Assunto: Possibilidade do exercício da iniciativa popular mediante subscrição por assinatura digital.
Ementa: Iniciativa popular no processo legislativo. Assinatura digital. Democracia direta e participativa. Princípio democrático. Possibilidade. É possível o uso de assinatura digital em projeto de lei de iniciativa popular, desde que a matéria esteja regulamentada no âmbito do Poder Legislativo.
1. Requer o Consulente análise acerca da possibilidade de se admitir a apresentação de projeto de lei de iniciativa popular mediante subscrição por assinatura virtual ou digital, pretendendo, com isso, a ampliação dos meios de exercício da democracia direita.
2. A atribuição ao povo de capacidade de iniciativa no processo legislativo é inovação introduzida no direito brasileiro pela Constituição de 1988, que, rompendo com a exclusividade do modelo representativo vigente desde a Independência, instituiu meios de participação direta dos cidadãos nos negócios públicos. O art. 61, § 2.º, da Carta Magna, que pelo princípio da simetria é reproduzido nas Constituições estaduais e leis orgânicas municipais, adaptado aos respectivos contextos, evidencia que a sociedade mobilizada, coletando certo número de assinaturas, pode propor à Casa Legislativa a edição de norma, respeitando-se a repartição federativa de competências e as reservas de iniciativa distribuídas a órgãos e Poderes. Na Constituição de Minas Gerais o dispositivo está assentado nos seguintes termos:
Art. 67 – Salvo nas hipóteses de iniciativa privativa e de matéria indelegável, previstas nesta Constituição, a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Assembléia Legislativa de projeto de lei, subscrito por, no mínimo, dez mil eleitores do Estado, em lista organizada por entidade associativa legalmente constituída, que se responsabilizará pela idoneidade das assinaturas.
§ 1º – Das assinaturas, no máximo vinte e cinco por cento poderão ser de eleitores alistados na Capital do Estado.
3. O texto constitucional se refere exclusivamente a assinaturas, que devem ser entendidas como manifestação de vontade do eleitor, o qual não necessariamente sabe assinar o nome. Não há, nem poderia em face da tecnologia disponível à época, menção expressa à possibilidade de uso da “assinatura digital”. Trata-se, contudo, de instrumento não só disponível, mas disseminado pela sociedade nos dias atuais. Deve, no entanto, ser usado com observância de determinados padrões de segurança, como se nota na reflexão de Ângela Bittencourt Brasil, a seguir transcrita:
“Tomando-se a internet como uma realidade e compreendendo-se as facilidades que ela traz a todos que a utilizam como instrumento de trabalho e negocial, vimos que está reservado ao Direito uma importante parcela dos seus resultados, pois incumbe a ele a tarefa de estabelecer regras para essa relação, reprimir o abuso prejudicial dos contatos e, acima de tudo, encarar a rede como um meio eficaz e rápido para o crescimento econômico. E é, entre os atos jurídicos que podem ser efetuados pela WEB e que já estão sendo feitos, que surge a necessária segurança para o estabelecimento completo dessas relações”1.
4. A matéria examinada está juridicamente balizada por princípios e regras afirmados na Constituição da República, destacadamente o princípio democrático, que induz o intérprete a adotar soluções políticas e jurídicas tendentes a concretizar esse escopo constitucional. Discutem-se aqui os limites da representação e as possibilidades jurídicas da democracia direta.
Democracia e participação política, dentro dos marcos afirmados formalmente em nossa Constituição2, são expressões associadas a componentes igualitários e universalistas presentes em um ideal de republicanismo cívico, que se opõe a valores próprios de uma organização social verticalizada, restritiva e particularista3.
A adoção de um sistema democrático dito misto ou semi-direto no Brasil decorre de uma intenção de se coibir o uso abusivo da democracia representativa, em um contexto de concentração de poder nas mãos de poucos, para se negar a soberania popular e “legitimar a pretensão a um monopólio do poder político”4. Além disso, a iniciativa popular, como expressão da democracia direta, permite à sociedade se contrapor à atividade parlamentar, realizada pelo representante, que, muitas vezes, não ocorre segundo o modelo constitucional e com a qualidade desejável5, gerando mesmo o chamado déficit de representação6.
