Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da Comarca de Campo do Brito, Sergipe.
"Sobremodo no Estado de Direito, repugnaria ao senso normal dos homens que a existência de discrição administrativa fosse um salvo conduto para a Administração agir de modo incoerente, ilógico, desarrazoado e o fizesse precisamente a título de cumprir uma finalidade legal, quando – conforme se viu – a discrição representa, justamente, margem de liberdade para eleger a conduta mais clarividente, mais percuciente ante as circunstâncias concretas, de modo a satisfazer com a máxima precisão o escopo da norma que outorgou esta liberdade." CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, "Discricionariedade e controle jurisdicional", 2ª ed., Malheiros, Pg. 97
"Não há imunidade legal para quem infringe o Direito". Des. NERY DA SILVA, RT
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SERGIPE, através do Promotor de Justiça titular da Comarca de Campo do Brito, com fundamento nos art. 129, III, e 217, da Constituição Federal; 118, III, e 230 da Constituição do Estado de Sergipe, 5º e 12 da Lei n.º 7.347/85, e artigo 25, inciso IV, da Lei Federal, da Lei n. 8.625/93; vem, respeitosamente, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA CUMULADA COM PEDIDO LIMINAR, observado o procedimento legal, em face do ESTADO DE SERGIPE, pessoa jurídica de Direito Público interno, representado pelo Procurador-Geral do Estado, com endereço à Pça Olympio Campos, n. 14, centro Aracaju, Sergipe, & da CEHOP - Companhia Estadual de Habitação e Obras Públicas, sociedade de economia mista estadual, representada pelo seu Presidente, com sede à Av. Adélia Franco, n. 3035, Aracaju, Sergipe, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas:
I- DOS FATOS.
1- Conforme se constata, fotografias em anexo e informações prestadas pelo Município de Campo do Brito, O ESTADO DE SERGIPE, através da CEHOP - Companhia Estadual de Habitação e Obras Públicas, iniciou a construção de um Ginásio de Esportes neste Município de Campo do Brito, e em seguida o abandonou sem a conclusão devida para uso pela Comunidade.
2- A construção, que integra o patrimônio público estadual, permanece à mercê das intempéries, imprestável para qualquer fim ou utilidade.
3- Diante do descaso, O MINISTÉRIO PÚBLICO ainda solicitou informações e providências ao E. Tribunal de Contas do Estado de Sergipe e à CEHOP, expedientes ns. 49 e 50/2000, protocolados respectivamente em 04 e 15/05/2000.
4- Todavia, não obteve resposta em nenhuma das solicitações, restando apenas a via Judicial para correção dos abuso contra o patrimônio público
II- DO DIREITO.
A Constituição confere ao MINISTÉRIO PÚBLICO a tarefa de zelar pelo patrimônio público e social, na forma seguinte:
"Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...)
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos."
É dever inafastável do Ministério Público a defesa do povo, cabendo-lhe exigir dos poderes públicos o efetivo respeito aos direitos constitucionalmente assegurados como o Direito à prestação dos serviços adequados, art. 129, II, da Carta Política. Mesmo porque a a mesma Carta Política prescreveu ser "dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais", garantido a "destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional...", conforme o art. 217. II, da CF e 230 da Constituição do Estado.
Além do mais é impostergável que a paralisação de uma obra pública do porte da construção do Ginásio de Esportes compromete o patrimônio público estadual: pois quanto maior o tempo de abandono da empreitada, maiores serão os riscos de comprometimento na estrutura do que foi realizado, e tanto maior será o encarecimento (desnecessário, frise-se) com a retomada da obra.
A paralisação constitui uma afronta aos princípios da moralidade e eficiência da Administração Pública, previstos no art. 37, "caput", da Constituição Federal, com a redação dada pela emenda n. 19/98:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência..."
Também afronta o princípio da economicidade, implícito no art. 70, "caput", da Carta Política, em razão da simetria natural:
"A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração direta e indireta, quanto à legalidade, à legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada poder"
Não é por outra razão que leciona JUSSARA MARIA MORENO JACINTHO, no seu Livro "A participação Popular E O Processo Orçamentário", LED - Editora de Direito, 2000, pg. 104:
"O princípio da economicidade tem como objetivo complementar restabelecer o ideal de eficiência da Administração, que se consubstancia em empreender os maiores esforços para que, com o mínimo de recursos empregados, se obtenha o fim pré-estabelecido."
