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Lei de Responsabilidade Fiscal: pagamento de juros a banco em programa municipal de desenvolvimento rural

Agenda 01/05/2003 às 00:00

O parecer da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, além de interpretar o art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, aborda o tema da função estatal de fomento à iniciativa privada, desempenhada pelo Município, nos termos dos artigos 23, VIII, 30, II, e 174 da Constituição Federal.

PARECER 13.264

, em 3 de agosto de 2000. A aludida avença volta-se a tornar possível o financiamento, a título de incentivo dos pequenos produtores rurais, constante de programa instituído pela Lei Municipal 309, que o peticionário indica como sendo de 2000. Observa que todos os beneficiários teriam assinado o convênio (sic) com o banco após 4 de maio de 2000, data da Lei Complementar 101. Anexa à postulação a Lei Municipal em questão, o termo de acordo operacional e a relação dos beneficiados.

A primeira pergunta que há de estar pressuposta é se o Município poderia formular e executar um programa de desenvolvimento rural. Fui rastrear a orientação existente no âmbito administrativo: localizei o Parecer 9.767 – José Hugo de Castro Ramos, referente a financiamento agrícola concedido pelo Banco do Brasil S/A, tendo por objetivo o desenvolvimento da agricultura de municípios da região fronteiriça com a Argentina e o Uruguai. Não trata, portanto, da matéria que estou a examinar. O Parecer 12.798 – Maria Teresa Oltramari Velasques versa a competência do Estado em se tratando do fomento à produção agrícola embasado precisamente no artigo 23, VIII, da Constituição Federal, como obrigação indeclinável do Estado. Considerando que o aludido dispositivo constitucional versa competência comum da União, dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios e que, de acordo com o enunciado por MÁRIO LÚCIO QUINTÃO SOARES, "a competência comum é aquela atribuída a todos os entes federativos, de forma equânime aos titulares, visando o desenvolvimento de certas funções administrativas" [Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 466], é evidente que para o exercício desta competência, o ente deve poder legislar, sob pena de se reduzir a trociscos o princípio da legalidade, aplicável também em se tratando de fomento, consoante firmado por esta Casa no Parecer 12.517 – Ricardo Camargo e nas Informações 27/99 – GAB – Ricardo Camargo e 01/00 – CS – Ricardo Camargo. Sendo o fomento à produção agrícola competência atribuída também aos Municípios, estes podem adotar política econômica própria com este objetivo, com o que se tem, aqui, uma das hipóteses em que os Municípios podem legislar sobre matéria de Direito Econômico, que, em princípio, estaria no âmbito competencial da União, dos Estados e do Distrito Federal (Constituição Federal, artigo 24, I). Aliás, a possibilidade, inclusive, de o Município atuar no âmbito da suplementação da matéria que recaia na competência legislativa concorrente de União, Estados e Distrito Federal, com fulcro no artigo 30, II, da Constituição Federal, foi reconhecida no Parecer 10.660 – Luiz Carlos de Souza Leal. Alguma doutrina a respeito do tema foi transcrita na defesa apresentada pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral do Estado do Rio Grande do Sul e pelo signatário na ação direta de inconstitucionalidade 70001136878, ajuizada pela Associação Gaúcha dos Supermercados – AGAS contra lei do Município de Porto Alegre:

"os Municípios, por força do art. 30, II, da Constituição Federal detêm competência para suplementarem, no que couber, a legislação federal e estadual em qualquer matéria, inclusive de consumo. Caberia lembrar com WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA que ‘o Município não foi nominalmente incluído entre os órgãos competentes para legislar sobre ‘normas gerais’, apesar de enfrentar problemas de política econômica que lhe são peculiares. Entretanto, a leitura do art. 30 da Constituição Federal lhe dá competência para resolver problemas de interesse local (art. 30, I) e ‘suplementar a legislação federal e a estadual no que couber’ (art. 30, II). Podemos deduzir que a política econômica municipal, em consonância com as normas estaduais e federais, também possa por esse caminho ser legislada" (Primeiras linhas de Direito Econômico. 4ª ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 162).(...) Os Estados-Membros podem perfeitamente detalhar as normas gerais – aliás, a eles é que compete, preferencialmente, nas matérias de competência concorrente, a disciplina, porquanto a competência da União se limitaria, no caso, à edição de normas gerais, por força do art. 24, § 1º, da Constituição Federal -. Aos Municípios, consoante dito anteriormente, compete suplementar, no que couber, a legislação federal e estadual. Ou, como melhor disse RAUL MACHADO HORTA, ‘a posição que o Município assumiu na composição da República Federativa aconselha a que se abra ao Município uma participação explícita em determinadas matérias da legislação concorrente, indicando caso a caso essa matéria na competência suplementar dos Municípios (art. 30, II)’ (Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Del Rey, 1999, p. 470). Mais claro ainda, JOSÉ AFONSO DA SILVA ‘o art. 30 da Constituição já discrimina as bases da competência dos Municípios, tais como (...) suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; aí, certamente, competirá aos Municípios legislar supletivamente sobre: (...) responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico local’ (Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 623)".

Pode-se trazer à baila a contribuição de CELSO RIBEIRO BASTOS: "é dentro das matérias arroladas no art. 24 que poderá haver atividade supletiva do Município" [Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1993, v. 3, t. 2, p. 227]. Relembre-se, contudo, o alerta de PINTO FERREIRA [Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 2, p. 278] – "suplementar significa suprir as lacunas, deficiências ou vazios existentes na legislação federal ou estadual" –, com o que descaberia aos Municípios editar normas a título de "suplementação" que, em realidade, implicassem um contraste com a legislação federal ou estadual incidente à espécie, consoante decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ao expungir por inconstitucionalidade lei municipal que autorizara o cultivo de plantas transgênicas [Ação direta de inconstitucionalidade 70000512939. Relatora: Desª Maria Berenice Dias. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 203: 260-261].

