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Ação civil pública contra desconto para portadores de carteira de estudante

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Agenda 08/09/2005 às 00:00

Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Tocantins para que entes públicos se abstenham de exigir o desconto de “meia-entrada” para os portadores das Carteiras de Identidade Estudantil, alegando a inconstitucionalidade e a não auto-aplicabilidade das leis concessivas do benefício.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE GURUPI - TO

                        O Ministério Público do Estado do Tocantins, ora representado pelos Promotores de Justiça que ao final subscrevem, com fundamento nos artigos 5º, XXXII, 37 e 129, III, da Constituição Federal, somado aos artigos 1.º, II; 2.º; 3.º; 5.º, caput; 11 e 12, da Lei 7.347/85, que disciplina a Ação Civil Pública, além de outros dispositivos legais aplicados à espécie, ancorado nas peças de informação em anexo, vem por meio desta, propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

                        em face do ESTADO DO TOCANTINS, pessoa jurídica de direito interno representada por seu governador, MARCELO CARVALHO MIRANDA a ser citada através de um de seus procuradores do Estado e da PREFEITURA MUNICIPAL DE GURUPI/TO, pessoa jurídica de direito público com endereço administrativo no paço municipal desta cidade, representada por seu Prefeito Municipal, JOÃO LISBOA DA CRUZ, a ser citada através de algum de seus procuradores, pelas razões de fato e de direito que passa a expor:


I - DOS FATOS

                        No dia 17 de agosto de 2001, enquanto exercia seu múnus constitucional substituindo o titular do cargo, o então vice-presidente da república, Marco Antônio de Oliveira Maciel, entendendo presentes os requisitos constitucionais exigíveis – relevância e urgência – editou a Medida Provisória 2.208/01, posteriormente várias vezes reeditada, dispondo sobre a comprovação da qualidade de estudante e de menor de dezoito anos das situações que especificava e, assim procedido, a partir da publicação daquele instrumento normativo, em todo território nacional onde houvesse previsão de desconto destinado aos estudantes para a entrada em estabelecimentos de diversão e eventos culturais, esportivos e de lazer, comprovar-se-ia tal qualificação – estudante - pela exibição do documento de identificação estudantil, abrangendo tal previsão, inclusive, os eventuais descontos previstos para os transportes coletivos públicos locais.

                        No intento de preencher todas as lacunas existentes e numa mal-disfarçada demonstração do interesse de criar uma fonte de renda para as associações estudantis, aquela Medida Provisória disciplinou que os documentos de identificação estudantil – DIE - seriam então expedidos pelos correspondentes estabelecimentos de ensino ou pela associação ou agremiação estudantil a que pertençam, ressalvando ser vedada a exclusividade de qualquer deles, isto é, qualquer destas entidades existentes no território nacional pode emitir o sobredito documento, que logo recebeu o disseminado título de "Carterinha de Estudante".

                        Naquele mesmo ano de 2001, atendendo ao interesse do governo da época, o congresso nacional, numa triste demonstração de seu "apequenamento" publicou a Emenda Constitucional nº 32 que perenizou as inúmeras medidas provisórias que lhe precediam pendente de apreciação e, num dos maiores absurdos jurídicos já perpetrados neste país, abdicou do poder que deveria ser exercido em nome do povo brasileiro, recusando-se assim a apreciar todas as medidas provisórias que eternizou, fazendo permanente, dentre muitas, a Medida Provisória 2.208/01.

                        Assim, no rastro aberto por tais "diplomas legais", surgiram por todo país leis estaduais e municipais prevendo um desconto de 50% (cinqüenta por cento) para o acesso a casas de exibição cinematográficas, teatrais, circenses, além ainda de estabelecimentos de diversão e outros, onde se comprovaria a condição de estudante através da apresentação das "Carteirinhas de Estudante".

                        Ocorre que, passados aproximados quatro anos da edição daquela Medida Provisória, depara-se hoje a sociedade com uma das mais desastradas aventuras legislativas já feitas neste país, estando evidenciado o grande despreparo que assola as casas de leis e o mal-disfarçado açodamento que permeia os instrumentos legislativos que, a pretexto de regular as relações sociais e proteger o bem comum, acabam por se tornar instrumentos de políticas populistas, destinados a satisfazer o interesse de poucos, sem um mínimo de cuidado com os nefastos efeitos que as leis mal-pensadas podem causar.