Evidencie-se ainda que, apesar da economicidade e da legitimidade serem considerados princípios, a eles não são conferidos aquela imaterialidade tão comum aos princípios gerais, cuja abstração de conteúdo e abrangência ampla apenas retarda sua efetivação. Sua virtude maior está em sua capacidade de concreção, justamente porque baseadas em concepções realísticas como interesse público, eficiência, relação custo-benefício, etc." pgs. 104 e 105.
A Administração Pública deve optar pela forma mais econômica de cumprir suas finalidades. É por isso que J.J. GOMES CANOTILHO nos ensina sobre outro importante princípio a ser observado pelo Administrador: o da exigibilidade ou da necessidade. Diz com percuciência que: "Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão". DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO, 3ª ed., Almedina, Coimbra, Portugal, 1999, pg. 264.
Pois como anota JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, in Manual de Direito Administrativo, Lumen Iuris, 3ª ed., pg. 15:
"Vale a pena observar, entretanto, que o princípio da eficiência não alcança apenas os serviços públicos prestados diretamente à coletividade. Ao contrário, deve ser observado também em relação aos serviços administrativos internos das pessoas federativas a elas vinculadas".
O sistema principiológico constitucional pode dar suporte ao controle da atuação do Poder Público, quando este nem chega à análise do caso concreto simplesmente omitindo-se.
O sistema normativo constitucional tem seu alicerce fincado em seus princípios. A partir do conhecimento do conteúdo e do alcance destes pode-se chegar aos valores eleitos como fundamentais, para informar e embasar todo o sistema jurídico, e, por conseqüência, atuação do Poder Público.
Canotilho assinala que o princípios (ou valores que eles exprimem) são exigências de otimização abertas a vários concordâncias, ponderações, compromissos e conflitos. Destacando, ainda, que os mesmos são o fundamento de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite "ligar" ou cimentar objetivamente todo o sistema constitucional.
Uma vez iniciada a Construção de uma Obra pela Administração Pública, por seus entes competentes, não há discricionariedade entre sua conclusão ou não.
Se cabe à Administração Pública escolher as obras que entende prioritárias, não é certo que possua a discricionariedade de deixá-las incompletas.
Tendo estas considerações quanto aos princípios constitucionais por norte, cabe agora analisar a discricionariedade conferida pela Lei ao Administrador, cuja razão de ser e alcance se encontram muito bem explicitadas nas Lições do Mestre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, in "Discricionariedade e controle jurisdicional", 2ª ed., Malheiros,
"A ordenação normativa propõe uma série de finalidades a serem alcançadas, as quais se apresentam, para quaisquer agentes estatais, como obrigatórias. A busca destas finalidades tem o caráter de dever (antes que "poder"), caracterizando uma função, em sentido jurídico." Pg. 13.
"Deveras, não teria sentido a lei, podendo fixar uma solução por ela reputada ótima para atender ao interesse público, e uma solução apenas sofrível ou relativamente ruim, fosse indiferente perante estas alternativas. É de se presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quando nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda, à perfeição, a finalidade que a animou. Em outras palavras, a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz que se trate de vinculação, quanto de discrição. O comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está então nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei." Pg. 32/33.
"É exatamente porque a norma legal só quer a solução ótima, perfeita, adequada às circunstâncias concretas, que, ante o caráter polifacético, multifário, dos atos da vida, se vê compelida a outorgar ao administrador – que é quem se confronta com a realidade dos fatos segundo seu colorido próprio – certa margem de liberdade para que este, sopesando as circunstâncias, possa dar verdadeira satisfação à finalidade legal. Então, a discrição nasce precisamente do propósito normativo de que só se tome a providência excelente, e não a providência sofrível e eventualmente ruim, porque, se não fosse por isso, ela teria sido redigida vinculadamente." Pg. 35.
"Logo, discrição administrativa não pode significar campo de liberdade para que o administrador, dentre as várias hipóteses abstratamente comportadas pela norma, eleja qualquer delas no caso concreto. Em última instância, o que se está dizendo é o seguinte: o âmbito de liberdade do administrador perante a norma, não é o mesmo âmbito de liberdade que a norma lhe quer conferir perante o fato. Está-se afirmando que a liberdade administrativa, que a discrição administrativa, é maior na norma de direito, do que perante a situação concreta. Em outras palavras: que o plexo de circunstâncias fáticas vai compor balizas suplementares à discrição que está traçada abstratamente na norma (que podem, até mesmo, chegar ao ponto de suprimi-la), pois é isto que, obviamente, é pretendido pela norma atributiva de descrição, como condição de atendimento de sua finalidade." Pg. 36.