As normas produzidas pelo Legislativo devem ser editadas à luz da soberania popular7, o que leva à oportunidade para a introdução e aperfeiçoamento dos meios de democracia participativa, com mais espaço para que a sociedade organizada atue na esfera pública8. Afirma-se, nesta hipótese, uma constitucionalidade construída de forma aberta e inclusiva9, que jamais se esgota em modelos formais de legitimidade dita democrática.
A assimilação da assinatura digital à iniciativa popular no processo legislativo é medida em harmonia com esse ideal de democracia alargada mediante uma deliberação mais participativa, afinal, trata-se de facilitar a concretização do acesso da sociedade ao Legislativo, formalmente assegurado pela Constituição.
5. Observe-se que em nossa experiência constitucional apenas 6 projetos de iniciativa popular foram apresentados no Estado de Minas Gerais, sendo um em 1993, outro em 1998, mais dois em 2007, e outros dois em 2011, mas desses seis, três têm o mesmo conteúdo, pois são um mesmo projeto desarquivado em legislaturas diferentes. Pode-se atribuir essa produção mínima à dificuldade para a coleta de assinaturas. Quando se facilitam os procedimentos, a situação se modifica, afinal, em contraste, observamos que a Comissão de Participação Popular da Assembléia Legislativa já apresentou 24 projetos de lei, e recebeu quase 2.600 propostas de ação legislativa oriundas da sociedade.
Esses dados ilustram bem a afirmação segundo a qual “o problema da democratização” consiste em instituições10, mas a consolidação democrática somente ocorrerá por meio da sintonia entre a edição das regras formais e o seu reconhecimento pela sociedade expresso em comportamento real11. Em certos casos, como o analisado, deve-se, dispondo de meios para tanto, introduzir formas de se auxiliar a obtenção do comportamento induzido pela norma.
6. Percebida a compatibilidade da assinatura digital com o princípio democrático, assim como sua consonância com a dicção do texto constitucional, resta indagar sobre a segurança da assinatura digital, elemento fundamental para se conferir segurança jurídica à inovação desejada.
Pode-se descrever o funcionamento da assinatura digital da seguinte maneira: fornece-se ao usuário um documento eletrônico e a chave pública do destinatário, no caso o Legislativo. Mediante programas apropriados, o documento é criptografado de acordo com a chave pública. O receptor usará então sua chave privada correspondente, que é exclusivamente dele, para decriptografar o arquivo. Se qualquer bit do documento for alterado a assinatura será deformada, invalidando o arquivo12. Afirmam especialistas sobre a matéria que é praticamente impossível descobrir a chave privada através da chave pública, por causa de um algoritmo aplicado utilizado13.
Com tecnologia disponível para a admissibilidade da assinatura digital, cumpre que se designe o meio jurídico adequado para permitir o seu uso.
7. Com o objetivo de determinar a possibilidade de uso da assinatura digital de forma legítima e juridicamente aceitável, diversos países, inclusive o Brasil, têm dotado sua ordem jurídica de regras específicas sobre o assunto.
Assinala-se que a primeira iniciativa de lei sobre assinatura digital ocorreu no Estado de Utah, nos Estados Unidos, permitindo a autenticação dos documentos eletrônicos para fins de comércio e outras relações contratuais pela internet. Em 1998, promulgou-se nos EUA a "Digital signature and eletronic authentication law", que facilitou o uso da assinatura digital pelas instituições financeiras e pelo comércio.
A Alemanha produziu sua norma a esse respeito, a "Informations Und Kommunikationsdienste Gesetz Iukdg", que estabelece condições gerais para o uso das assinaturas digitais, e outros países, como a Itália e a Bélgica, adotaram procedimentos semelhantes.
Régis Queiroz aponta um tendência internacional de deixar à iniciativa privada a condução do comércio eletrônico em geral, inclusive a certificação, ao contrário do setor público, merecedor de regulação expressa14.
8. No direito brasileiro, muitos têm realçado a necessidade de regulação sobre a matéria. Leonardo Greco enfatiza a necessidade de lei em sentido estrito cuidar do tema, mormente em questões envolvendo o setor público15.
A assinatura digital, na condição de ato jurídico, submete-se às prescrições estatuídas pelo Código Civil, que em seu art. 82 dispõe que “a validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei”. O art. 129 da mesma norma estabelece que “a validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir". E o art. 136 permite que os atos jurídicos a que se não impõe forma especial sejam provados mediante qualquer tipo de documento, público ou privado.