                        Especificamente no Estado do Tocantins, como em muitos outros da federação, a pretexto de facilitar o acesso do estudante aos estabelecimentos já citados, foi editada pela Assembléia Legislativa a Lei Estadual 934/97, seguindo iniciativa similar tomada pela Câmara de Vereadores de Gurupi que, mesmo antes da Medida Provisória em questão, também editou a Lei Municipal 1.191/97, assegurando aos estudantes os descontos da meia-entrada para participar de atividades culturais, esportivas e de lazer.

                        No ano de 2003, o governo estadual, começando a perceber a absoluta impossibilidade de se controlar as emissões da CIE e certamente notando os nefastos efeitos sentidos pela sociedade, ainda tentou corrigir a balbúrdia instalada sancionando a Lei Estadual 1.368/2003, que limitou as entidades habilitadas à emissão daqueles documentos porém constou-se inócua tal iniciativa visto que a qualificação de estudante já vem prevista na Medida Provisória 2.208, sendo impossível a limitação através de lei estadual, especialmente quando se trata de mera definição jurídica criadora de direito.

                        Neste último dia 19 de maio de 2005 compareceu na Promotoria de Justiça de Gurupi um representante da agremiação estudantil denominada Associação Brasileira dos Estudantes – ABE – pessoa jurídica de direito privado com sede na cidade de Jaraguá/GO, pleiteando a intervenção ministerial junto à Secretaria de Educação do município que, supostamente, estaria impedindo a ABE de "oferecer" suas carteirinhas de estudante em Gurupi ao fundamento de que tal seria de exclusividade da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Gurupi – UMESG.

                        Feita a oitiva do requerente, constatou-se que o atual sistema legislativo e administrativo que rege o tema criou uma verdadeira "indústria da carteirinha" que, somente em Goiânia conta com treze associações emitindo tais documentos, tendo ainda revelado que a entidade que representa foi criada no ano de 2004 e atualmente possui filiais em Goiânia, Brasília e Anápolis, com planos de expansão para mais quatorze estados da federação, tendo sido recrutado naquela capital goiana para representá-la nos estados do Tocantins e Goiás, tendo recebido, em menos de uma semana de atuação na cidade de Gurupi, nada menos que oitenta e seis pedidos de carteiras que, ao custo de quatro reais, que seriam logo entregues aos cadastrados.

                        Pela abrangência do assunto e pela repercussão social que encerra, visto que atinge diretamente uma enorme gama de estudantes e, indiretamente, outro tanto de comerciantes e não estudantes, foi determinada a pesquisa do assunto, quando encontraram-se na Internet alguns textos sobre o tema, valendo citar uma reportagem da Revista Caros Amigos que, realçando a transformação das CIE em verdadeiros nichos comerciais, aponta a falta de clareza na utilização dos recursos advindos de tal prática, bem ainda a inexistência de qualquer controle acerca dos valores arrecadados dos estudantes.

                        Buscando maiores informações, foi feito um contato eletrônico com a Secretaria Estadual de Educação quando se colacionaram documentos indicando que os únicos instrumentos legislativos que tratam do assunto no Tocantins, além da Medida Provisória citada, são as Leis Estaduais 934/97 e 1.368/03, tendo demonstrado ainda aquele órgão a grande dificuldade que existe para a sistematização do uso das CIE, tanto que já existe um esboço de Instrução Normativa para disciplinar o assunto, fazendo-se claro que aquelas leis necessitam de regulamentação, como expressamente exige o art. 8º da Lei 1.368/03.

                        Pesquisando também nesta Promotoria, foi encontrado o Procedimento Preliminar 020/05, instaurado pela Promotoria de Justiça do Consumidor em acompanhamento da atuação da Procuradoria de Defesa do Consumidor - PROCON na fiscalização do cumprimento da lei em questão, restando evidenciado que, inobstante as leis que regulamentam o assunto serem completamente vagas no que tange ao controle das carteirinhas e utilização dos descontos citados, têm-se exigido seu cumprimento, inclusive com a imposição de multa àqueles que se afastarem de seus preceitos.

                        Analisando os fatos, restou apurado que a exigência da lei em questão tem representado inegável prejuízo a toda a coletividade e ao setor artístico e cultural, de maneira ampla e, especialmente, do Tocantins, quando se evidencia que a inexistência de regramentos claros acerca da emissão das CIE e funcionamento das agremiações estudantis acabou por ser tornar um verdadeiro nicho para a pilantragem, o enriquecimento ilícito, com nefastos efeitos, em especial, para todo cidadão que não possua a carteira de identificação estudantil e para o seguimento cultural desta região.