A abordagem dada à discricionariedade administrativa parte sempre da noção de que é esta a liberdade que detém o administrador em optar, dentre as várias possibilidades de acordo a oportunidade e a conveniência da Administração, pela melhor solução para o caso concreto.
Quando, porém, enfoca-se a discricionariedade à luz da finalidade administrativa e dos princípios constitucionais evocados acima, o campo de liberdade do administrador reduz-se.
Portanto, se por um lado já é pacífica a impossibilidade de interferência no mérito administrativo, cabendo ao administrador a opção que atenda ao ótimo, por outro, a previsão constitucional do zelo pelo efetivo respeito aos direitos constitucionais assegurados por parte dos Poderes Públicos, dos serviços de relevância pública, dos princípios da moralidade e economicidade, conferem ao Ministério Público (arts. 127 e 129, II e III da CF) o dever institucional de exigir ações e não tolerar as omissões dos administradores, no exercício da discricionariedade.
O desafio dos vivenciadores do Direito Público está na percepção e na sensibilidade do momento e do caso concreto em que, sob a justificativa da discricionariedade, o Poder Público está sendo omisso na sua função de atender aos interesses sociais específicos.
Aqui é preciso estar atento para o mecanismo o desvio de poder, ou o seu uso travestido para atender finalidade diversa do interesse público. Sobre o tema diz o Mestre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ob. cit.:
"O que o Direito sanciona no desvio de poder, consoante entendemos, é sempre o objetivo descompasso entre a finalidade a que o ato serviu e a finalidade legal que por meio dele poderia ser servida. É, pois, um desacordo entre a norma abstrata (lei) e a norma individual (ato). Como a norma abstrata é fonte de validade da norma individual, se esta (ato) não expressa, in concreto, a finalidade daquela (lei), terá desbordado de sua fonte de validade. Daí o ser inválida." Pg. 73
"Não é logicamente repugnante a hipótese de desvio de poder por omissão. Com efeito, com o disse Afonso Rodrigues Queiró: "não agir é também agir (não autorizar é decidir não autorizar)" (...). Tem-se, pois, que o agente administrativo pode decidir abster-se de praticar um ato que deveria expedir para correto atendimento do interesse público, animado por intuitos de perseguição, favoritismo ou, de todo modo, objetivando finalidade alheia à da regra de competência que o habilitava." Pg.75
Concorrem para identificar o desvio de poder fatores como a irrazoabilidade da medida, sua discrepância com a conduta habitual da administração em casos iguais, a desproporcionalidade entre o conteúdo do ato e os fatos em que se embasou, a incoerência entre as premissas lógicas ou jurídicas firmadas na justificativa e a conclusão que delas foi sacada...", pg. 80
A discricionariedade administrativa, geralmente invocada como forma de legitimar a omissão do Poder Público no caso concreto e afastar o controle pelo Judiciário, necessita de critérios objetivos para ser auferida.
Se há muito vem-se construindo uma idéia/tese (já consolidada, até) que limita a discricionariedade da ação administrativa aos ditames legais, de maneira que não haja afronta aos direitos dos particulares, e que orienta a busca, pelo Administrador, do ótimo para atingir o interesse social, no caso concreto, a omissão administrativa que, por via oblíqua, inviabiliza o exercício dos direitos e a concretização da implementação das políticas ainda não é percebida com facilidade. Sendo, na maioria das vezes, atrelada à subjetividade, confundida com a discricionariedade (já que a inércia pode ser denominada de oportunidade ou conveniência) ou mesmo desapercebida pela sociedade e pelos controladores do Poder Público, embora esteja latente, sentida e esteja a necessitar de critérios objetivos que a destaquem e a realcem.
É por isso que Autores do Quilate da Douta MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, in Direito Administrativo, 8ª ed., Atlas, pg. 176, fazem o alerta:
"O poder de ação administrativa, embora discricionário, não é totalmente livre, porque, sob alguns aspectos, em especial a competência, a forma e a finalidade, a lei impõe limitações. Daí porque se diz que a discricionariedade implica liberdade de atuação nos limites traçados pela lei; se a Administração ultrapassa esses limites, a sua decisão passa a ser arbitrária, ou seja, contrária à lei."