Saliente-se que a Lei Municipal reproduzida no expediente – a Lei 309 – está datada de 21 de março de 1997. Portanto, parece-me que o programa já existia antes do ano eleitoral. A lei em questão, depois de vincular o Programa à Secretaria Municipal da Agricultura, confere ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Agropecuário – CONDAMAT, a competência para priorizar as atividades a serem beneficiadas dentro dos recursos cabíveis (artigo 1º, § 1º). Como objeto do financiamento, colocam-se os pequenos empreendimentos rurais (artigo 1º, § 2º, I), programas de apoio e incentivo às atividades pecuárias que especifica (artigo 1º, § 2º, II, "a" a "d"), programas de infraestrutura (artigo 1º, § 2º, III), estruturação de viveiros de mudas frutíferas e plantas exóticas, bem como o subsídio parcial destas, quando repassadas ao produtor (artigo 1º, § 2º, IV). O artigo 2º define as fontes de recursos para o programa. O artigo 3º define como habilitados a postularem os benefícios do programa os pequenos produtores rurais, individualmente ou organizados em grupos, proprietários ou não, que atendam os seguintes requisitos: serem, em caráter individual ou conjunto, com os dependentes, possuidores de terras agricultáveis e residência no estabelecimento ou em comunidades rurais. O artigo 4º estabelece como prioritário no recebimento dos financiamentos a que se refere a lei municipal em questão os pequenos empreendimentos rurais até o valor equivalente a quinhentos sacos de milho de sessenta quilos, a preços oficiais estabelecidos pelo Governo Federal e, quando se tratar de grupos de produtores rurais ou de associações, o limite é também este valor, por integrante dessas mesmas coletividades. Pelo artigo 5º, o pagamento se há de fazer pelo sistema equivalência/produto. Pelo artigo 6º, a amortização dos financiamentos deve ser feita conforme determinado por cada programa dentro do projeto técnico, no prazo máximo de cinco anos. No parágrafo único deste mesmo artigo, no caso de o tomador abandonar a atividade, é estabelecido como pena o vencimento antecipado da dívida, incluindo juros e correção monetária pelos índices oficiais. O artigo 7º determina que, após a liberação dos recursos, sejam lavrados mais dois laudos de supervisão, assistência técnica e avaliação da respectiva aplicação, de acordo com programas e planejamento/projeto técnico. O artigo 8º atribui ao COMDAMAT competência para estabelecer o número de parcelasm as datas de vencimento e a forma de pagamento dos recursos proporcionalmente dentro dos limites estabelecidos no artigo 6º e o permitido pela Secretaria Municipal da Agricultura. O artigo 9º determina que o pagamento se faça diretamente na Secretaria Municipal da Fazenda, nos prazos estabelecidos nos artigos 6º e 8º. No § 1º, é estabelecido que, no caso de inadimplência, será feita a aplicação de juros moratórios de 12 % (doze por cento) ao ano, acrescidos de multa de 10% sobre o saldo devedor, devidamente corrigido até a data do efetivo pagamento, após o 16º dia do início da inadimplência. O § 2º estabelece para o mutuário a obrigação de, em caso de incapacidade de pagamento ou solicitação de prorrogação, comunicar o COMDAMAT, com antecedência mínima de 30 dias, mediante laudo técnico, competindo, em caso de prorrogação, à Secretaria Municipal da Agricultura examinar a proposta. O artigo 10 exige que, para a garantia do financiamento, o proponente oferte em hipoteca ou penhor bens de sua propriedade "de valor mínimo e equivalente ao do financiamento". O artigo 11 põe o parecer favorável da Secretaria Municipal da Agricultura como pressuposto de qualquer liberação dos recursos do PRODART. Pelo artigo 12, deve a Secretaria Municipal da Fazenda manter os controles contábeis e financeiros de movimentação dos recursos do PRODART, que, pelo § 1º, devem ser depositados em conta especial, em estabelecimento de crédito, conforme determinar o regulamento e, de acordo com o § 2º, obedecida a programação financeira, previamente aprovada, o excesso de caixa existente deve ser aplicado no mercado de capitais mediante banco oficial, não se admitindo a aplicação em bancos privados. O artigo 13 estabelece que os financiamentos sejam liberados pelo Prefeito Municipal, em moeda corrente, diretamente, aos que os requeiram, em conformidade com o artigo 10, sendo que o parágrafo único põe como conseqüência da liberação a necessidade de assinatura de contratos ou respectivas garantias. O artigo 14 exige que, a cada final de semestre civil, seja elaborado relatório de atividades do Programa Rotativo a ser apresentado para apreciação do COMDAMAT. O artigo 15 dá ao produtor que não adquirir financiamento por este programa e instalar um aviário, nos padrões técnicos determinados, direito à doação da Prefeitura Municipal de doze mil telhas de barro, tela e cortina externa, obedecido o disposto na lei ora resenhada sobre liberação de recursos. No § 1º, para o caso de o produtor optar por pocilga, ao invés de aviário, assiste-lhe o direito de obter, obedecidos os condicionamentos estabelecidos no caput, até quatro mil telhas de barro, vinte sacos de cimento e vinte metros cúbicos de pedra grês. O § 2º, para o caso de construção de Unidades Produtivas de Leitões – UPLs – de acordo com padrões técnicos estabelecidos, autoriza que o Programa subsidie até 15% do custo do investimento, além da terraplanagem. Pela lei em questão, como se pode ver, o titular do crédito é o Município, sendo devedor o produtor rural beneficiário.

Poderia gerar, talvez, a quem lembre que o direito das obrigações está sob a competência legislativa da União Federal, nos termos do artigo 22, I, da Constituição Federal, alguma perplexidade o disposto no parágrafo único do artigo 6º do diploma municipal trazido ao exame desta Casa. Contudo, é de se lembrar que o aludido dispositivo nada mais faz do que reproduzir o que se contém no artigo 762 do Código Civil, que merece os seguintes comentários de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: "independentemente de estipulação, dar-se-á o vencimento (Cód. Civil, art. 762) nos casos legais" [Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. 4, p. 226]. A dívida pode, no escólio de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, "ser exigida pelo credor antes de vencido o termo, desde que ocorra uma das causas de vencimento antecipado" [Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1970, v. 3, p. 339]. Consoante observa EDUARDO ESPÍNOLA, "o credor, ao convencionar com o devedor uma garantia real, deixa ver que não julga suficiente para assegurar a satisfação do seu crédito a idoneidade pessoal do mesmo devedor" [Os direitos reais limitados e os direitos reais de garantia no Direito Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Conquista, 1958, p. 318]. E, como bem diz SÍLVIO RODRIGUES, "considera-se vencida, desde logo, a dívida, para que o credor possa, enquanto é tempo e antes que se agrave a situação do devedor, recorrer ao processo de execução" [Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1978, v. 5, p. 325]. Louvou-se o douto Catedrático da Universidade de São Paulo na lição do CONSELHEIRO LAFAYETTE: "nas obrigações de dinheiro, a termo, é muito usual estipular-se o pagamento por parcelas, em prazos determinados. (...) Mas se uma obrigação estipulada na dita forma é garantida por hipoteca, poderiam ocorrer na execução dificuldades graves. (...) Para obviar a estas dificuldades práticas, a lei tomou o alvitre de declarar vencida a dívida toda, se alguma das prestações se vence e não é paga" [Direito das cousas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 511-512]. É de se salientar, aqui, que a exigência de garantia decorre do dever do administrador público zelar pelo patrimônio que não lhe pertence. Na Informação 27/99 – GAB – Ricardo Camargo esta obrigação foi amplamente analisada, inclusive à luz do disposto no inciso VI do artigo 10 da Lei 8.429, de 1992, que qualifica como improbidade administrativa a realização de operações financeiras sem garantia suficiente ou idônea, com transcrição da doutrina pertinente. Quanto ao vencimento antecipado e a impossibilidade da sua previsão válida em contratos em que figure o Poder Público enquanto devedor, dada a existência de vinculações constitucionais a determinadas receitas orçamentárias (Constituição Federal de 1988, artigos 100, 199, 212 e.g.), esta Casa já se pronunciou no Parecer 12.689 – Ricardo Camargo, onde se acha transcrita a petição inicial da ação cível originária 548/RS.

