A doutora Eunice Aparecida de Jesus Prudente, MD Presidenta da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP, pede-nos parecer acerca da ilegalidade e inconstitucionalidade da CPMF, esclarecendo que a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo logrou obtenção de liminar em mandado de segurança coletivo, que impetrou contra ato do Senhor Superintendente da Receita Federal, perante a 17ª Vara da Justiça Federal, mas que foi cassada aquela medida liminar por ato do juiz Relator do agravo de instrumento apresentado pelo órgão assistencial da autoridade coatora, ao qual foi dado efeito suspensivo.
Passemos ao exame da matéria .
Da Legislação
A previsão da instituição do IPMF, por lei complementar, foi consignada no art. 2º da Emenda Constitucional nº 3, de 18-3-93, de natureza concreta. Esse dispositivo estipulou o prazo de vigência desse imposto para até 31 de dezembro de 1994, bem como, estabeleceu a alíquota máxima de vinte e cinco centésimos por cento. Em consequência, foi elaborada a aprovada a Lei Complementar nº 77/93, criando o IPMF com a definição de seu fato gerador.
A possibilidade de recriação desse imposto, agora, com a roupagem de contribuição CPMF - pelo prazo máximo de dois anos, veio através da Emenda nº 12, de 15-08-96, que se utilizou do ilegítimo expediente, para dizer o menos, de enxertar o art. 74 no ADCT da Constituição promulgada nos idos de 1988. Sobreveio, então, a Lei nº 9.311, de 24-11-96, instituindo a CPMF e prevendo a sua cobrança pelo prazo de treze meses, a contar de 90 dias (23-01-97), prazo esse, posteriormente, prorrogado pela Lei nº 9.359, de 12-12-97 para até 23-01-99, completando-se, destarte, o período de cobrança prefixado pela Emenda 12/96. É o que se depreende do texto mal redigido. O importante é que essa prorrogação ocorreu antes do esgotamento do prazo originariamente estabelecido pela Lei nº 9.311/96. Nenhuma impugnação cabe, portanto, a esse título.
Finalmente, a Emenda Constitucional nº 21, de 18-03-99, valendo-se do mesmo expediente condenável, porém, não repelido pela Corte Suprema, acrescentou o art. 75 no ADCT da Constituição de 1988, nos seguintes termos:
"Art. 75. É prorrogada, por trinta e seis meses a cobrança da contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira de que trata o art. 74, instituída pela Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996, modificada pela Lei nº 9.539, de 12 de dezembro de 1997, cuja vigência é também prorrogada por idêntico prazo.
§ 1º Observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal, a alíquota da contribuição será de trinta centésimos, nos meses subsequentes, facultado ao Poder Executivo reduzi-la total ou parcialmente, nos limites aqui definidos.
§ 2º O resultado do aumento da arrecadação, decorrente da alteração da alíquota, nos exercícios financeiros de 1999, 2000 e 2001, será destinado ao custeio da previdência social.
§ 3º É a União autorizada a emitir títulos da dívida pública interna, cujos recursos serão destinados ao custeio da saúde e da previdência social, em montante equivalente ao produto da arrecadação da contribuição, prevista e não realizada em 1999."
Decorridos 90 (noventa) dias da promulgação da referida Emenda, que entrou em vigor na data de sua publicação, 19-03-99, a CPMF passou a ser exigida e arrecadada, sem qualquer providência legislativa infraconstitucional.
Essa exigência é, entretanto, inconstitucional por vulnerar o princípio da legalidade tributária, inserto no art. 150, I da CF como veremos.
Da violação do princípio da legalidade tributária
É sabido e ressabido que a Constituição limita-se a outorgar competência tributária às entidades políticas componentes da Federação Brasileira.
Com relação aos impostos, exatamente porque desvinculados de qualquer atuação estatal específica, a Carta Magna nominou aqueles cabentes a cada entidade política (arts. 153, 155 e 156) com o fim de preservar o princípio federativo, evitando o surgimento de conflitos tributários.
Por cautela, prescreveu-se, ainda, que cabe à lei complementar "dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária" (art. 146, I da CF). E o artigo 110 do CTN completou, prescrevendo a proibição de a lei tributária alterar a "definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal,.... para definir ou limitar competências tributárias".