Possível então o controle da discricionariedade pautado em critérios que possibilitem a efetivação dos direitos e a implementação de uma política pública compatível com a proposta administrativa escolhida pela população, através da eleição de seus administradores, mas também com os ditames constitucionais.
Sob esta ótica, pode-se conformar a ausência de implementação de uma política pública ao princípio constitucional correlato, que poderia estar sendo valorizado pela ação ou está a ser afrontado pela inação. E, a partir desta análise, caracterizar a omissão do Poder Público.
É neste contexto que se afirma que:
1- uma vez iniciada a construção de uma obra pela Administração Pública, por seus entes competentes, não há discricionariedade entre sua conclusão ou não;
2- se cabe à Administração Pública escolher as obras que entende prioritárias, não é certo que possua discricionariedade de deixá-las incompletas;
3- no caso, a decisão de paralisação das obras de construção do Ginásio de Esportes pelos Réus constitui omissão no dever de atendimento de um política pública e social já objeto de deicão anterior.
Cabe um parênteses para que se faça a seguinte consideração: das duas uma:
ou o projeto de construção do ginásio não estava contemplado na Lei Orçamentária, o que é vedado pelo art. 167, I, da Constituição, e os Gestores Públicos cometeram crime de responsabilidade política contra a Lei Orçamentária;
ou havia previsão orçamentária e os recursos foram utilizados para outros fins, o quem também é vedado, na hipótese de não ocorrer autorização legislativa, e importa em afronta à Lei Orçamentária, em face da vedação prevista no art. 167, VI, da Carta.
Ainda tem mais. Tendo a obra sido iniciada como efetivamente o foi, segundo as fotos e a documentação apresentada, presume-se, que tenha havido a realização do empenho respectivo como manda a Lei n. 4.320/64, em o seu art. 60, "caput" ("É vedada a realização de despesa sem prévio empenho").
Mesmo porque segundo iluminam os Profs. J. TEIXEIRA MACHADO JÚNIOR & HERALDO DA COSTA REIS, in "A Lei 4.320 Comentada", IBAM, 22ª ed., pg. 105,
"Empenho depois de realizada a despesa é burla, sujeita a crime de responsabilidade".
Se houve o empenho, havia reserva de valor para atendimento da despesa. Então, como justificar a paralisação das obras de construção do Ginásio de Esportes da Cidade de Campo do Brito?
E o que se conclui então é que o Poder Judiciário pode, a partir do sistema de princípios constante na Carta Magna e da intolerância à omissão administrativa, delimitar a margem de discricionariedade da administração no cumprimento da ordem constitucional social, interferindo para que o Administrador opte, no caso, concreto pela implementação da política que atenda ao interesse social.
O entendimento firmado é o de que a omissão administrativa pode ser controlada e judicializada, através do manejo pelo Ministério Público da ação civil pública.
A ressalva da Jurisprudência quanto à possibilidade do Judiciário determinar a realização de obras não se aplica ao caso em exame, pois o que se pretende é constituir a Administração em mora quanto à obra que iniciou:
"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. CARÊNCIA DE AÇÃO. MUNICÍPIO. OBRA PARA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE.
(...)
2. Em tese, pode a Administração Pública figurar no polo passivo da Ação Civil Pública e até ser condenada ao cumprimento da obrigação de fazer ou deixar de fazer.
3. O art. 3º da Lei n. 7.347/85, a ser aplicado contra a Administração Pública, há de ser interpretado como vinculado aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública, especialmente, o que outorga ao Poder Executivo "o gozo total de liberdade e discricionariedade para eleger obras prioritárias a serem realizadas, ditando a oportunidade e conveniência desta ou daquela obra, não sendo dado ao Poder Judiciário obrigá-lo a dar prioridade a determinada tarefa do Poder Público". (Trecho do Acórdão)
(...)
STJ, Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n. 1997/0009323-9, 1ª T., Rel. Min. José Delgado, J. em 15/09/97, vu., publ no DJ de 17/11/97, pg. 59456
Ou seja, não se pretende obrigar o Poder Executivo a iniciar uma nova obra, mas a concluir que já foi iniciado. Não se pretende aqui substituir o Administrador na escolha das prioridades de sua política social, posto que foi ao mesmo que o Povo confiou a distribuição da receita pública. Mas há que se reconhecer que certos valores vêm ´previamente priorizados´ pela própria Constituição, e não se pode admitir que sejam relegados a 2º plano. É o que se dá no caso, frente á norma que estabelece o dever de prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente, art. 227, da CF, como se verá mais adiante.