                        A exigência feita pelos órgãos estatais, de que os empresários do setor de entretenimento promovam descontos aos estudantes fere o princípio constitucional da livre iniciativa e representa absurda e indevida interferência na propriedade privada e, neste ponto, cumpre esclarecer que a propriedade pilhada pela medida não é a do setor de entretenimento mas, bem a contrário, QUEM ESTÁ SENDO COAGIDO INDIRETAMENTE A CUSTEAR OS DESCONTOS EXIGIDOS PELOS ÓRGÃOS DE FISCALIZAÇÃO É NINGUÉM MENOS QUE TODA A COLETIVIDADE QUE SE SERVE DOS SERVIÇOS AFETADOS PELA LEI EM QUESTÃO.

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                        A partir do momento em que se propagou a idéia de que poder-se-ia ter acesso ao setor de entretenimento pagando apenas metade do valor relativo ao serviço, a sociedade acabou sendo ludibriada por uma promessa impossível de ser cumprida, resultando disso um verdadeiro engodo que, a final, atingiu de cheio aquela parcela de indivíduos que, por um motivo ou por outro, não mais se encontra nos bancos escolares ou não se conforma com a possibilidade de adquirir uma falsa carteira de estudante, prática amplamente adotada com a publicação das leis em questão e que é o sustentáculo da "indústria da Carteirinha".

                        Conforme se constata dos depoimentos acostados, em razão da absoluta falta de critério neste sistema de "descontos", os empresários do setor de entretenimento tiveram que incorporar aos seus custos os valores relativos aos descontos a que estão sendo obrigados e, em razão disto, acabaram por praticamente dobrar os seus preços para poderem auferir os valores mínimos necessários à continuidade de sua atividade econômica, tal como se observa nos depoimentos de empresários de casas de eventos e do cinema desta localidade que, quando indagados acerca dos efeitos dos descontos obrigatórios foram enfáticos em afirmar que, atualmente, para cada ingresso vendido como inteira, são vendidos outros oito como meia entrada.

                        Tão-só esta declaração é suficiente para indicar que ficaram afastados de seus eventos aquelas pessoas que não são mais estudantes ou, muito pior, acabou por se instalar uma verdadeira indústria de emissão das Carteirinhas de Estudante, chegando eles a afirmar que nos últimos três meses uma entidade estudantil da cidade teria promovido uma campanha de vendas daquele documento.

                        Conforme se intenta demonstrar, a instituição dos descontos para estudantes revestiu-se de absurdo sem similar que, ultima ratio, acabaram por criar um absurdo privilégio aos portadores das CIE, criaram uma nova figura legislativa com natureza de confisco contra os freqüentadores de estabelecimentos de entretenimento usurpando competência legislativa da União, limitaram o acesso ao lazer e cultura aos "não estudantes", incentivaram a prática de crimes de falsificação de documento, feriram, dentre outros, o princípio da livre concorrência, desestimularam a produção cultural, dentre outros efeitos nefastos.

                        Em resumo, a obrigatoriedade do desconto de meia entrada não beneficiou ninguém pois, ao revés de baixar os preços, a única alternativa deixada aos comerciantes foi dobrá-los na expectativa de continuar recebendo os lucros e pagando os custos de sua atividade econômica e, ao cabo, não facilitaram a vida do estudante mas dificultaram em muito o acesso aos meios de entretenimento e cultural a quem não possui a malfadada CIE.

                        Ad argumentandum, em prevalecendo leis como a da meia entrada, estaria o Estado, a pretexto de promover a igualdade racial, legitimado a exigir do setor do vestuário que vendesse roupas por metade do preço às minorias étnicas ou ainda que, em razão do interesse público no serviço prestado através das viaturas estatais, fossem os postos de gasolina coagidos a vender combustível ao Estado com o desconto de "meia-bomba". Ora, por se tratarem de hipóteses incidentes em setores econômicos de maior capacidade econômica faz-se quase impossível imaginar sua implementação, valendo indagar o porquê de ter funcionado tanto tempo as leis do desconto.


II - DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

                        A Constituição Federal de 1988, modificando substancialmente suas feições, definiu o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, atribuindo-lhe ainda a função institucional de promover o Inquérito Civil Público e a Ação Civil Pública para a proteção do patrimônio público e social e do meio ambiente, permitindo a extensão desta prescrição com a possibilidade de, além destes, defender outros interesses difusos e coletivos abrangido pela própria constituição e demais leis (CDC, ECA, Estatuto do Idoso etc...).

                        Complementando a estrutura normativa inaugurada pela Constituição Federal, coube ao Código de Defesa do Consumidor conceituar, em seu art. 81, que tal representação coletiva será exercida quando, em linhas gerais, tratarem-se de interesses ou direitos transindividuais, de que sejam titulares pessoas indeterminados, categoria ou classe de pessoas, ligadas entre si por circunstâncias de fato ou relações jurídicas, prevendo ainda que, mesmo em se tratando de direitos individuais de origem comum, far-se-á possível a defesa coletiva, adotando no Brasil o já amadurecido sistema das class action advindo do direito norte americano, como forma de solução coletiva dos conflitos.

                        Por fim, esclarecendo tal sistema, a Lei da Ação Civil Pública – Lei 7.347/85 – trouxe em seu bojo o delineamento processual que orienta estas ações coletivas, explicitando a utilização de vários institutos procedimentais, como o litisconsórcio, citações, contraditório e medidas assecuratórios além de também definir claramente em seu art. 5º, como legitimado ativo para o manuseio das ações coletivas, além de outros co-legitimados como a União, Estados e Municípios, o Ministério Público, apresentando-se despiciendas maiores divagações acerca de capacidade ativa desta instituição.

                        Considerando todo o exposto, inexiste dúvida que atualmente, com a falta de regulamentação da Lei Estadual que criou os descontos para os estudantes, estão sendo prejudicadas inúmeras pessoas, dentre elas os consumidores não estudantes que têm de pagar mais caro pelos produtos culturais, como forma de compensação financeira pelo descontrole, os estudantes que ficam expostos às impensáveis taxas exigidas para a obtenção das carteirinhas e os comerciantes que, além de ficarem expostos às inúmeras possibilidades de fraude que o sistema encerra, não têm definidas as formas de financiamento da meia entrada, numa situação de verdadeiro confisco que ofende, além do direito de propriedade, os princípios da livre concorrência e do acesso à cultura pois, em suma, AS LEIS DE DESCONTO NUNCA BAIXARAM OS PREÇOS AOS ESTUDANTES MAS, BEM AO CONTRÁRIO, OBRIGARAM SUA ELEVAÇÃO PARA OS DEMAIS.


III – DO DIREITO

                        A questão central que envolve a presente demanda refere-se à identificação da natureza jurídica do desconto de meia entrada e, já aqui, vislumbra-se a inexistência, em qualquer ramo do direito, de qualquer instituto similar que pudesse possibilitar algum enquadramento normativo para o mesmo, restando evidente que se trata de um dos maiores engodos já praticados pelo legislativo brasileiro, que há muito tempo tem causado sérios prejuízos à toda a coletividade, indistintamente.

                        Observando o ordenamento jurídico brasileiro, constata-se que a propriedade é um direito de grandeza constitucional, somente cabendo a intervenção estatal quando também da Constituição se possam extrair as devidas autorizações, assim, a própria Carta Magna elenca as possibilidades de confisco, requisição, ocupação temporária, desapropriação e outras e, em nenhuma destas, existe autorização para a previsão do desconto obrigatório de meia-entrada que, ultima ratio, interfere diretamente no patrimônio dos consumidores dos serviços de entretenimento, restando evidente que se tem retirado, diuturnamente, de uma infinidade de pessoas uma quantidade de seus valores para o pagamento majorado de serviços, ao mesmo tempo em que se tem injustamente sonegado a outras tantas o direito de acesso a tais bens de instrução.

                        III.1. Da inconstitucionalidade das leis do desconto

                        Na dicção do Prof. José do Santos Carvalho Filho, a vigente Constituição é peremptória no que se refere ao reconhecimento do direito: "É garantido o direito de propriedade" (art. 5º, XXIII). O mandamento indica que o legislador não pode erradicar esse direito do ordenamento jurídico positivo. Pode, sim definir-lhe contornos e fixar-lhe limitações, mas nunca deixará o direito de figurar como objeto da tutela jurídica.