O artigo 9º da Lei Municipal em questão, outrossim, ao estabelecer, no caso de se apresentar o beneficiário incapaz de pagar ou de ele vir a solicitar prorrogação, a necessidade de proceder à comprovação, mediante laudo técnico, da razoabilidade de sua postulação, longe de traduzir um entrave burocrático desnecessário, volta-se não apenas à garantia da lisura da aplicação de recursos públicos como também a possibilitar, o mais possível, que se verifiquem as situações aptas a evitar que os desequilíbrios econômicos alijem os interessados dos resultados a que se propõe a política de fomento à produção no setor rural a que se refere o diploma municipal.

O artigo 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal – a Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000 – contém proibição a que o Chefe do Executivo, nos últimos oito meses de mandato, contraia obrigação que não possa pagar no mesmo ano ou, caso parcelada, que não possa ser atendida durante o exercício seguinte em sua totalidade [ANA CRISTINA PELICIOLI. Revista de Informação Legislativa. 146:116; CÉSAR A. GUIMARÃES PEREIRA. O endividamento público na Lei de Responsabilidade Fiscal. In: PLURES. Aspectos relevantes da Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001, p. 103]. Consoante CARLOS PINTO COELHO MOTTA, "deve ser considerado ‘disponibilidade de caixa’ o montante que remanesce disponível após a execução contábil dos encargos e despesas, compromissados a pagar até o final do exercício" [Abordagens da Lei de Responsabilidade Fiscal. In: PLURES. Lei de Responsabilidade Fiscal – abordagens pontuais. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 96]. Aclara ainda FLÁVIO TOLEDO DE CORRÊA JÚNIOR, em relação à disponibilidade de caixa que "mesmo as parcelas a serem quitadas no exercício seguinte deverão, também elas, estar provisionadas, isto é, ter amparo de caixa em 31 de dezembro" [Revista do TCU 85:49-50]. O Manual da Lei de Responsabilidade Fiscal confeccionado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul também aponta neste sentido: "os chamados restos a pagar, os quais se destinam ao registro dos valores cuja despesa não pôde ser realizada ou paga até o término de um exercício, devem ter a devida provisão de recursos financeiros, arrecadados no exercício de sua inscrição, para seu pagamento na época oportuna" [Interesse Público. 8:170]. A finalidade da norma é bem explicitada por FLÁVIO RÉGIS XAVIER DE MOURA E CASTRO: "inibe a prática adotada por determinados gestores de assumir compromissos sem a correspondente contrapartida financeira" [Apontamentos sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. In: PLURES. Apontamentos sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Belo Horizonte: ATRICON, 2000, p. 17]. É lição conhecida de HELY LOPES MEIRELLES, antes mesmo de entrar em vigor a atual Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, "as obras e serviços públicos, antes de sua contratação, devem ter os recursos financeiros adequados à realização da despesa que o contrato irá acarretar no exercício de sua execução" [Direito Municipal brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 293]. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR é mais enfático, embora referindo-se com acrimônia ao artigo 7º da Lei 8.666, de 1993: "se a entidade pública não tiver recursos financeiros disponíveis próprios para a execução do objeto da licitação, não haverá ‘obras’, nem ‘serviços’, nem ‘fornecimento’" [Das licitações públicas. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 129]. CARLOS ARI SUNDFELD: "é requisito prévio de todo contrato do qual resulte despesa para a Administração a existência de recursos para suportá-la" [Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 225].

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O convênio está datado de 13 de abril de 2000. É, portanto, anterior à Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000. O atendimento dos juros é obrigação do Município que pre-existiria à adesão dos produtores rurais ao programa em questão. Assim, a conclusão que, lastreada no artigo 42 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, respondesse negativamente à pergunta a respeito da necessidade de serem ou não satisfeitos os aludidos encargos financeiros daria ao aludido dispositivo da Lei Complementar 101 interpretação que o tornaria inconstitucional por placitar retroatividade apta a destruir os efeitos de ato jurídico perfeito, resguardado pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Este, aliás, é o entendimento dos assessores jurídicos da FAMURS ARMENIO DE OLIVEIRA DOS SANTOS, ELENA PACITA LOIS GARRIDO & MARGERE ROSA OLIVEIRA [Revista de Estudos Tributários. 16:136]. Do mesmo sentir é CÉSAR A. GUIMARÃES PEREIRA [O endividamento público na Lei de Responsabilidade Fiscal. In: PLURES. Aspectos relevantes da Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Dialética, 2001, p. 70]. À época em que celebrada a avença em questão estava em vigor o artigo 59 da Lei 4.320, de 1964, que, de acordo com MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, estabelecia limitações "específicas para os Municípios. Em seu § 1º, vedava-se a estes empenhar mais do que o duodécimo da despesa prevista no último mês do mandato do Prefeito" [Arts. 40 a 47. In: PLURES. Comentários à lei de responsabilidade fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 310]. O caráter de ius novum ostentado pelo artigo 42 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, a abranger não só a situação regulada pelos §§ do artigo 59 da Lei 4.320, de 1964, como também pessoas políticas não mencionadas neles é salientado por HÉLIO SAUL MILESKI: "da legislação complementar editada constam vários regramentos inovadores e afetos à moralidade pública, como, por exemplo, (...) vedação ao governante, nos dois últimos anos, de contrair obrigação de despesa que não possa ser integralmente cumprida dentro dele" [Interesse Público. 7:55]. O que incidia, à época, e continua em vigor, é o artigo 57 da Lei 8.666, de 1993, que, a respeito da duração dos contratos administrativos. JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR: "os créditos orçamentários são anuais; em cada contrato é obrigatória a inserção de cláusula que identifique o crédito orçamentário que responderá pelas respectivas despesas (art. 55, V); logo, como regra geral, a duração dos contratos também será ânua" [Comentários à lei de licitações e contratações da administração pública. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 359].

