Determinada entidade de previdência (Fundação) contratou, na condição de estipulante,2 seguro para cobertura de risco de morte em sua carteira de empréstimos a participante junto à certa companhia de seguros (Seguradora).
Tal contrato vigorou por quase vinte anos. Na hipótese de haver a liquidação antecipada do empréstimo, a Seguradora efetuava a devolução proporcional do seguro em relação ao prazo remanescente, mediante compensação quando do repasse mensal dos prêmios da apólice.
Quando a Fundação decidiu criar um fundo de solvência, encerrou o contrato. Entretanto, a Seguradora negou-se a proceder à devolução de valores, alegando, em síntese, que a legislação impediria a devolução de prêmio quando estruturado o seguro na forma de regime de caixa ou de repartição simples, como é o caso. Além disso, a própria apólice firmada entre as partes conteria cláusula impeditiva à devolução de prêmio.
Assim postos os fatos, passemos à análise da questão.
1. CARACTERÍSTICAS DO CONTRATO DE SEGURO
O contrato de seguro é um negócio jurídico que visa garantir determinado risco, mediante o pagamento de um prêmio ao segurador. Na lição de Arnoldo Wald: “Seguro é o contrato pelo qual o segurador, mediante recebimento de um prêmio, se obriga a pagar certo valor convencionado, ao segurado ou a terceiro (beneficiário) geralmente no caso de ocorrência de sinistro.” 3
O Código Civil assim conceitua o contrato de seguro:
Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. 4
O contrato em questão configura seguro de pessoas5, eis que o risco segurado era o de morte do mutuário durante o período de pagamento do empréstimo. Maria Helena Diniz esclarece que “nosso Código Civil permite que a pessoa humana seja objeto de seguro contra os riscos de morte, comprometimento de saúde, incapacidade ou de acidentes.”6
Tal seguro é da categoria prestamista, definido como sendo: “aquele no qual os segurados convencionam pagar prestações ao estipulante para amortizar dívida contraída ou para atender a compromisso assumido. O primeiro beneficiário é o próprio estipulante pelo valor do saldo da dívida ou do compromisso. A diferença que ultrapassar o saldo será paga ao segundo beneficiário, indicado pelo segurado. O seguro prestamista, geralmente, apresenta as coberturas de morte, invalidez e desemprego”.7
Os seguros em nosso país são regulados pelo Decreto-Lei nº 73, de 21.06.1966, que criou, em seu art. 8º, um Sistema Nacional de Seguros Privados, tendo à frente o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), órgão normativo, e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão de execução e fiscalização, ambos vinculados ao Ministério da Fazenda.
O instituto do seguro é fruto de uma evolução histórica de séculos, constituindo, atualmente, uma imperiosa necessidade em todos os setores da vida, eis que, conforme aponta J.J. Calmon de Passos8, “a sociedade contemporânea caracteriza-se pela diminuição do perigo e incremento do risco”. O seguro, na visão do ilustre professor, “institucionaliza, em termos técnicos, o imperativo da solidariedade numa sociedade de riscos”.
O seguro é um contrato bilateral, ou sinalagmático porque depende da manifestação de vontade de ambos os contratantes (segurador e segurado), que se obrigam reciprocamente. De acordo com Orlando Gomes9, ao segurador “compete pagar a quantia estipulada para a hipótese de ocorrer o risco previsto no contrato”. Ao segurado “assiste o direito de recebê-la, se cumprida a sua obrigação de pagar a contribuição prometida, que se denomina prêmio”.
Além de bilateral, o contrato de seguro é aleatório, eis que o risco pode ocorrer ou não; oneroso, “por criar vantagens ou expectativa de vantagens patrimoniais para ambas as partes”10; consensual, porque deve haver consentimento recíproco das partes; e de adesão, haja vista que o contratante apenas adere às cláusulas em bloco.
Além dessas características, possui o contrato de seguro um elemento fundamental que é o da boa-fé. Sérgio Cavalieri Filho11 chega a dizer que a boa-fé é a “alma do seguro” e “seu elemento jurídico”.