Exatamente, essa discriminação constitucional de impostos permite defender a tese de que ela funciona como garantia constitucional do contribuinte, que tem o direito de não se sujeitar a impostos outros que não aqueles nominados, ou resultantes do exercício da competência residual, nos termos do art. 154 da CF, o que não é o caso da CPMF. Assim como o STF decidiu que a imunidade é garantia fundamental, insuprimível por Emendas (art. 60, 4º, IV da CF), a discriminação de impostos também o é, porque representa, à toda evidência, limitação do poder de tributar, tanto quanto a imunidade.
Nem se argumente que a CPMF não tem natureza de imposto. Prescreve o art. 4º do CTN que "a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II a destinação legal do produto de sua arrecadação".
Ora, o fato gerador da CPMF continua sendo o mesmo previsto na Lei Complementar nº 77/93, que instituiu o IPMF. Nada mudou. Só houve o expediente maroto de denominá-lo de contribuição para, pretensamente, contornar a proibição do art. 167, IV da CF, cujo exame não faremos neste parecer.
Voltando à questão do papel da Constituição, não é missão do legislador constitucional criar impostos, quer pela absoluta impossibilidade de instituí-los, nos âmbitos das entidades políticas regionais e locais, sem quebra de suas autonomias políticas e administrativas, quer pela natureza perene das normas constitucionais, em contraste com as das legislações ordinárias, que são flexíveis para se ajustarem às políticas tributárias de cada governo, decorrentes de situações conjunturais. Assim, não cabe à Constituição criar impostos, da mesma forma que não é próprio da Carta Magna a fixação de vencimentos, reservada ao legislador infra-constitucional. Como se sabe, a Lei Maior fixa limites de vencimentos, cabendo à lei ordinária competente estabelecer o seu quantum. Da mesma forma, cabe ao Magno Estatuto apenas outorgar poderes para o legislador ordinário de cada entidade tributante criar os impostos que lhes foram atribuídos, observados os limites da autorização constitucional.
Quando o texto constitucional (art. 150, I) prescreve que é vedado "exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça" está a significar lei em sentido estrito, como está regulado no art. 97 do CTN in verbis:
"Art. 97 Somente a lei pode estabelecer:
I A instituição de tributos ou a sua extinção;
....................
III A definição do fato gerador da obrigação tributária principal,..."
Assim, não cabe invocar o brocardo "quem pode o mais pode o menos", pois é a própria Magna Carta que estabeleceu o princípio da estrita legalidade, ao lado de inúmeros outros, com o fito de impor restrições ao poder de tributação. Por isso, afirmamos: "Esses princípios expressos, juntamente com os implícitos, que decorrem dos primeiros, do regime federal e dos direitos e garantias fundamentais, constituem o escudo de proteção dos contribuintes, atuando como freios que limitam o poder de tributação do Estado. Por isso esses princípios tributários são conhecidos como limitações constitucionais ao Poder de Tributar" (conforme nosso Direito Financeiro e Tributário, 4ª ed., 1998, Atlas, p. 219).
Esses princípios, por representarem garantias fundamentais, não podem ser suprimidos por Emendas. Se o Excelso Pretório Nacional já sacramentou a tese de que a imunidade e o princípio da anterioridade não podem ser suprimidos por Emendas, porque constituem garantias fundamentais (Adin 939-DF, Rel. Min. Sydney Sanches, T. Pleno, RTJ-151/755) nada justifica a exclusão do rol de garantias fundamentais o secular e universal princípio da legalidade tributária, que é o mais importante de todos os princípios tributários, por ser matriz de outros tantos.
Dessa forma, não prospera, data venia, a argumentação do douto juiz Relator, que cassou a medida liminar, no sentido de que "em várias oportunidades o legislador constituinte não apenas indicou a regra matriz do tributo, mas estabeleceu elementos integrantes do próprio tipo tributário v.g. o disposto no art. 153, § 5º da Carta Constitucional".
Nessa linha de raciocínio poder-se-ia acrescentar outras hipóteses como, as do artigo 153, § 4º, 155, § 2º, I e da própria Emenda nº 12/96, que previu a instituição da CPMF com a alíquota máxima de vinte e cinco centésimos por cento. Ora, nessas hipóteses, a Carta Magna está desenhando para o legislador ordinário os limites do exercício da competência tributária, e não instituindo ou criando tributos que, repita-se, não é missão da Carta Magna. Essas hipóteses representam, por assim dizer, uma autêntica sublimitação do poder de tributar especificamente para aqueles impostos.
Como decorre do texto constitucional e do art. 97 do CTN, o tributo só pode ser criado por lei em sentido estrito. É o princípio da reserva legal que agasalha o princípio da tipicidade tributária, conferindo segurança jurídica, que é um dos direitos fundamentais do cidadão.