Entretanto, existem outras questões que podem ser trazidas ao debate. Em primeiro lugar, se o atendimento da obrigação seria possível. Como diz PONTES DE MIRANDA, "o devedor somente é obrigado a prestar se, in concreto, há possibilidade, segundo a concepção do tráfico" [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, t. 23, p. 105]. O antigo Tribunal de Apelação do Estado de São Paulo, em 12 de setembro de 1944, teve a oportunidade de confirmar a sentença do Juiz Pedro Augusto do Amaral, que, louvada em lição de Lacerda de Almeida, caracterizou a possibilidade da prestação como elemento essencial à formação do contrato [Apelação 22.908. Revista dos Tribunais. 161:127-130]. A possibilidade, de acordo com VICENTE RÁO, diz respeito, de um modo geral, a "tudo quanto as forças humanas permitem realizar, ou tudo quanto pode realizar-se de acordo com as leis da natureza" [Ato jurídico. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 153]. Claro que a definição posta pelo saudoso Professor paulista diz respeito à impossibilidade física, já que a impossibilidade, em direito, foi melhor definida por CLÓVIS BEVILAQUA, ao tratar das condições, dizendo que "são possíveis as que se podem realizar segundo as leis da natureza ou de acordo com as prescrições do direito" [Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1979, v. 1, p. 368]. Tratando do mesmo assunto, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA observa que a condição se diz "possível, quando o acontecimento é realizável física e juridicamente, impossível, quando não pode, pela própria natureza das coisas, verificar-se, ou for proibida pelo direito"[Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1994, v. 1, p. 356]. CARLOS ALBERTO DABUS MALUF considera como impossível o "acontecimento cuja realização é física ou juridicamente inatingível" [As condições no Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p.42]. ARNALDO RIZZARDO considera "impossível o objeto quando fora do comércio ou inatingível" [Da ineficácia dos atos jurídicos e da lesão no direito. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 15]. Impecável a definição de impossível posta por JOSÉ CRETELLA JÚNIOR: "o objeto é impossível quando o ato é produzido para obter algo que não é realizável de fato ou de direito" [Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 258]. O CONSELHEIRO RIBAS arrola dentre as condições impossíveis aquelas "cujo preenchimento excederia as proporções ordinárias entre os meios e os fins, considerando em geral e não em relação a indivíduo determinado" [Direito Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Rio, 1977, p. 482]. É que, como se sabe, ninguém está obrigado ao impossível, e a impossibilidade, que poderia não existir aos tempos em que celebrada a avença, pode vir a existir em momento posterior. A regra do nemo tenetur ad impossibilia era já adotada no Direito Romano, e não constitui inovação na teoria jurídica. MARIA HELENA DINIZ refere-se a esta regra como cristalização histórica de um princípio geral do direito [Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 422]. O Supremo Tribunal Federal também já consignou que "AD IMPOSSIBILIA NEMO TENETUR" [RE-108183 . Relator: Min Moreira Alves. DJU 2 out 1987]. Neste ponto, acolhe-se, também, lição de ALMIRO DO COUTO E SILVA: "a impossibilidade, jurídica ou física, impediria, porém, em qualquer hipótese, que o contrato fosse adimplido" [Revista de Direito Administrativo. 217:169]. ANTÔNIO CHAVES, a este respeito, distingue entre a impossibilidade originária e a superveniente: "Quanto à impossibilidade, pode ser originária, caso em que se impede a formação do próprio vínculo obrigacional, ou superveniente, caso em que não dependendo de culpa do devedor, extingue-o" [Tratado de Direito Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, v. 3, p. 541]. E ainda, analisando as impossibilidades originária e superveniente, ensina CLÓVIS DO COUTO E SILVA que "ambas podem ser absolutas ou relativas. Diz-se que a impossibilidade é relativa quando falta ao devedor meios para prestar; tem aí o significado de ‘insolvência’ (‘Unvermögen’) – o bem não está no patrimônio. A impossibilidade absoluta o é para todos; nem ‘A’ nem ‘B’ nem ‘C’ nem qualquer outra pessoa pode prestar. A impossibilidade ocorre sem culpa ou com culpa do devedor ou do credor" [A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 121]. Ainda, é preciso que a impossibilidade não seja decorrente de fato imputável àquele que por ela seria favorecido, para exculpar o não atendimento da obrigação (Código Civil Brasileiro, artigos 865, 869, 870, 879 e 1091). J. M. CARVALHO SANTOS, a propósito, observa que "essencial para que a impossibilidade superveniente produza tal efeito é que não seja imputável ao devedor, mas provenha de circunstância estranha à sua vontade" [Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1978, v. 15, p. 210]. CLÓVIS BEVILAQUA vai por semelhante diapasão: "a regra é que a impossibilidade da prestação impede a formação do vínculo; ocorrendo, depois, sem culpa do devedor, extingue a obrigação, e, havendo culpa do devedor, este responde por perdas e danos" [Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Rio, 1979, v. 2, p. 207]. PONTES DE MIRANDA também salienta que "se a impossibilidade, superveniente à conclusão do negócio jurídico, não é imputável ao devedor, ele se libera" [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959, t. 25, p. 211]. WERTER FARIA é claríssimo na caracterização da impossibilidade juridicamente relevante em prol do obrigado: "independentemente da origem, a impossibilidade deve ser alheia à vontade do obrigado, anular seus esforços para o cumprimento da obrigação e impedir que a execute" [Mora do devedor. Sérgio Antônio Fabris, 1981, p. 29]. [RT 598:123]. Também no âmbito do denominado Direito Público, HELY LOPES MEIRELLES tratou da matéria: "quando sobrevêm eventos extraordinários, imprevistos e imprevisíveis, onerosos, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, a parte atingida fica liberada dos encargos originários e o contrato há de ser revisto ou rescindido" [Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 204]. Esta Casa teve a oportunidade de desenvolver com maior profundidade esta tese na Informação 27/99 – GAB – Ricardo Camargo, onde se caracterizou como juridicamente impossível o atendimento de obrigação contratual que implicasse a preterição de deveres heteronomamente impostos ao Poder Público e dos quais não pode ele pretender desvencilhar-se e, por outro lado, ainda que se pudesse ter por válido o ajuste, estava-se diante de contrato bilateral em que a outra parte não havia, ainda, atendido à obrigação que lhe cabia para poder formular qualquer exigência em relação ao Estado, com o que não se contrapõe a tese sustentada no presente Parecer em nada ao que foi debatido naquela Informação. De outra parte, é de se fazer a distinção, quando se trate de impossibilidade, entre impossibilidade permanente – que implica resolução da obrigação – e impossibilidade temporária – que implica, apenas, a suspensão da respectiva eficácia -. Como ensina J. M. CARVALHO SANTOS, "a impossibilidade pode ser transitória, pode cessar. Neste caso, ela será apenas um impedimento" [Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1976, v. 11, p. 85]. PONTES DE MIRANDA, por seu turno, observa que "se é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá. Enquanto tal mudança é de esperar-se, nem incorre em mora o devedor, nem, a fortiori, se extingue a dívida" [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959, t. 25, p. 212]. É, por exemplo, o caso das limitações postas pelo artigo 169 da Constituição Federal e pelo artigo 19 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, em relação a leis que determinem o aumento de despesa com pessoal, já analisadas no Parecer 12.845 – Ricardo Camargo e na Informação 23/00 – GAB – Ricardo Camargo: as leis que concedam reajustes e aumentos enquanto ultrapassados os limites definidos na Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000 não serão nulas, mas serão ineficazes, maculando-se de nulidade, antes, nos termos do artigo 21 da mesma Lei Complementar 101, o ato administrativo que determinar-lhes os pagamentos respectivos. De qualquer sorte, quando não se verifique a impossibilidade jurídica ou física – dado fáctico, dependente de reconstituição –, em princípio o ato há de se ter como válido e eficaz. As exigências de estabilidade impõem que, na dúvida, seja adotada a tese que conduza à eficácia ou, pelo menos, à validade não só dos atos como das próprias leis. Por vários motivos: 1) a conduta anormal não se presume, prova-se a sua existência. Trata-se do mesmo fundamento para se adotar em relação a todos os cidadãos, sejam eles quem forem, a presunção de inocência; 2) os atos legislativos, por emanados pelos representantes do povo, merecem respeito enquanto expressão da vontade geral, com o que a melhor interpretação será a que lhes preservar a possibilidade de produzir efeitos; 3) nenhuma das partes da relação jurídica disciplinada nos atos legislativos estaria segura da medida dos seus direitos e deveres se tais atos pudessem ser facilmente arredados da ordem jurídica, isto é, nenhuma das partes estaria segura da respectiva situação jurídica.

