O PACTO FEDERATIVO E A REQUISIÇÃO DE BENS ENTRE OS ENTES FEDERADOS
Em sensível momento de Pandemia (COVID-19), muito se tem discutido acerca do tema da requisição administrativa de bens e serviços pela Administração.
Ao lado do instituto da requisição, sobreleva notar a proteção da saúde e da vida, que lastreia todo o panorama e das lides porventura existentes nesse período e relacionados à crise da saúde vivenciada no Brasil e no mundo.
É a tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar, de outro, a alocação de recursos financeiros, sempre tão limitados.
Nesse cenário, os ventiladores pulmonares, dramaticamente escassos, ao fornecer o necessário suporte ventilatório artificial ao paciente, suprem, naquele instante, a insuficiência cardiorrespiratória diagnosticada, operando como um esteio vital para o enfermo, mantendo-lhe a circulação do oxigênio pelo corpo, e consequentemente, a vida.
A primeira indagação que surge é a seguinte: Por que estaria o STF a julgar essa demanda?
É imperioso salientar, em matéria processual, acerca da competência jurisdicional do STF para a presente demanda. Cabe ao STF o dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas estatais que integram a Federação brasileira, quais sejam, a União e o Estado do Mato Grosso. O STF aqui, em competência originária, assume papel de Tribunal da Federação.
Trata-se de cuidar da proteção do pacto federativo, cujas prescrições não podem ser transgredidas, sob pena de nulificar a autonomia institucional das entidades federadas.
A segunda indagação é: Poderia a União requisitar bens que já teriam sido requisitados pelos Estados, e, portanto, bens estaduais?
A requisição de bens e/ou serviços, nos termos em que prevista pela Constituição da República (art. 5º, inciso XXV), somente pode incidir sobre a “propriedade particular”, nos seguintes termos:
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano (grifo nosso);
Vale citar antecedente jurisprudencial do STF:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. UNIÃO FEDERAL. DECRETAÇÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. REQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS MUNICIPAIS. DECRETO 5.392/2005 DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO. Mandado de segurança, impetrado pelo município, em que se impugna o art. 2º, V e VI (requisição dos hospitais municipais Souza Aguiar e Miguel Couto) e § 1º e § 2º (delegação ao ministro de Estado da Saúde da competência para requisição de outros serviços de saúde e recursos financeiros afetos à gestão de serviços e ações relacionados aos hospitais requisitados) do Decreto 5.392/2005, do presidente da República. Ordem deferida, por unanimidade. Fundamentos predominantes: (i) a requisição de bens e serviços do município do Rio de Janeiro, já afetados à prestação de serviços de saúde, não tem amparo no inciso XIII do art. 15 da Lei 8.080/1990, a despeito da invocação desse dispositivo no ato atacado; (ii) nesse sentido, as determinações impugnadas do decreto presidencial configuram-se efetiva intervenção da União no município, vedada pela Constituição; (iii) inadmissibilidade da requisição de bens municipais pela União em situação de normalidade institucional, sem a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio.
O Estado do Mato Grosso adquiriu 68 (sessenta e oito) ventiladores pulmonares por meio do Contrato nº 67/2020-SES/MA, de 19 de março de 2020, e constantes da Nota de Empenho nº 2020NE002101.
No julgamento da Ação Cível Originária (ACO) 3393, em caráter liminar e referendada pelo Plenário, suspendeu-se a eficácia da requisição, pela União, de ventiladores pulmonares adquiridos pela Secretaria de Saúde de Mato Grosso. A empresa privada, por conseguinte, deverá enviar os bens ao Estado e não à União.
Entrementes, caso se tratasse de situação de crise constitucional (Estado de Defesa ou Estado de Sítio) a medida estaria autorizada. Mas esse não é o caso e a federação deve ser garantida, em homenagem a proteção das cláusulas pétreas da forma federativa de Estado, além dos direitos e garantias individuais, qual seja, a proteção a vida e a saude, insculpida como direito essencial e instrumental para a existência dos demais direitos.