A essas disposições deve-se, todavia, somar o conteúdo estrito do princípio da legalidade aplicável à administração pública, ditado pelo art. 37 da Constituição da República. Em se tratando de atividade estatal cabe a exigência de norma expressa16, como, por exemplo, se verifica na Lei Federal nº 11.280, de 2006, que permite no direito processual o uso da assinatura digital, desde que “atendidos os requisitos de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil".
9. A aceitação da assinatura digital pelo Poder Legislativo, nos casos de iniciativa popular no processo legislativo, deveria, então, ser pautada por regra expressa. É que, como argumentado, a aplicação do princípio da legalidade sobre o ato administrativo impõe certas precauções jurídicas nada desprezíveis.
Perceba-se que, se de um lado é possível se inferir do conteúdo do dispositivo constitucional que permite a proposição legislativa de iniciativa popular a possibilidade da subscrição por assinatura digital, de outro lado os imperativos de segurança vinculados à questão, tanto jurídico-formais quanto concretos, obrigam a que regra certa determine a forma de se utilizar a assinatura digital no aludido procedimento.
O ato de verificar assinaturas, para sua aceitação ou não como elemento de admissibilidade do projeto de lei de iniciativa popular, é de natureza administrativa e, como tal, merecedor de resolução regulamentando-o. Trata-se de ato que, sendo lei em sentido material, compete exclusivamente ao Poder Legislativo, a quem cabe dispor sobre matéria regimental.
Vê-se, então, que a ordem jurídico-constitucional permite o uso da assinatura digital no processo legislativo, especificamente na apresentação de projeto de lei de iniciativa popular, desde que haja norma regulamentadora do procedimento a ser adotado nessa hipótese, a qual deverá ser editada por resolução, de inciativa da Mesa da Assembléia, nos termos do art. 66, I, “a”, da Constituição do Estado.
Belo Horizonte, 18 de junho de 2007.
Wladimir Rodrigues Dias
NOTAS:
1 “Assinatura digital”. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 40, mar. 2000.
2 SCHLINK, Bernhard. “The Dynamics of Constitutional Adjudication”. In: ARATO, Andrew e ROSENFELD, Michel (orgs.). Habermas on law and democracy: critical exchanges. Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 1998, p. 384-385.
3 CLARK, Terry N. et al. Political Cultures of the World: An urban Cross-National Project in Progress. World Congress of Sociology, Bielefeld, Julho, 1994.
4 HIRST, Paul. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 14.
5 SANTOS, Fabiano. “Deputados Federais e Instituições legislativas no Brasil: 1946-1999”. In: BOSCHI, Renato et alii. Elites Políticas e Econômicas no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000, p. 89.
6LAVALLE, Adrian G., HOUTZAGER, Peter P. e Castello, Graziela. “Democracia, Pluralização da Representação e Sociedade Civil”. In: Lua Nova, São Paulo, n. 67, p. 51, 2006.
7 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 64-65.
8 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. Cambridge: Harvard University Press, 1980, p. 4-5.
9 HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos interpretes da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.
10 PRZEWORSKI, Adam. “A Escolha de instituições na transição para a democracia: uma abordagem da teoria dos jogos”. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 35, n. 1, Rio de Janeiro, 1992, p. 6-7.
11 Vide também em O’DONNELL, Guillermo. “La democratización y sus límites después de la tercera ola: Otra Institucionalización”. Versão revisada do trabalho apresentado na Conferência "Consolidating Third Wave Democracies: Trends and Challenges", organizada pelo National Research Institute e pelo International Forum for Democratic Studies, Taipei, agosto, 1995.
12 ALECRIM, Emerson. “Assinatura digital e certificação digital”. In: http://www.infowester.com/assincertdigital.php
13 Ver em www.freeicp.org; www.icpbrasil.gov.br; www.iti.br; www.ibpbrasil.com.br).
14 QUEIRÓZ, Regis Magalhães Soares de. Assinatura digital e o tabelião virtual. Direito e Internet. São Paulo: EDIPRO, 2000, p. 408.
15 GRECO, Leonardo. “A Revolução Tecnológica e o Processo”. In: Revista Crítica. UFRJ, Out-Nov/2000, p. 13-14.
16 CASTRO, Aldemario Araujo. “Validade jurídica de documentos eletrônicos. Considerações sobre o projeto de lei apresentado pelo Governo Federal”. In: JusNavigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001.i