WELLINGTON PACHECO BARROS considera esta uma regra clássica de interpretação: "quando a interpretação é susceptível de dois sentidos, deve ser entendida naquele em que ela pode ter efeito e não no que não pode ter efeito algum" [Ajuris. 49:81].

ALÍPIO SILVEIRA, em obra clássica, diz: "todas as palavras da lei têm seu significado, sua função, sua finalidade. Por isso mesmo, na lei não se presumem frases supérfluas. O intérprete deve dar efeito – sempre que possível – a cada uma das palavras da lei" [Hermenêutica no Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, v. 1, p. 28].

GILMAR FERREIRA MENDES assinala: "axioma incorporado do Direito americano recomenda que, em caso de dúvida, deve-se resolver pela legitimidade da lei, em homenagem ao princípio da presunção de constitucionalidade" [Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 284].

PAULO BONAVIDES, consoante os anteriores: "presume-se, pois, da parte do legislador, como uma constante ou regra, a vontade de respeitar a Constituição, a decisão de não infringi-la. A declaração de nulidade da lei é o último recurso de que lança mão o juiz quando, persuadido da absoluta inconstitucionalidade da norma, já não encontra saída para salvá-la" [Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993, p.433].

JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, em sua tese para o ápice da carreira acadêmica, assevera que "os atos públicos devem ser presumidos como constitucionais, desde que razoável interpretação possa conciliá-los com o texto maior" [Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 360].

CARLOS MAXIMILIANO, no mesmo sentido: "todas as presunções militam a favor da validade de um ato, legislativo ou executivo; portanto se a incompetência ou a falta de jurisdição ou a inconstitucionalidade em geral não estão acima de qualquer dúvida razoável, interpreta-se e resolve-se pela manutenção do deliberado por qualquer dos três ramos em que se divide o poder. Entre duas exegeses possíveis, prefere-se a que não infirme o ato de autoridade" [Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 307].

MÁRIO LÚCIO QUINTÃO SOARES, a demonstrar que esta doutrina segue sendo aplicada nos países que integram sistemas semelhantes ao nosso: "em caso de normas polissêmicas ou plurissignificativas, deve dar-se preferência à interpretação que proporcione um sentido em conformidade com a Constituição" [Direitos fundamentais e Direito Comunitário – por uma metódica dos direitos fundamentais aplicada às normas comunitárias. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 121].

Veja-se RUY BARBOSA, com a autoridade que lhe confere o fato de haver introduzido, quando da elaboração do texto da Constituição de 1891, a possibilidade do exercício, pelo Judiciário, do controle de constitucionalidade das leis: "declarar a nulidade, isso fazem os tribunais legitimamente a respeito de leis ordinárias, quando inconciliáveis com a lei fundamental. Em tais casos, declarar nula uma lei é simplesmente consignar a sua incompossibilidade com a Constituição, lei primária e suprema" [Comentários à Constituição Federal brasileira. São Paulo: Saraiva, 1933, v. 4, p. 373]. Isto é: quando possível a conciliação, não se declara a inconstitucionalidade.

O CONSELHEIRO RIBAS, embora se referindo aos atos jurídicos de direito privado, enuncia a regra com plena aplicabilidade ao exame da validade das leis: "deve-se preferir a inteligência que faz valer o ato à que o torne insubsistente" [Direito Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Rio, 1979, p. 507].

TEIXEIRA DE FREITAS, tendo o mesmo referencial que o anterior jurisconsulto: "quando uma cláusula for suscetível de mais de um sentido, deve interpretar-se naquele que possa ter algum efeito, de preferência à inteligência em que nenhum possa ter efeito" (Vocabulário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1983, v. 1, p. 156).

De outra banda, o artigo 5º da Lei 8.666, de 1993 manda que os pagamentos relativos a obrigações concernentes a fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços obedeça, para cada fonte de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de exigibilidade, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público. Fui rastrear os posicionamentos da Casa sobre o tema e não encontrei nenhum. JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR observa que , tratando da hipótese que excepciona a regra da observância da ordem cronológica para se efetuar o pagamento, a lei, "ao exigir justificativa prévia e publicada, está a indicar que a exceção vinculará o administrador a razões que explicitará, entendendo-se-as como os motivos determinantes do ato, que deverão ser verazes, sob pena de invalidação" [Comentários à lei de licitações e contratações da administração pública. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 43-44]. A aferição da observância da ordem cronológica se faz mediante prova documental, de acordo com o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça [RMS 9.745. Relator: Min. Ari Pargendler. DJU 14 set 1998], ao passo que, não sendo esta observada, hão que estar devidamente declinadas as razões de fato que autorizem a quebra desta ordem. Até porque, como lembra JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "é crime, que afeta o procedimento licitatório (...) pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua apresentação" [Das licitações públicas. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 335], definido no artigo 92, caput, da Lei 8.666, de 1993, mister se faz ter presentes as palavras de CARLOS ARI SUNDFELD: "o dever de observar a fila existe para todos os débitos contratuais da administração, inclusive, por óbvio, os decorrentes de ajustes celebrados sem licitação" [Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 234].