De fato, tamanha é a importância da boa-fé no contrato de seguros, que no Código Civil anterior, havia a seguinte menção expressa:
Art. 1.443. O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.
O atual Código Civil prescreve a boa-fé como condição para os contratos de modo geral, em seu art. 422:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Neste norte, Maria Helena Diniz12 explana sobre o princípio da boa-fé, objetiva e subjetiva, aduzindo que:
A boa-fé subjetiva é atinente ao fato de se desconhecer algum vício do negócio jurídico. E a boa-fé objetiva, prevista no artigo sub examine, é alusiva a um padrão comportamental a ser seguido baseado na lealdade, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente. Ressalta-se que em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 222. do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa. Esse artigo não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual. A cláusula geral contida no art. 422. do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes, incompatível com conduta abusiva, tendo por objetivo gerar, na relação obrigacional, a confiança necessária e o equilíbrio das prestações e da distribuição de riscos e encargos, ante a proibição do enriquecimento sem causa. E na, interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos (Enunciados n. 24, 25, 26 e 27, aprovados na jornada de direito civil, promovida, em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal). Para Miguel Reale a boa-fé é condição essencial à atividade ético-jurídico, caracterizando-se pela probidade dos seus participantes. A boa-fé, continua ele, é forma de conduta e norma de comportamento, sendo ainda, na lição de Judith Martins-Costa, um ‘cânone hermenêutico integrativo do contrato; como norma de criação de deveres jurídicos e como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos’”.
Para Washington de Barros Monteiro13 a boa-fé decorre do princípio da probidade nas relações jurídicas:
“o princípio de probidade versa sobre um conjunto de deveres, exigidos nas relações jurídicas, em especial, os de veracidade integridade, honradez e lealdade. Desse princípio decorre logicamente o da boa-fé, que reflete não apenas uma regra de conduta, mas consubstancia a eticidade orientadora da construção jurídica do Código Civil de 2002. A boa-fé juntamente com a probidade oferece a segurança das relações jurídicas, ou seja, dependem da confiança e respeito mútuos, da lealdade e da equivalência das prestações e contraprestações. A ausência desses princípios basilares torna o negócio jurídico viciado, pois deturpa o consentimento das partes. Apesar das contraposições de interesses, as condutas das partes subordinam-se a regras comuns da honestidade, reconhecida perante a boa-fé, que foram com o Código Civil de 2002 positivadas no art. 422.”
Segundo Sílvio de Salvo Venosa14:
“a idéia central é no sentido de que, em princípio, contratante algum ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda a cláusula geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso o juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé.”
Arnaldo Rizzardo15, ao analisar a probidade e a boa-fé nos contratos, destaca que:
“são estes dois princípios básicos que orientam a formação do contrato. As partes são obrigadas a dirigir a manifestação da vontade dentro do interesse que as levaram a se aproximar, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgio ou intenções outras que as não expressas no instrumento formalizado. A segurança das relações jurídicas dependem, em grande parte, da probidade e da boa-fé, isto é, da lealdade, da confiança recíproca, da justiça, da equivalência das prestações e contraprestações, da coerência e clarividência dos direitos e deveres.”
Orlando Gomes16 ensina:
“o princípio da boa-fé entende mais com a interpretação do contrato do que com sua estrutura. Por ele significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela indeferível. Ademais, subentendem-se, no conteúdo do contrato, proposições que decorrem da natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força do uso regular e da própria equidade. Fala-se na existência de condições subentendidas. Admite-se enfim que as partes aceitam essas conseqüências, que realmente rejeitariam se as tivessem previsto.”