A instituição de tributos implica, necessariamente, descrição do fato gerador em todos os seus aspectos: o aspecto objetivo ou nuclear (descrição legislativa do fato tipificado); aspecto subjetivo (sujeitos ativo e passivo do tributo); aspecto quantitativo (base de cálculo e alíquota); aspecto espacial e aspecto temporal. Sem esses elementos não se pode ter como instituído ou criado determinado tributo, o que afasta a tese da possibilidade de a Constituição criar tributos. Aliás, essa tese só seria defensável dentro de um Estado unitário, jamais dentro de um Estado Federado como o nosso.
Poder-se-ia argumentar que a Emenda 21/99 prorrogou, em todos os seus termos a vigência da Lei nº 9.311/96, parcialmente alterada pela Lei nº 9.539/97, satisfazendo, desta forma, o princípio da estrita legalidade, porquanto, naquela lei estão previstos todos os requisitos para a instituição e arrecadação do tributo em tela. Ocorre que, quando promulgada a Emenda nº 21/99, em 18 de março de 1999, a Lei nº 9.311/96, parcialmente alterada pela Lei nº 9.539/97, não mais estava em vigor, porque a referida lei veio à luz para vigorar, exclusivamente, no lapso temporal autorizado pela norma constitucional (Emenda nº 12/96), que fixou prazo máximo de dois anos. Assim, a referida lei já nascera com carácter temporário por expressa determinação da Lei Maior.
Nos termos do art. 2º da LICC a lei vigora até que outra a modifique ou a revogue e, sendo a lei de vigência temporária, como no caso sob exame, sua vigência cessa ipso fato com o advento do termo final. De fato dispõe o citado dispostitivo:
Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 3º - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
Logo, quando a Emenda nº 21/99 dispôs que fica prorrogada a vigência da Lei nº 9.311/96, modificada pela Lei nº 9.539/97, caiu no vazio, porque não se pode prorrogar a vigência de algo que não está mais em vigor, por expressa determinação, repita-se, da norma constitucional que embasou a edição daquela lei. Dir-se-á que todos sabem que a intenção do legislador constituinte derivado foi a de prorrogar a cobrança da CPMF, devendo o texto da Emenda ser interpretado de acordo com essa vontade. Ocorre que a vontade do legislador não vincula e nem pode vincular a vontade da lei. Esta, depois de elaborada e promulgada passa a ter vontade própria, que pode não coincidir com aquela do legislador. A distinção entre a mens legislatoris e a mens legis é ponto pacífico nas doutrinas nacional e estrangeira. Do contrário, os legisladores seriam os intérpretes máximos do direito, e não os jurisconsultos.
Em termos de hermenêutica, não é possível conferir à expressão "cuja vigência é também prorrogada" o mesmo significado da expressão "fica renovada, restaurada ou reinstituída". De fato, prorrogar significa alargar o prazo que está prestes a vencer. Pressupõe a existência de um prazo que está fluindo; assim, prorrogar a vigência de uma lei pressupõe, necessariamente, que essa lei esteja em vigor no momento de sua prorrogação. Por outro lado, renovar, restaurar ou reinstituir é recompor ou restabelecer aquilo que já estava desfeito ou destruído; restaurar, reinstituir ou renovar determinada lei, pressupõe que a referida lei já tenha perdido sua vigência, quer pelo implemento da condição (lei de vigência temporária), quer pela sua revogação por lei posterior. Sob esse ângulo absolutamente irrelevante a distinção entre vigência de lei e sua existência. A vigência é uma qualidade da norma pertinente ao prazo de validade da lei. Dessa forma, uma lei que já perdeu a vigência, porque vencido o prazo de sua duração e por imposição constitucional, não pode ter prorrogada sua vigência. Nem mesmo na hipótese de perda de vigência de eventual lei revogadora, por si só, poderia restabelecer a lei antes revogada, ao teor do § 3º, do art. 2º da LICC, que veda os efeitos repristinatórios. Com muito maior razão, descabe prorrogar a vigência de uma lei que não mais vigora e que só pode ser restaurada ou reinstituída por uma outra lei.