O instrumento trazido ao exame desta Casa – convênio celebrado entre a Cooperativa de Crédito Rural – SICREDI e a Prefeitura Municipal – nada refere quanto a estar ou não ligado ao Programa veiculado pela Lei Municipal 309. Aliás, quanto a esta, é interessante verificar que se dirige ao produtor individualmente organizado ou em grupos, nada esclarecendo se estes seriam personalizados ou destituídos de personalidade. Posta, porém, como requisito a posse de terras agricultáveis, é evidente que a convenente não seria beneficiária do programa em questão. Embora em matéria possessória tudo seja objeto de francas controvérsias, há um ponto que se mostra pacífico, qual seja, o de que não se pode desconsiderar o elemento fáctico na caracterização da posse. Alguns dizem que se trata meramente de um fato, outros a vêem como fato e direito, mas o caráter de fato ninguém ousa sonegar-lhe. Como alerta o Ministro JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, "ninguém nega – negá-lo seria negar a evidência – que a posse seja um estado de fato disciplinado pelo direito" [Posse. Rio de Janeiro: Forense, 1990, v. 2, t. 1, p. 80 – grifou-se]. Antes de entrar em vigor o Código Civil, o CONSELHEIRO LAFAYETTE dizia que "a posse é um fato e um direito – um fato no que respeita à detenção, um direito por seus efeitos" [Direito das cousas. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940, p. 31 – grifou-se]. Já à luz do artigo 485 do Código Civil, CLÓVIS BEVILAQUA: "a posse, considerada em si mesma, funda-se em um mero fato e se apresenta como um estado de fato; mas, uma vez firmada, nela a ordem jurídica, em atenção à paz social e à personalidade humana, respeita o que ela apresenta ser, reconhece o jus possessionis, o direito de posse que os interditos defendem" [Direito das coisas. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, (s/d), v. 1, p. 39 – grifou-se]. Outro clássico, TITO FULGÊNCIO: "a posse é poder de fato,. Instaura-se pelo exercício de fato de algum poder de domínio" [Da posse e das ações possessórias. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v.1, p. 12 – grifou-se]. PONTES DE MIRANDA também enfatiza que "para a teoria da posse, segundo os arts. 485-523, o que importa é a senhoria da coisa (pot, sedere), o estado de fato, a situação real, o poder fáctico sobre a coisa" [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, t. 10, p. 13 – grifou-se]. ORLANDO GOMES, por seu turno, chama a atenção para a relevância do elemento fáctico na posse: "a posse existe como um todo unitário. É sempre um poder de fato, que corresponde ao exercício de uma das faculdades inerentes ao domínio" [Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 36]. SÍLVIO RODRIGUES, por sua vez, também mostra ser impensável a posse sem a consideração da situação de fato: "a posse é mero estado de fato que a lei protege em atenção à propriedade, de que ela é a manifestação exterior" [Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1978, v. 5, p. 22 –grifou-se]. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA também mostra o rematado absurdo que seria desprezar o aspecto fático na caracterização da posse: "nascendo a posse de uma relação de fato, converte-se de pronto numa relação jurídica" [Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. 4, p. 22]. O saudoso LENINE NEQUETE também aponta para a essencialidade do elemento fáctico: "a posse (...) merece ser protegida, não para dar ao possuidor a alta satisfação de ter o poder físico sobre a coisa, mas para tornar possível o uso econômico da mesma, relativamente às suas necessidades" [Da prescrição aquisitiva (usucapião). Porto Alegre: AJURIS, 1981, p. 128]. TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO, à sua vez, também à luz do artigo 485 do Código Civil brasileiro, coloca a indissociabilidade entre o elemento fáctico e a posse: "no direito nacional, a posse, inspirada na doutrina objetiva de RUDOLF VON JHERING, é a exteriorização da propriedade (art. 485 do Código Civil), mas não é necessariamente propriedade, eis que se diferenciam. Enquanto a propriedade tem a natureza de direito, aquela se embasa num fato que pode estar assentado ou não no exercício de um direito subjetivo" [Usucapião. Rio de Janeiro: Aide, 1984, p. 78]. E não é qualquer posse o substrato do direito à habilitação, mas sim a posse que seja exercida coerentemente às finalidades do programa em questão. Por quê? Simplesmente porque a congruência entre o meio utilizado pelo Poder Público e o fim perseguido é fator relevante na verificação da validade de toda a atuação administrativa, como se vê da interpretação do artigo 2º, "e", da Lei Federal 4.717, de 1965.

Também não pode ela ser o estabelecimento de crédito depositário das disponibilidades de caixa para o programa a que se refere o § 1º do artigo 12 da Lei Municipal 309, de 1997, quer por causa do que dispõe o artigo 43, caput, da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, quer por causa do que dispõe o artigo 164, § 3º, da Constituição Federal. certo, tanto o artigo 43 da Lei de Responsabilidade Fiscal quanto o artigo 164, § 3º, da Constituição Federal são polêmicos, quanto ao sentido da palavra "oficial". A corrente majoritária na doutrina entende que instituição financeira "oficial" seja "estatal". JOSÉ AFONSO DA SILVA é categórico: "são públicas (ou oficiais) as instituições financeiras instituídas pelo Poder Público" [Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 702]. CARLOS VALDER DO NASCIMENTO observa que "tais instituições públicas são aquelas que atuam como órgãos auxiliares da execução da política de crédito do governo" [Finanças públicas e sistema orçamentário constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 21]. JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, embora lamentando o caráter estatizante do dispositivo, observa que "o legislador constituinte fortaleceu, assim, a atuação do Banco Central, (...) sobrepondo-a à dos bancos privados e a dos bancos estaduais, priorizando os depósitos das pessoas jurídicas públicas" [Comentários à Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, v. 7, p. 3.767]. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS confere a mesma exegese ao artigo 164, § 3º, da Constituição Federal e ao artigo 43 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, considerando-os, contudo, carentes de auto-aplicabilidade, com o que "se o sistema privado ofertar maior rentabilidade e idêntica garantia (sic), o art. 43 da LC 101/2000 não poderá impedir que ele seja utilizado" [Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem. 12:187]. DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, contudo, reconhecendo, embora, o caráter minoritário da sua posição, entende que só se pode concluir que os artigos 43 da LRF e 164, § 3º, da Constituição Federal contenham "um comando liberalizador, para que Estados e Municípios, no gozo da autonomia político-administrativa (art. 18, CF), oficializem, como melhor lhes parecer, suas respectivas instituições financeiras (art. 192, I, CF), naturalmente, através de licitação" [Considerações sobre a lei de responsabilidade fiscal – finanças públicas democráticas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 238]. Alinho-me com a corrente majoritária, não só em homenagem à interpretação literal – que, se não deve ser a única com que se deva contentar o intérprete, não pode ser pura e simplesmente desprezada, sob pena de, a título de interpretação, estarmos a usurpar funções de poder constituinte – como também em face da própria teleologia dos dispositivos, que se voltam especificamente a impedir que os dinheiros públicos, advindos da bolsa do contribuinte, voltados que são a possibilitar o financiamento dos serviços e políticas públicas, ficassem à mercê da álea a que está, normalmente, sujeita a iniciativa privada. E, de qualquer sorte, a busca das operações bancárias motivada pelo maior rendimento oferecido radica, antes e acima de tudo, na concepção da atividade econômica, voltada à obtenção do lucro, apropriável pelo próprio investidor. De qualquer sorte, jamais a cooperativa, mesmo pela exegese defendida pelo eminente jurista carioca, pelas suas próprias características, que veremos mais adiante, poderia ostentar o caráter de instituição financeira oficial. Seria talvez possível ao Município subsidiar o produtor rural que tomasse empréstimo junto à cooperativa, havendo autorização legal expressa para tanto, em se tratando de um programa de estímulo ao desenvolvimento do setor cooperativo. Faltam, contudo, elementos suficientes no expediente para concluir a respeito da legalidade ou ilegalidade a macular o ajuste como um todo, razão por que esta consideração é trazida apenas em tese.

No convênio se vê estampado uma estipulação a favor de terceiros – os associados da Cooperativa – no sentido de subsidiar-lhes os juros do contrato de abertura de crédito que celebrarão.

Por que se diz que se trata de contrato de abertura de crédito a ser celebrado entre os associados da Cooperativa e esta? Tem-se em vista, na realidade, as lições da mais abalizada doutrina para se dar tal qualificação a ele. Veja-se:

ORLANDO GOMES [Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 387]:

"É o contrato por via do qual se obriga um banco a colocar à disposição do cliente determinada soma, para ser usada mediante saque único ou repetido".

FRAN MARTINS [Contratos e obrigações mercantis. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 511]:

"O contrato segundo o qual o banco se obriga a pôr à disposição de um cliente uma soma em dinheiro, por prazo determinado ou indeterminado, obrigando-se este a devolver a importância acrescida dos juros ao se extinguir o contrato".

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA [Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. 3, p. 371]:

"É o contrato pelo qual o banco se obriga a pôr à disposição do cliente uma soma dentro de um dado limite quantitativo, e por um certo prazo, acatando-lhe os saques ou acolhendo suas ordens".