No campo específico dos seguros, a Resolução CNSP nº 117, de 2004, que “altera e consolida as regras de funcionamento e os critérios para operação das coberturas de risco oferecidas em plano de seguro de pessoas, e dá outras providências”, estabelece, em seu art. 59. que:
Art. 59. Não poderão constar das condições gerais ou especiais cláusulas coercitivas, desleais, abusivas, impostas, incompatíveis com a boa-fé e com a eqüidade ou que estabeleçam obrigações iníquas, que coloquem o segurado, beneficiário ou assistido em desvantagem, ou que contrariem a regulação em vigor. 17
Ressalte-se que a boa-fé deve existir em todos os momentos da relação contratual, inclusive quando do seu término, conforme leciona a já citada Maria Helena Diniz18:
O princípio da probidade e o da boa-fé estão ligados não só à interpretação do contrato, pois, segundo eles, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida da declaração de vontade das partes, mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes têm o dever de agir com honradez, lealdade, honestidade e confiança recíprocas, isto é, proceder de boa-fé tanto na tratativa negocial, formação e conclusão do contrato como em sua execução e extinção, impedindo que uma dificulte a ação da outra.
O negócio jurídico entre Seguradora e Fundação foi regido por um contrato escrito (apólice), mas não se conteve nos limites de suas cláusulas, como se verifica na prática reiterada de permitir-se a devolução parcial do prêmio para o período não mais coberto do risco, por quase duas décadas.
Assim sendo, mesmo que não tenha constado explicitamente do contrato entre as partes, a vontade das partes foi exercida de maneira consensual, límpida e na mais absoluta boa-fé, significando, pura e simplesmente, que a cláusula contratual que impedia devolução de prêmio de seguros foi derrogada pelo exercício soberano da vontade das partes.
E isto não tem nada de extraordinário no universo do Direito das Obrigações e dos Contratos, eis que a vontade sempre prevalece sobre o sentido literal do contrato e como tal deve ser interpretado, como, de resto, determina o Código Civil:
“Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”
Miguel Reale afirma que:
“desde que haja manifestação de vontade, por parte de quem tenha legitimação para fazê-lo, constitui-se o negócio jurídico.....
.................
Donde poder-se dizer que negócio jurídico é ato jurídico pelo qual uma ou mais pessoas, em virtude de declaração de vontade, instauram uma relação jurídica, cujos efeitos, quanto a elas e às demais, se subordina à vontade declarada, nos limites consentidos pela lei.
..............
Em virtude da declaração ou manifestação da vontade – o que pressupõe, por conseguinte, o reconhecimento da autonomia da vontade pelo ordenamento jurídico do País, - podemos constituir, modificar ou extinguir determinados tipos de relações jurídicas, disciplinando os nossos interesses, nos limites e em função do interesse social.” 19
Assim, portanto, prática de devolução parcial do prêmio integra, para todos os fins de direito, a apólice havida entre as partes.
A conseqüência desse cristalino fato é que, ao negar devolução de parte do prêmio do seguro, a Seguradora está descumprindo o contrato com a Fundação.
Age a Seguradora com violação ao princípio do Direito expresso no brocardo venire contra factum proprium non valet, que reporta à vedação de a parte agir contra fato próprio a que deu causa.
O princípio da vedação do comportamento contraditório (ou princípio da tutela da confiança legítima ou, ainda, nemo potest venire contra factum proprium) se relaciona diretamente à boa-fé objetiva e decorre do valor constitucional da dignidade da pessoa humana.
Caio Mário da Silva Pereira20 tece considerações sobre o princípio, ensinando que:
“A boa-fé referida no art. 422. do Código é a boa-fé objetiva, que é característica das relações obrigacionais. Ela não se qualifica por um estado de consciência do agente de estar se comportando de acordo com o Direito, como ocorre com a boa-fé subjetiva. A boa-fé objetiva não diz respeito ao estado mental subjetivo do agente, mas sim ao seu comportamento em determinada relação jurídica de cooperação. O seu conteúdo consiste em um padrão de conduta, variando as suas exigência de acordo com o tipo de relação existente entre as partes.
A boa-fé objetiva serve como elemento interpretativo do contrato, como elemento de criação de deveres jurídicos (dever de correção, de cuidado e segurança, de informação, de cooperação, de sigilo, de prestar contas) e até como elemento de limitação e ruptura de direitos (proibição do venire contra factum proprium, que veda que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior, do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a inovação de uma cláusula ou regra que a própria parte já tenha violado).