                        Isto não quer dizer entretanto que a propriedade seja um direito absoluto e, neste sentido, sorvendo ainda as lições daquele doutrinador, a concepção individualista da propriedade já foi há muito abandonada porque predomina atualmente a visão de que tal instituto – propriedade - se configura como meio para alcançar o bem-estar social e, neste desiderato, cabe ao Estado interferir neste direito para que se lhe atribua uma função social, havendo para isso vários mecanismos jurídicos.

                        Nessa esteira, ao Estado e permitido intervir na propriedade privada sob duas modalidades distintas, uma primeira restritiva de direito e outra supressiva, exaurindo os casos da primeira a servidão administrativa, requisição, ocupação temporária, limitações administrativas e tombamento, enquanto a única hipótese administrativa de supressão do direito de propriedade é a desapropriação, existindo ainda mecanismos tributários e de intervenção no domínio econômico, sempre porém vedado o confisco de bens, à única exceção daqueles utilizados para o tráfico ilícito de entorpecentes [01].

                        Assim, numa breve análise do regime jurídico da intervenção do Estado na propriedade, dessume-se que somente é possível tal intervenção nas taxativas hipóteses previstas ou delegadas pela Constituição, sendo de se ressaltar que, em todas aquelas supressivas ou restritivas, à exceção do confisco de bens aplicados ao tráfico ilícito, é prevista a justa indenização [02].

                        Quando se cotejam tais previsões constitucionais com a situação criada pelas leis da meia-entrada, percebe-se que tanto o Estado do Tocantins quanto a Prefeitura Municipal de Gurupi, indevidamente, invadiram a esfera patrimonial dos particulares, prevendo uma medida de incentivo que invadiu a esfera patrimonial dos não estudantes e dos empresários do setor de cultura e entretenimento, resultando em várias ofensas à Constituição visto que discriminaram sem critério, promoveram uma indevida intervenção no mercado de entretenimento que, artificialmente, teve os preços elevados para os não estudantes, transferiram indevidamente para os particulares um ônus estatal e, em última instância, dificultaram a difusão do lazer, cultura e entretenimento especialmente às camadas mais pobres da população.

                        Tanto a Medida Provisória 2.208 quanto a Lei Estadual 934/97 e Lei Municipal 1.191/97 foram criada sem a previsão de qualquer forma de compensação aos proprietários de estabelecimentos de entretenimento, e assim os demandados, indevidamente, transferiram para toda a sociedade "não estudantil" a responsabilidade pelo custeio dos descontos em questão, criando uma espécie de financiamento forçado pelo patrimônio individual, em absoluto descompasso com as normas econômicas e financeiras expressamente delineadas na constituição – é o famoso "bom dia com o chapéu alheio".

                        Não existe proibição do fomento e financiamento das atividades consideradas mais importantes pelo Estado entretanto, para tal existem os instrumentos adequados, os quais não coincidem com as medidas ora atacadas que, numa demonstração de puro arbítrio, têm sido violentamente exigidas pelo órgãos públicos de regulação, sem a mínima preocupação com a legalidade, resultando numa indireta negativa estatal aos direitos de lazer e entretenimento, ocasionada justamente pela antecipada exigência dos preceitos da lei em questão.

                        Segundo descreve a Constituição Federal (art. 3º) [03], constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, erradicar a pobreza e a marginalização além de promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, ressalvando ainda, como direito fundamental, a propriedade (art. 5º, XXII), com a garantia a todos, pelo Estado, dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional com o apoio, a valorização e a difusão das manifestações culturais.

                        Veja-se ainda que, mesmo se houvesse intenção do Estado e do Município em implementar um novo instituto jurídico que abarcasse a hipótese da Lei do Desconto, tal restaria impossível diante da expressa reserva de competência para a criação de novo tipo de intervenção estatal na propriedade privada, que é atribuição reservada à União [04].

                        Desta forma, numa análise perfunctória de nosso ordenamento jurídico, percebe-se que a previsão da meia entrada, sem a correspondente compensação financeira estatal, reveste-se de ato absolutamente arbitrário e ofensivo aos princípios constitucionais da igualdade, legalidade, moralidade e da propriedade privada, revestindo-se de ato abusivo e discriminatório, transferindo para os particulares o custo da medida implantada, acabando por onerar e elitizar o direito ao lazer, cultura e entretenimento em detrimento, especialmente, das camadas mais pobres da população.

