 da Constituição Estadual e art. 227 da Constituição Federal. APELAÇÃO PROVIDA.(...) (Apelação Cível nº 70010869923, 8ª Câm. Cível, TJRS, Relator José Ataíde Siqueira Trindade, j. em 17.03.2005)
ECA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSERTOS E MANUTENÇÃO EM ABRIGO MUNICIPAL. RESPONSABILIDADE DO PODER PÚBLICO. GARANTIA DE PRIORIDADE ABSOLUTA NO DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE DEFESA À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. A ação civil pública é a via processual adequada para o caso. O Município não pode se eximir de dar cumprimento aos programas relacionados a política social. Crianças e adolescentes expostos em situação de risco, que necessitam da prevenção do abrigo em que se encontram. Normas constitucionais de eficácia plena. Rejeição dos argumentos de limitação orçamentária e suposta violação do princípio da independência e harmonia entre os poderes. Recurso provido em parte, tão-somente para que seja ampliado o prazo para cumprimento da decisão agravada. RECURSO PROVIDO EM PARTE. (Agravo de Instrumento nº 70016949539, 7ª Câm. Civ., TJRS, Relatora Maria Berenice Dias, j. 01.11.2006)
REEXAME NECESSÁRIO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSTRUÇÃO DE ABRIGO DE PASSAGEM PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. A Constituição Federal, em seu art. 227, dispôs ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Como medida de proteção à criança e ao adolescente, estabelece o artigo 101, VII, do ECA que a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, a medida de abrigo em entidade. Demonstrada a necessidade de construção de abrigo de passagem no Município de Formigueiro. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO. UNÂNIME. (TJRS, Reexame Necessário 70021322268, 7ª Câm. Civ., Relator Luiz Felipe Brasil Santos, j. em 19.12.2007)
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ABRIGAMENTO DE CRIANÇAS. OBRIGAÇÃO DO MUNICÍPIO. DETERMINAÇÃO DE INCLUSÃO DE VERBA ORÇAMENTÁRIA PARA CONSTRUÇÃO DE ABRIGO. 1. Compete ao Município o dever de assegurar o abrigamento de crianças e adolescente em situação de risco. 2. É cabível a determinação judicial de inclusão de verba no orçamento destinada à construção de abrigo público destinado a amparar crianças e adolescentes, quando existe a necessidade e se verifica a inércia do poder público. (...) Recurso provido em parte. (TJRS, Ag. De Instrumento nº 70022412613, 7ª Câm. Civ., Relator Des. Sérgio Chaves, j. em 26.03.2008).
O Supremo Tribunal Federal também já se pronunciou sobre o assunto, com relação ao direito à educação.
CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃODAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” – RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA – QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” – INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. 2 POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS “ASTREINTES”. - Inexiste obstáculo jurídico-processual à utilização, contra entidades de direito público, da multa cominatória prevista no § 5º do art. 461 do CPC. A “astreinte” – que se reveste de função coercitiva – tem por finalidade específica compelir, legitimamente, o devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito, tal como definido no ato sentencial. Doutrina. Jurisprudência. (AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 639.337/SP, Relator Ministro Celso de Mello, 2ª Turma, DJe de 14.09.2011)
Entendendo que todas as questões de fato e de direito já foram exaustivamente por mim apreciadas, resta-me, então, definir o valor atual da multa devida pelo réu, em obediência estrita à decisão interlocutória de fls. 142 e segs. Nesse sentido, tem-se:
Decisão interlocutória (fls. 142 e segs.) 08.05.2012
MULTA DIÁRIA R$ 10.000,00
Prazo para cumprimento 90 dias
Início da contagem do prazo, após citação/notificação do réu 18.05.2012
(Cf. certidão de fls. 176)
FIM DO PRAZO DE 90 DIAS PARA O RÉU 15.08.2012
CONTAGEM/DIAS (de 16.05.2012 a 05.05.2014) 619 dias
VALOR DEVIDO ATÉ 02.05.2014 (619 dias x R$ 10.000,00) R$ 6.190.000,00
(Seis milhões, cento e sessenta mil reais)