A positivação do princípio da boa-fé objetiva como cláusula geral do Código de 2002 certamente em muito contribuirá para o seu desenvolvimento na doutrina e jurisprudência brasileira. Na apuração da conduta contratual, em face da probidade e boa-fé, exigidos pelo artigo, o juiz não pode deixar de se informar dos usos, costumes e práticas que os contratantes normalmente seguem, no tocante ao tipo contratual.”
Nelson Nery Junior21, acerca do assunto, expõe que
“não se admite que alguém venha a negar seus próprios atos, ou como já proclamava a glosa do direito romano: venire contra factum proprium non valet. Trata-se da identificação da boa fé objetiva como fundamento normativo do princípio de proibição do comportamento contraditório, com a finalidade de tutelar-se a confiança. Destarte, como ressalta Washington de Barros Monteiro, ‘a melhor interpretação de um contrato é a conduta das partes, o modo pelo qual elas o vinham executando anteriormente, de comum acordo; a observância do negócio jurídico é um dos melhores meios demonstrativos da interpretação autêntica da vontade das partes; serve de guia indefectível para a solução da dúvida levantada por qualquer delas’”.
Judith Martins Costa22 aduz que:
O princípio postula, pois, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém contrariado pelo segundo. Por esta definição e pelos requisitos que contém já se vê que duas dificuldades, pelo menos, cercam a sua operatividade. A primeira diz respeito ao seu âmbito de delimitação e a segunda concerne à articulação com a boa-fé objetiva.
(...)
O que o princípio proíbe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfico negocial.
Nessa medida, o venire contra factum proprium serve como modelo ensejador do estabelecimento de certos requisitos de conduta. Estes são revelados no caso concreto, à luz de suas circunstâncias, em especial da finalidade do contrato, mas, como regra geral, admite-se incidirem quando já surge uma situação jurídica ocorrida pelo factum proprium, situação da qual decorre benefício, ou a expectativa de benefício, para a contraparte, à qual se segue-se uma contradição, originada por um segundo comportamento pelo autor do factum proprium.
Pode ocorrer tanto quando uma pessoa manifeste a intenção, em termos que não a vinculem, de não vir a praticar determinado ato, e depois o praticar quando na situação inversa, qual seja o de declarar a pessoa, também em termos que não a vinculem especificamente, que praticaria determinado ato e, posteriormente, não o praticar. Contudo, a proibição do venire contra factum proprium não tem por escopo preservar a conduta inicial, mas antes sancionar a própria violação objetiva do dever de lealdade para com a contraparte.
O seu fundamento técnico-jurídico – e daí a conexão com a boa-fé objetiva – reside na proteção da confiança da contraparte, a qual se concretiza, neste específico terreno, mediante a configuração dos seguintes elementos, objetivos e subjetivos: a) a atuação de um fato gerador de confiança, nos termos em que esta é tutelada pela ordem jurídica; b) a adesão da contraparte – porque confiou – neste fato; c) o fato de a contraparte exercer alguma atividade posterior em razão da confiança que nela foi gerada; d) o fato de ocorrer, em razão de conduta contraditória do autor do fato gerador da confiança, a supressão do fato no qual fora assentada a confiança, gerando prejuízo ou iniqüidade insuportável para quem confiara.
Na análise do venire contra factum proprium, conveniente ainda expor as lições de Aguiar Júnior:23
"A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada."
Pela teoria do venire, portanto, aquele que adere a uma determinada forma de proceder, não pode opor-se às conseqüências dela advindas, justamente pelas expectativas legítimas que emergem para a outra parte que, de boa-fé, supõe-lhe presentes os efeitos.