Resta, agora, enfrentar a argumentação do douto juiz Relator que cassou a liminar, no sentido de que a "Lei nº 9.311/96 não pode em toda a sua extensão ser considerada transitória ou temporária, pois veicula normas que são aplicáveis como por exemplo as relativas ao procedimento administrativo para apuração do débito devido ou à administração dos recursos auferidos, ou seja, subsistem motivos secundários que tornam ainda útil a aplicação da lei, razão pela qual não se pode falar que a norma já não integra o ordenamento jurídico pátrio" (fls. 164). E prossegue, "apenas o art. 20 da Lei nº 9.311/96, modificado pelo art. 1º da Lei nº 9.539/97, deixou de viger, perdendo também a eficácia após o decurso do prazo neles previsto".
Na verdade, a lei em questão não contém qualquer dispositivo genérico de vigência indeterminada, mas, somente aquelas especificamente referidas à CPMF. Senão vejamos.
Os artigos 1º e 2º instituem a CPMF definindo o respectivo fato gerador; o art. 3º estabelece casos de não incidência tributária; o art. 4º define os contribuintes; o art. 5º define a responsabilidade pela retenção da CPMF; os arts. 6º e 7º definem a base de cálculo e a alíquota, respectivamente; o art. 8º prescreve a alíquota zero para os casos especificados; o art. 9º permite a alteração de alíquota por ato do Executivo, respeitado o teto constitucional; os arts. 10 a 16 e art. 19 versam sobre normas administrativas fiscais aplicáveis à CPMF; o art. 17 regula o endosso nos cheques, porém apenas para o período de vigência da CPMF; o art. 18 cuida da destinação do produto da arrecadação da CPMF; finalmente, o art. 20, alterado pela Lei nº 9.539/97, fixa período de vigência da CPMF pelo prazo máximo permitido pela Emenda nº 12/96, ou seja, até 23-01-99.
Como se vê, nenhum dispositivo genérico existe na citada lei. Todas as suas normas, sejam as de natureza material, sejam as de natureza instrumental estão especificamente voltadas para a CPMF e têm o âmbito de sua vigência vinculado ao prazo estabelecido no art. 20. Em 23-01-99 todas as normas da Lei nº 9.311 perderam vigência e conseqüentemente, eficácia e o poder coercitivo. Por isso, parte da doutrina, com muita razão, equipara perda de vigência à lei inexistente. Porém, essa discussão, como já visto, não tem pertinência com o exame desta questão sub judice.
Só para argumentar, ainda que pudesse vislumbrar na Lei nº 9.311/96 normas genéricas "que ainda hoje são aplicáveis", como dito pelo ínclito magistrado Relator do Agravo de Instrumento, a prorrogação só poderia alcançar essas "normas genéricas", jamais as específicas, voltadas para a CPMF, cujo prazo de vigência já havia se esgotado por ocasião do advento da Emenda nº 21/99.
Positivamente, falta a lei instituidora da CPMF, sem a qual nenhum tributo pode ser exigido.
Assim, sob qualquer prisma que se analise não é possível, dentro do nosso sistema jurídico-constitucional, sustentar a tributação que prescinda do princípio da legalidade tributária, que exige lei em sentido estrito em função do acolhimento, pelo Texto Magno, do princípio da tipicidade tributária, e que, por isso mesmo, se insere na categoria dos direitos e garantias fundamentais, que são insuprimíveis através de Emendas, na esteira do correto posicionamento adotado pela Corte Suprema.
Se a ausência de lei instituidora da CPMF foi veiculada por quase totalidade dos doutrinadores especializados, e reconhecida por centenas de liminares concedidas pelos mais diversos juízos, torna-se absolutamente incompreensível a inércia do governo em tomar a iniciativa de lei, instituindo o tributo, nos limites da autorização constitucional.
A proclamação de validade desse tributo, de origem ilegítima e eivado de vício formal insanável, só serviria para estimular o governo na ação de espraiar o germe da insegurança jurídica aos milhões de contribuintes que, ironicamente, se encontram sob a proteção do princípio da segurança jurídica (art. 5º da CF)), que se constitui em cláusula pétrea.
Pelas razões retro expostas e pelos judiciosos argumentos aduzidos na inicial, com propriedade, segurança e precisão impõe-se a imediata decretação de ilegalidade e de inconstitucionalidade da exigência, a partir do dia 24-01-1999, desse imposto sobre movimentação financeira, mascarado de contribuição, restabelecendo-se a bem fundamentada medida liminar concedida pelo E. juízo da 12ª Vara da Justiça Federal em São Paulo.
É o nosso parecer s.m.j.
São Paulo, 29 de julho de 1999.
Kiyoshi Harada
OAB/SP nº 20.317