                        III.2. Da não auto-aplicabilidade das leis do desconto

                        Segundo ensina Maria Helena Diniz, em seu Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, quanto à aplicação as normas podem ser classificadas como (a) de eficácia absoluta, insuscetíveis de emenda e com força paralisante total da lei que as contraria, (b) de eficácia plena, que apresentam todos os requisitos necessários para disciplinar as relações jurídicas, (c) de eficácia relativa restringível, isto é, de aplicabilidade imediata, mas passíveis de redução de sua eficácia pela atividade legislativa – eficácia limitada - e (d) de eficácia relativa complementável, onde se estampa a possibilidade mediata de produzir efeitos, dependendo de norma posterior – eficácia contida.

                        Conforme já exaustivamente argumentado, apresenta-se claro que as leis em questão padecem de latente inconstitucionalidade porém, hipotetizando a possibilidade de que fossem criados mecanismos constitucionais – competência residual – permitindo a intervenção estatal na propriedade através dos descontos de meia entrada, mesmo assim tais leis necessitariam, obrigatoriamente de uma complementação em sua esfera de implementação, ficando portanto dependentes de regulamentação e, via de conseqüência, impassíveis de executoriedade enquanto não fossem esclarecidas várias de suas lacunas.

                        Tomando-se por base a classificação retro exposta, poder-se-ia caracterizar as leis em questão como normas de eficácia relativa complementável, conforme pode-se inferir da própria lei estadual que encerra em seu art. 8º a necessidade de regulamentação pelo executivo.

                        Nessa esteira, cumpre relatar dentre as lacunas pendentes de complementação, a necessidade de esclarecer a fonte de financiamento dos descontos – que não podem ser empurrados para os particulares -, a forma de controle dos emissores das CIE, para se evitar fraudes e garantir a paridade de tratamento entre os atingidos pela medida, os instrumentos necessários a garantir a sobrevivência do setor de entretenimento, a maneira de se garantir a paridade de tratamento entre os estudantes hipossuficientes e os não estudantes na mesma condição, dentre outras imprescindíveis a assegurar o respeito aos direitos e garantias legais e constitucionais.

                        De antemão cumpre observar que a fonte de financiamento não poderia ser feita via regulamento porém, as demais formas procedimentais poderiam advir deste instrumento que, na lição de Celso Antônio Bandeira de Melo [05] são requeridas para que se disponha sobre o modo de agir dos órgãos administrativos, tanto no que concerne aos aspectos procedimentais de seu comportamento quanto no que respeita aos critérios que devem obedecer em questões de fundo, como condição para cumprir os objetivos da lei.

                        Assim sendo, em consideração aos inegáveis aspectos pendentes de regulamentação na atuação estatal, mesmo que se superasse o aspecto da inconstitucionalidade das leis atacadas, na própria dicção do art. 8º da Lei Estadual 934/97, seriam imprescindíveis para sua executoriedade a delimitação e a implementação de medidas e instrumentos capazes de garantir o coordenado e eficiente funcionamento de seus preceitos que deveriam ter em conta, imprescindivelmente, a necessidade de se evitar fraudes e garantir os benefícios citados sem discriminar e relegar a segundo plano as pessoas não abrangidas pela lei.

                        Desta feita, enquanto não fossem esclarecidos estes pontos, não poderia o Estado, ou qualquer de seus órgãos de atuação, exigir qualquer tipo de ação ou omissão por parte dos destinatários primários da norma, diferentemente do que está ordinariamente ocorrendo, valendo citar as várias notificações juntadas ao presente procedimento, feitas pela Procuradoria do Consumidor, coagindo à obediência da lei que, conforme já amplamente demonstrado, é inconstitucional e, mesmo que não o fosse, necessita obrigatoriamente de complementação, revestindo-se em verdadeiro ato arbitrário que deve ser urgentemente suspenso.

                        Abstraída as inconstitucionalidades apontadas, a principal dificuldade de implementação dos descontos reside especialmente na legitimidade conferida a qualquer associação estudantil de expedir as CIE, donde exsurge a falta de padronização e de controle dos documentos e das associações autorizadas, o que impende a negligenciada necessidade de se alcançar alguma maneira de controlar todas as associações existentes no país, bem ainda todos os documentos por elas emitidos a fim de evitar que continuem a ser os consumidores e freqüentadores dos estabelecimentos já citados, vítimas dos inúmeros fraudadores e espertalhões que se tem valido do "buraco jurídico" criado pela Medida Provisória 2.208 e subsequentes leis estaduais e municipais.