Esta é, precisamente, a posição em que se encontra a Fundação. Após ininterrupta prática contratual por quase vinte anos, contava a entidade que, ao término do contrato, o saldo proporcional dos prêmios eventualmente existente seria devolvido pela Seguradora, como vinha ocorrendo consensualmente. E tal não ocorreu por ato próprio desta última, completamente contraditório à prática anteriormente adotada e, portanto, inválido juridicamente.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em consonância com a doutrina, não têm aceito práticas jurídicas contraditórias, aplicando integralmente a teoria do venire contra factum proprium non valet. Confiram-se os seguintes julgados:
PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA - PRAZO DA FAZENDA PÚBLICA - NECESSIDADE DE PERÍCIA.
..................................................
5. A agravante foi alcançada por sua própria conduta anterior. Venire contra factum proprium, como bem definiram os antigos romanos, ao resumir a vedação jurídicas às posições contraditórias. Esse princípio do Direito Privado é aplicável ao Direito Público, mormente ao Direito Processual, que exige a lealdade e o comportamento coerente dos litigantes. Essa privatização principiológica do Direito Público, como tem sido defendida na Segunda Turma pelo Min. João Otávio de Noronha, atende aos pressupostos da eticidade e da moralidade.
6. Não poderia a agravante, sob o color de uma perícia, desejar o melhor dos dois mundos . Ajuizar ações é algo que envolve risco (para as partes) e custo (para a Sociedade, que mantém o Poder Judiciário). O processo não há de ser transformado em instrumento de claudicação e de tergiversação. A escolha pela via judiciária exige de quem postula a necessária responsabilidade na dedução de seus pedidos.
Agravo regimental improvido. 24
No voto, o relator, Min. Humberto Martins, assevera, sobre a vedação de comportamentos contraditórios, que:
É o que Karl Larenz e a moderna doutrina alemã têm precisado. A vedação aos comportamentos contraditórios infirma a conduta ofensiva à boa-fé, de modo especial quando a contradição deve ser considerada abusiva à luz das circunstâncias do caso específico
(SINGER, Reinhard. Das Verbot widersprüchlichen Verhaltens [A interdição dos comportamentos contraditórios] München: Münchener Universitäts-Schriften, Reihe der Juristischen Fakultät,Band 95, C.H. Beck, 1993).
Em outro acórdão, vê-se, mais uma vez a posição do STJ em relação a fato ocorrido no âmbito da Administração Pública:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TÍTULO DE PROPRIEDADE OUTORGADO PELO PODER PÚBLICO, ATRAVÉS DE FUNCIONÁRIO DE ALTO ESCALÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE PELA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO, OBJETIVANDO PREJUDICAR O ADQUIRENTE: INADMISSIBILIDADE. ALTERAÇÃO NO PÓLO ATIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL NA FASE RECURSAL: IMPOSSIBILIDADE, TENDO EM VISTA O PRINCÍPIO DA ESTABILIZAÇÃO SUBJETIVA DO PROCESSO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INSTITUIÇÃO DE PARQUE ESTADUAL. PRESERVAÇÃO DA MATA INSERTA EM LOTE DE PARTICULAR. DIREITO À INDENIZAÇÃO PELA INDISPONIBILIDADE DO IMÓVEL, E NÃO SÓ DA MATA. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.
I – Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios de que nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo creditur turpitudinem suam allegans. 25
...................
Neste outro acórdão, o STJ se debruçou sobre matéria relativa a consentimento para venda de imóvel, entendendo ter havido consentimento tácito pela falta de oposição por cerca de 17 (dezessete) anos seguidos:
PROMESSA DE COMPRA E VENDA. CONSENTIMENTO DA MULHER. ATOS POSTERIORES. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. BOA-FÉ. PREPARO. FÉRIAS.
1. ...................
2. A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. Art. 132. do CC. Recurso conhecido e provido.” 26
Nas razões de decidir, o Min. Ruy Rosado de Aguiar deixou consignado que o sistema jurídico nacional
"deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema.".
Assim sendo, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou de maneira categórica no sentido de que a parte não pode se opor a fato a deu causa, pois seria infringir a boa-fé objetiva que é uma obrigação acessória das relações jurídicas.