A decisão de suspender a conclusão de obra iniciada constitui a negação de política pública e social e de um direito da sociedade local, do cidadão, que elege seus governantes e, portanto, valoriza o regime democrático.
E o controle somente será uma constante quando a sociedade, o Ministério Público, o Poder Judiciário, os Tribunais de Contas, enfim todos os órgãos controladores tiveram trazido para dentro de si a intolerância à omissão administrativa e estejam a perseguí-la eficazmente através de critérios objetivos que a concretizam.
Cabe repetir que a discricionariedade administrativa na realização do interesse social tem seu âmbito delimitado, cabendo ao Ministério Público a exigência de ações e a intolerância às omissões dos administradores.
Mais uma vez, o Mestre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Ob. cit., esclarece com percuciência o que não é visto clareza:
"O mérito do ato administrativo não pode ser mais que o círculo de liberdade indispensável para avaliar, no caso concreto, o que é conveniente e oportuno à luz do escopo da lei. Nunca será liberdade para decidir em dissonância com este escopo.
Por tal razão, extrapolam o mérito e maculam o ato de ilegitimidade os critérios que o agente adote para decidir-se que não tenham sido idoneamente orientados para atingir o fim legal. É o que se passa naqueles: (a) contaminados por intuitos pessoais – pois a lei está a serviço da coletividade e não do agente; (b) correspondentes a outra regra de competência, distinta da exercitada – pois à lei não são indiferentes os meios utilizados; (c) os que revelam opção desarrazoada – pois a lei não confere liberdade para providências absurdas; (d) que exprimem medidas incoerentes: 1. Com os fatos sobre os quais o agente deveria exercitar seu juízo; 2. Com as premissas que o ato deu por estabelecidas; 3.com decisões tomadas em casos idênticos, contemporâneos ou sucessivos – pois a lei não sufraga ilogismos, nem perseguições nem favoritismos, discriminações gratuitas à face da lei, nem soluções aleatórias; e) que incidem em desproporcionalidade do ato em relação aos fatos – pois a lei não endossa medidas que excedem ao necessário para atingimento de seu fim." Pg. 82/83
"Mesmo quando a lei se omite em explicitar os motivos necessários para a produção do ato, nem por isso poder-se-ia abraçar a conclusão de que, em tais hipóteses, a Administração pode agir sem motivos, isto é, sem apoio em fatos que lhe sirvam de base para expedir o ato , ou que está livre para calçar-se em quaisquer fatos, sejam quais forem. Pg. 93/94
Com efeito, de um lado a atividade administrativa é "atividade de quem não é proprietário" e por isso de quem carece da possibilidade de atuar de acordo com a própria vontade e inconseqüentemente, o que só poderia ser admitido para o proprietário. De outro lado, os poderes administrativos funcionam como a "contraface" de deveres e não estão deferidos ao administrador para que atue desarrazoadamente, ilogicamente, ou em descompasso com a finalidade em vista da qual lhe estão outorgados.
Além do mais tem plena vigência o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, a legitimar o controle jurisdicional sobre o ato (omissão) administrativo em questão. Pois, "Partindo-se da premissa de que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito (individual, coletivo, difuso, público ou privado) não seja passível de apreciação pelo Poder Judiciário, resta concluir que também a discricionariedade administrativa está sujeita ao controle jurisdicional", como afirma ANA MARIA MOREIRA MARCHESAN, in "Princípio da Prioridade Absoluta aos Direitos da Criança e do Adolescente, publicado na Revista Igualdade, Vol. 6., n. 21, out/dez/1998.
E o Magistrado Des. NERY DA SILVA, do TJGO, ressalta a indeclinabilidade da Jurisdição e do princípio da legalidade:
"Não há imunidade legal para quem infringe o Direito. O poder discricionário não está situado não das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e sujeita-se à regular apreciação pela autoridade judicante." (RT 721/212)
Por fim, a falta de conclusão da obra do Ginásio de Esportes da cidade de Campo do Brito ofende a norma que estabelece o dever de prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente, prevista nos arts. 227, da Constituição Federal e 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/90
Este último dispositivo é por demais auto-explicativo:
"ART. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
PARÁGRAFO ÚNICO - A garantia de prioridade compreende: (...) c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude."