LAURO MUNIZ BARRETTO [Direito Bancário. São Paulo: LEUD, 1975, p. 410]:

"É contrato consensual e definitivo, pondo a cargo do Banco a obrigação de estabelecer uma disponibilidade de fundos em favor do cliente".

E por que se trata de abertura de crédito garantida? Porque esta não se faz a descoberto, isto é, tem a reforçá-la garantias. Consoante a doutrina:

ORLANDO GOMES [Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 389]:

"Distingue-se a abertura de crédito a descoberto da garantida. Na primeira, contenta-se o banco com a responsabilidade do crédito pela confiança que lhe inspira. Na segunda, exige penhor, caução, fiador ou avalista. Costuma-se vincular à operação títulos do creditado para utilização de seu produto na recuperação das somas utilizadas, tomando alguns bancos, para formalizá-la, até notas promissórias emitidas pelo próprio creditado, que, assim, se torna devedor por dois títulos distintos".

FRAN MARTINS [Contratos e obrigações mercantis. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 511]:

"Os contratos de abertura de crédito podem repousar no crédito pessoal do creditado ou ser garantidos por penhor, fiança ou hipoteca. No primeiro caso, temos a abertura de crédito a descoberto; no segundo, há a abertura de crédito garantida".

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA [Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1993, v. 3, p. 372]:

"Pode ser a descoberto, quando o creditador o concede com base no crédito pessoal do devedor, considerando suficiente, como garantia, o seu patrimônio genericamente considerado; ou pode ser garantido, quando o banco exige uma segurança especial, seja a cláusula adjeta de hipoteca, seja o penhor de títulos, seja a fiança de terceiro".

É interessante verificar se esta operação pode ser realizada por cooperativa de crédito. Isto tendo em vista que, de acordo com o saudoso jusagrarista FERNANDO PEREIRA SODERO, "as cooperativas de crédito e as seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas só podem operar atualmente (Lei 5.764/71, cit., art. 84) com associados, pessoas físicas, que de forma efetiva e predominante desenvolvam, na área de ação da cooperativa, atividades agrícolas, pecuárias ou extrativas, ou se dedique à operação de captura e transformação do pescado" [Banco popular. In: PLURES. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1978, v. 10, p. 226].

Não há uma literatura muito expressiva, no Brasil, sobre o regime de tais cooperativas. Elas, de acordo com AMADOR PAES DE ALMEIDA [Sociedades cooperativas. In: PLURES. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1982, v. 70, p. 31], "têm por objetivo principal proporcionar a seus associados crédito e moeda, por meio da mutualidade e da economia, mediante uma taxa módica de juros, auxiliando de modo particular o trabalho em qualquer ordem da atividade na qual ele se manifeste, seja agrícola, industrial, comercial ou profissional e, acessoriamente, podendo fazer com pessoas estranhas à sociedade operações de crédito passivo e outros serviços conexos ou auxiliares". PONTES DE MIRANDA, tomando em consideração o artigo 30, § 2º, do Decreto 22.239, de 19 de dezembro de 1932, aduz que as características das operações das cooperativas de crédito são as seguintes: "a) os empréstimos, descontos e abertura de crédito são concedidos exclusivamente a associados; b) o reembolso será, nos empréstimos que não são de curto prazo, sempre feito por pagamentos parcelados, indicando a obrigação de dívida, quando única, as diversas épocas de amortização, juros inclusive; c) nos empréstimos a que se refere a alínea b, os juros serão calculados de modo que caiam sobre o saldo devido ao tempo do vencimento de cada parcela de amortização e pagos, em conjunto com ela, assim parceladamente; d) nãos será cobrado dos associados, a título de prêmio ou a qualquer outro, a não ser o montante dos juros nos descontos, soma alguma que reduza a quantia efetiva do empréstimo que tiver sido ajustado; e) nos empréstimos ou aberturas de crédito em conta corrente, os juros serão recíprocos, de débito e crédito, à mesma taxa, e vencíveis com a conta; f) a taxa de juro não poderá ser aumentada durante a vigência do empréstimo, sua prorrogação ou reforma, podendo ele ser cancelado pelo devedor em qualquer tempo; g) considerar empréstimos de curto prazo: I. os empréstimos feitos aos profissionais da lavoura a prazo de colheita a colheita, segundo o gênero de cultura. II.. os empréstimos de crédito popular, sem amortização periódica, quando o vencimento não for maior que três meses" [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, t. 49, p. 515]. JOSÉ XAVIER CARVALHO DE MENDONÇA observa que "as sociedades cooperativas não visam promover lucros para distribuí-los em dinheiro de contado entre seus sócios; propõem-se, sim (...) a fornecer-lhes crédito com melhores e mais justas vantagens do que os estabelecimentos bancários (...). Elas, assim, agem com o escopo de procurar ou criar em favor dos sócios as condições técnicas do mínimo custo" [Tratado de Direito Comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964, v. 4, t. 3, p. 248].

Qual a relevância desta discussão? É que, como se sabe, não se podem confundir as cooperativas de crédito com os bancos, principalmente se tivermos em conta o parágrafo único do artigo 5º da Lei 5.764, de 1971, que veda a elas que se autodenominem como bancos. É que estes, como ensina LAURO MUNIZ BARRETTO, "mercê de sua notável influência na circulação da riqueza, desempenham uma função que não se restringe à órbita das relações de ordem privada. Essa função é, também, econômica e social e suscita, por isso mesmo, os maiores problemas da política bancária do nosso tempo e que inspira a legislação bancária de todos os países. Cogita-se de regular, de modo mais útil para a economia e mais seguro para a massa de depositantes o afluxo, o defluxo e o destino dos capitais pelas vias bancárias e sua circulação no país" [Direito Bancário. São Paulo: LEUD, 1975, p. 85]. Por outro lado, tenha-se presente a advertência de JOSÉ XAVIER CARVALHO DE MENDONÇA: "para distinguir as cooperativas das outras sociedades, não se deve perder de vista que a indústria por elas exercida o seja a serviço direto dos sócios. É o que com segurança assinala a diferença substancial entre as sociedades cooperativas e as sociedades não cooperativas. Não importa que prestem, acessoriamente e para a própria vitalidade, serviços a terceiros. Deve-se atender ao fim principal, objetivo de sua criação, à indústria social exercida com os sócios, seus cooperados. (...) As cooperativas, qualquer que seja a sua natureza estão sujeitas à mesma disciplina" [Tratado de Direito Comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964, v. 4, t. 3, p. 247-248]. Advertência, esta, reforçada por HERNANI ESTRELLA: "embora os atos que a cooperativa pratica se enquadrem no conceito mais geral de escambo, como, por exemplo, quando ela coloca ou vende a produção dos seus associados, ou faz aquisição de terceiros para revender, malgrado todas essas analogias, esses atos (pelo espírito que os preside) não têm o significado inerente ao escambo, não são, como diz a lei, operações de mercado, no sentido verdadeiro em que a palavra é tomada, sobretudo no direito comercial" [Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro: José Konfino, 1973, p. 475-476]. MIGUEL REALE aclara bem que um ponto fundamental do regime das cooperativas é justamente o afastamento dos intermediários: "no ordenamento dos entes cooperativos não se verifica uma intermediação em benefício de terceiros, mas uma representação dos produtores como tais. E assim é por serem as cooperativas associações nas quais se revela, em seu grau máximo, o ‘intuitus personae’ que determina sua instituição" [Questões de Direito. São Paulo: Sugestões Literárias, 1981, p. 264]. Com precisão, DE PLÁCIDO E SILVA resume os caracteres da cooperativa de crédito, comuns a todas as digressões que examinei: "tem por fim a organização de um fundo, formado pelo capital dos sócios, destinado a empréstimos a seus associados ou a outras cooperativas" (Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1989, v. 1, p. 564). Quanto às cooperativas de crédito rural, especificamente, aos que pretendam aprofundar melhor o tema, a indicação de JOSÉ XAVIER CARVALHO DE MENDONÇA: "é digno de leitura e estudo o Parecer de 26 de outubro de 1927, da Comissão Especial de Crédito Agrícola e Hipotecário (relator o Dr. Joaquim Luís Osório). Aí se encontra o histórico de todas as tentativas oficiais desde 1866 a favor do crédito agrícola, mostra-se a ação dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio Grande do Sul, no sentido de fundá-lo e mantê-lo" [Tratado de Direito Comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971, v. 6, t. 3, p. 72].