                        III.3. Do controle Difuso e da Declaração Incidental de Inconstitucionalidade

                        Em breves considerações acerca do controle de constitucionalidade cumpre registrar que no Brasil tal pode ser exercido de forma concentrada pelo Supremo Tribunal Federal ou difuso, possibilitando a todo julgador pronunciar sobre a adequação de lei ou ato normativo em face da Constituição Federal, ressalvando-se ainda que, em se tratando de Lei Municipal cabe apenas o controle difuso [06].

                        Imprescindível porém, para os fins que se buscam na presente demanda, fazer algumas considerações acerca do controle de constitucionalidade de lei estadual em sede de Ação Civil Pública.

                        Conforme se denota na doutrina e na jurisprudência, existem duas correntes se digladiando acerca do tema, defendendo os negativistas a impossibilidade de que tal se dê em ação civil sob o argumento de que, considerando que a eficácia da Ação Civil Pública é erga omnes e, com vistas disso estaria o julgador ordinário substituindo o Supremo Tribunal Federal que é o único capaz de imprimir tal efeito a uma análise de constitucionalidade de lei.

                        Doutro lado vem abalizada corrente doutrinária apontando o equívoco de tal entendimento e, nesse ponto, vêm à baila os percuscientes ensinamentos de Nelson Nery Jr [07]:

                        "O objeto da ACP é a defesa de um dos direitos tutelados pela CF, pelo CDC e pela LACP. A ACP pode ter como fundamento a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. O objeto da ADIn é a declaração, em abstrato, da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, com a conseqüente retirada da lei, declarada inconstitucional, do mundo jurídico por intermédio da eficácia erga omnes da coisa julgada. Assim, o pedido na ACP é a proteção do bem da vida tutelado pela CF, CDC ou LACP, que pode ter, como causa de pedir, a inconstitucionalidade de lei, enquanto o pedido na ADIn será a própria declaração da inconstitucionalidade da lei".

                        Diferenciam-se claramente os institutos pois, enquanto que na ação civil pública o objeto principal é o interesse público consubstanciado em uma obrigação, na ação direta de inconstitucionalidade o objeto principal e único é a declaração de inconstitucionalidade com força de coisa julgada material e com eficácia erga omnes, isto, é, na ação civil pública, a inconstitucionalidade é mera questão prejudicial, prévia ao pedido principal e deve ser decidida incidenter tantum, como premissa necessária à conclusão da parte dispositiva da sentença.

                        Finda-se de vez o argumento dos negativistas diante do fato de que, processualmente, a coisa julgada material recai apenas sobre o pedido, e não sobre os motivos, sobre a fundamentação da sentença, nada obsta que a questão constitucional volte a ser discutida em outras ações com pedidos e/ou partes diversos, além do que, vem expressamente estampado nos arts. 5º e 325 [08] a conceituação do instituto da declaração incidente, fazendo-se evidente que o mesmo somente serve à demanda de que se trata – inter partes, não podendo sobre ele incidir a eficácia ampliada prevista na lei 7.347/85.

                        Esclarecedor o julgamento da Reclamação n. 1.733-SP, no voto do Ministro Celso de Mello, que afirma verbis:

                        EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO PREJUDICIAL. POSSIBILIDADE. INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

                        - O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina.(Informativo n. 211, de 1º de dezembro de 2000)

                        De uma forma ou de outra, a presente demanda visa atacar os atos concretos dos organismos estatais que têm sistematicamente coagido os particulares a aceitar a indevida e inconstitucional invasão de sua propriedade que, obviamente, exigirá uma declaração antecedente da inconstitucionalidade das leias atacadas – Estadual e Municipal – porém, na remota possibilidade de o juízo se entender limitado a julgar este precedente – inconstitucionalidade – ainda socorre a presente o pedido alternativo de suspensão da coação estatal em razão da absoluta inidoneidade de mantença da exigência da lei que não reúne em si todos os elementos necessários à sua exequibilidade – normas de eficácia relativa complementável.

Sobre o autor
Konrad Cesar Resende Wimmer

promotor de Justiça da Cidadania da Comarca de Gurupi (TO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WIMMER, Konrad Cesar Resende. Ação civil pública contra desconto para portadores de carteira de estudante. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 797, 8 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16636. Acesso em: 25 nov. 2024.

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