Nesta área já há aresto que se constitui no verdadeiro leading case:
"Do estudo atento desses dispositivos legais e constitucionais, dessume-se que não é facultado à Administração alegar falta de recursos orçamentários para a construção dos estabelecimentos aludidos, uma vez que a Lei Maior exige prioridade absoluta – art. 227 – e determina a conclusão de recursos no orçamento. Se, de fato, não os há, é porque houve desobediência, consiciente ou não, pouco importa, aos dispositivos constitucionais precitados, encabeçados pelo §7º, do art. 227". (TJDF, Ap. civ. 62, de 16.04.93, Acórdão 3.835)
E outros surgiram:
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. É DEVER DO ESTADO ASSEGURAR À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE, COM ABSOLUTA PRIORIDADE, O DIREITO À VIDA, À SAUDE, À ALIMENTAÇÃO, À EDUCAÇÃO, AO LAZER, À PROFISSIONALIZAÇÃO, À CULTURA, À DIGNIDADE, AO RESPEITO, À LIBERDADE E À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA (ART. 227, CAPUT DA CF/88 C/C O ART. 7º DO ECA) AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. (Art. 7º, da Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente), às quais o Poder Público não pode eximir-se de sua responsabilidade." (TJPR, Conselho da Magistratura, Ag. De instrum. 2624-0, Ac. n. 8474, Rel. Des. Octávio Valeixo, publicado na Revista Igualdade, v 7, n. 25, out/dez 1999, pg. 124
"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ADOLESCENTE INFRATOR. ART. 227, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. OBRIGAÇÃO DE O ESTADO MEMBRO MANTER E INSTALAR PROGRAMAS DE INTERNAÇÃO E SEMILIBERDADE PARA ADOLESCENTES INFRATORES. (...)2. Obrigação de o Estado-Membro instalar (fazer as obras necessárias) e manter programas de internação e semiliberdade para adolescentes infratores, para o que deve incluir a respectiva verba orçamentária. Sentença que corretamente condenou o Estado a assim agir, sob pena de multa diária, em ação civil pública proposta pelo Ministério Público. Norma constitucional expressa sobre a matéria e de linguagem por demais clara e forte, a afastar a alegação de que o Judiciário estaria invadindo critérios de administrativos de conveniência e oportunidade e ferindo regras orçamentárias. (...) Discricionariedade, conveniência e oportunidade não permitem ao administrador se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da Cosntituição e de todo o sistema legal..." (TJRS, 7ª C.cív., Ac 596017897, Rel. Des. Sérgio Grischkow Pereira, v.u., 12/02/97, in Biblioteca dos Direitos da Criança, ABPM, vol. 01/97. (grifos nossos)
E não adianta dizer que isso é uma "mera" programática da Constituição. Primeiro, porque dizer que é "mera" norma programática não é forma de tratar a Constituição, negando-lhe eficácia. Segundo porque existe um princípio denominado "da supremacia da Constituição", do qual, explica J. J. CANOTILHO, in DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO, Almedina, 3ª ed., pgs. 242 a 244, deduz-se outros quatro princípios constitutivos do Estado de Direito.
Trata-se o 1º, do "Princípio da vinculação do legislador à Constituição", pelo qual "só serão válidas leis materialmente conformes com a constituição"; o 2º, o "princípio da conformidade dos atos do estado com a constituição", pelo qual "exige desde logo a conformidade intrínseca e formal de todos os atos dos poderes públicos (em sentido amplo: estado, poderes autônomos, entidades públicas) com a constituição"; o 3º, o "princípio da reserva da constituição", pelo qual "determinadas questões respeitantes ao estatuto jurídico do político não devem ser reguladas por leis ordinárias mas sim pela constituição"; e o 4º, o "princípio da força normativa da constituição", pelo qual "quando existe uma normação jurídico-constitucional ela não pode ser postergada qualquer que sejam os
pretextos invocados". (grifo nosso).
O Estado tem, ainda, a obrigação, prevista no art. 230, VII, da Constituição Estadual, ainda em vigor, de fomentar diretamente a "criação e preservação de centros de lazer e cultura, complexos desportivos e demais espaços que visem oferecer formas comunitárias de diversão." (grifo nosso)