A Cláusula primeira do convênio define o objeto respectivo, como sendo a abertura de um limite de crédito rotativo aos associados, residentes em Tupandi, da Cooperativa de Crédito Rural signatária, para empréstimo de recursos próprios em Crédito Rural. Tal cláusula é coerente com a natureza e a finalidade das cooperativas de crédito – inclusive as de crédito rural –, tanto as já examinadas, como as postas por PONTES DE MIRANDA, que alerta que entidade desta natureza "tem de ser regional, porque se torna difícil o âmbito extenso de localização dos sócios, submete o crédito à adaptação no rendimento médio e à aptidão de reembolso pelos sócios" [Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, t. 49, p. 514].

A Cláusula segunda, dividida em várias alíneas, estabelece a finalidade dos financiamentos – aquisição de bens novos e usados, reforma de máquinas e equipamentos, construção, reforma e ampliação de benfeitorias-, o valor máximo por pessoa – o equivalente a 500 sacos de milho, pelo preço mínimo vigente ao tempo da celebração dos contratos –, o prazo máximo de duração dos empréstimos – 12 meses com periodicidade a ser definida em projeto técnico –, a taxa dos encargos financeiros – 10% ao ano mais a taxa de juros a longo prazo (TJLP) –, as garantias – as mesmas que sejam do objeto do financiamento, dispensando avalista – e o instrumento de formalização do crédito – a cédula rural pignoratícia (CRP) -. Cabe lembrar, aqui, uma das principais características do penhor rural, segundo ORLANDO GOMES, que é a de que "os bens apenhados continuam em poder dos proprietários devedores, os quais ficam como depositários das culturas ou animais que sujeitaram ao pagamento da dívida" [Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 352-353].

A Cláusula terceira estabelece a obrigação da cooperativa de crédito rural signatária no sentido de acatar todas as propostas de empréstimo deferidas pelo Conselho do Fundo Municipal da Agricultura, desde que os associados não estejam sob quaisquer restrições legais, e de disponibilizar recursos suficientes dentro do limite ajustado na cláusula primeira e na cláusula segunda, aos associados indicados pelo Conselho Municipal de Agricultura.

A Cláusula quarta atribui ao Município a responsabilidade de acompanhar os Projetos encaminhados pelo Conselho do Fundo Municipal da Agricultura, desde que os associados não estejam sob restrições legais, e de atender os juros pactuados com os mutuários. Assume ele, assim, uma função de garante, que deve estar autorizada em lei, consoante assentou esta Casa no Parecer 12.726 – Ricardo Camargo. Por outro lado, esta cláusula pressupõe a existência de uma específica política pública em que engajada a cooperativa convenente. Resta, apenas, saber a qual se refere, uma vez que, pelos termos da lei municipal trazida ao exame desta Casa, não há de ser a veiculada por esta.

A Cláusula quinta estabelece o prazo de duração do convênio em 24 meses, a contar da respectiva assinatura. Não tenho elementos, aqui, para concluir a respeito da legalidade ou ilegalidade, cabendo, apenas, a presunção de legalidade que abona todos os atos da administração pública, consoante a doutrina e jurisprudência resenhadas no Parecer 12.680 – Ricardo Camargo.

A Cláusula sexta do convênio pode ser considerada nula, porquanto abre ensanchas a que a taxa de juros varie ao alvedrio da instituição financeira, de tal sorte que se caia em uma verdadeira necessidade de autorização para a abertura de créditos ilimitados, constitucionalmente vedada – artigo 167, VII, da Constituição Federal –, por um lado, e por se estar diante de condição puramente potestativa, vedada pelo artigo 115 do Código Civil brasileiro. Coligindo a doutrina de ANTÔNIO CHAVES, a condição "será potestativa quando o verificar-se da ocorrência depende da vontade daquele cujo direito é subordinado à mesma" [Tratado de Direito Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, v. 1, t. 2, p. 1.308]. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA considera que a condição potestativa pura "põe todo o efeito da declaração de vontade na dependência do exclusivo arbítrio daquele a quem o ato interessa" [Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1994, v. 1, p. 367]. Não se pretenda argumentar que cláusulas desta natureza seriam comuns nos contratos de financiamento internacionais, porquanto ali se tem a confluência de ordenamentos jurídicos a que o saudoso Desembargador AMÍLCAR DE CASTRO [Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 1968, v. 1, p. 55] denominava "fato anormal", e que ali se toma em consideração a inexistência de um poder acima do Estado-Soberano para o efeito de se estabelecer qualquer tipo de restrição à autonomia da vontade, de acordo com lição acolhida por esta Casa no Parecer 13.006 – Ricardo Camargo, até porque par in parem non habent iudicio.

Destarte, nos limites do que se contém no expediente, concluo que o programa veiculado pela Lei Municipal 309, de 1997, do Município de Tupandi, não pode ser enquadrado como vinculado à eleição do ano 2000, nem o convênio celebrado com a Cooperativa de Crédito Rural em questão foi celebrado após a entrada em vigor da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000. A Lei Municipal em questão, em princípio, apresenta-se válida, sem que se lhe possa, num primeiro momento, apontar inconstitucionalidade. O convênio, contudo, não há elementos para se identificar a qual programa governamental se referiria, uma vez que não há de ser ao veiculado pela Lei Municipal 309, de 1997. Embora a presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, mister saber a que política pública específica se referiria. Somente se identificou, ictu oculi, ilegalidade na cláusula sexta do convênio em questão.

É o parecer.

Porto Alegre, 12 de novembro de 2001.

Ricardo Antônio Lucas Camargo
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul

Sobre o autor
Ricardo Antônio Lucas Camargo

advogado, doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Lei de Responsabilidade Fiscal: pagamento de juros a banco em programa municipal de desenvolvimento rural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16578. Acesso em: 23 nov. 2024.

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