Socialistas, progressistas e o engodo religioso

05/09/2022 às 14:40
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Crítica ao engodo da religiosidade de candidatos do ramo socialista-progressista.

Tem sido comum a apresentação de atores políticos como se fossem pessoas religiosas, numa evidente manobra desonesta a fim de ludibriar parcela importante do eleitorado. Assim não é incomum ver figuras como Haddad, Manuela, Freixo entre outros comparecendo a missas e cultos cristãos e até mesmo comungando. Essas são pessoas sabidamente não religiosas (são mesmo agnósticos ou ateus), não se tendo a menor notícia de sua frequência a qualquer espécie de culto durante todo o tempo, a não ser nas proximidades de eleições. Para eles colocar uma hóstia e vinho na boca na Eucaristia ou um pastel de feira com caldo de cana é exatamente a mesma coisa, ou seja, nada mais do que uma encenação eleitoreira.

Dentre essas figuras, desponta o ora candidato à Presidência conhecido pela alcunha de Lula. Igualmente vem tentando se aproximar dos Evangélicos, bem como ostentando suas ligações com grupos da “Teologia da Libertação” para se dizer “cristão” (sic). Chega a existir uma foto publicitária sua de mãos postas como em oração, numa teatralidade de causar engulhos em porcos.

O grande problema é que o citado candidato, a exemplo dos demais mencionados, abraça declaradamente uma teoria e prática política de natureza estritamente materialista. Além disso, não somente mantém relações de amizade, mas concedeu e advoga apoio, até mesmo financeiro com dinheiro público brasileiro, a ditadores da mesma ala ideológica (socialista/comunista) que praticam reiteradamente ações de perseguição religiosa em geral e, especialmente, a chamada “Cristofobia”, até mesmo com fechamento de Igrejas e prisão de sacerdotes. O exemplo mais recente é o do ditador da Nicarágua, Daniel Ortega. Em suma, o discurso de Lula não se adequa de forma alguma ao seu real comportamento.

Assim também o partido de que faz parte (PT) em passeatas e protestos costuma ter como grito de guerra: “Igreja Fascista! Você está na nossa lista”! Isso sem qualquer reação, por mínima que seja, de repúdio por parte de Lula ou de outras lideranças.

E agora, quando confrontado com essas contradições irredutíveis, o candidato em questão e seus defensores apresentam o seguinte argumento: “Lula sancionou a ‘Lei de Liberdade Religiosa’”.     

Na qualidade de jurista, muito me espantou essa alegação. Dois são os motivos, os quais precisam ser expostos a todos:

Em primeiro lugar, não foi Lula ou qualquer político atual, nem mesmo alguma autoridade pública, quem assegurou ou assegura a liberdade religiosa como um direito fundamental no Brasil. Esse direito emana de normas Constitucionais e não de qualquer lei ordinária sancionada por Lula nem por ninguém. Qualquer legislação infraconstitucional aprovada deve submeter-se obrigatoriamente a esse ditame constitucional que, aliás, é Cláusula Pétrea (artigo 60, § 4º., CF). Independe de vontade política ou jurídica de quem quer que seja, enquanto vigente a Carta Magna de 1988, o direito de liberdade religiosa, o qual não pode ser suprimido nem mesmo por meio de Emenda Constitucional. A única maneira de alterar esse estado de coisas seria com a promulgação de uma nova Constituição (Poder Constituinte Originário). Iniciativa esta, aliás, muitas vezes mencionada como desejável por Lula e praticamente toda a esquerda ou ala progressista brasileira e sua mentalidade revolucionária.

É preciso dizer que essa liberdade religiosa é assegurada constitucionalmente, na verdade, desde a Lei Maior de 1824, sendo repetida nas demais Constituições Brasileiras com alguns ajustes e ampliações. [1] Apenas por ilustração, relacionam-se alguns dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade religiosa no Brasil de acordo com a Constituição de 1988, ora em vigor:

Artigo 5º., VI, CF: estabelece a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

Artigo 5º., VII, CF: assegura a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

Artigo 5º., VIII, CF: determina que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Artigo 19, I, CF: veda aos Estados, Municípios, à União e ao Distrito Federal o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (Aqui está estabelecida pela CF a distinção entre “Estado Laico” e “Estado Ateu, Anticlerical ou Antirreligioso”. O Brasil é um Estado Laico, que respeita todas as crenças religiosas, assegura seu livre exercício e admite também o agnosticismo e até o ateísmo. Não há religião oficial, mas não pode haver proibição de religiões, opressão ou censura).

Artigo 150, VI, “b”, CF: veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto.

Artigo 210, § 1º., CF: assevera que serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais, determinando seu § 1º que o ensino religioso, de matéria facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Artigo 213, CF: dispõe que os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação e assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.

Artigo 226, § 2º, CF: estabelece que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

Dessa forma é mentira deslavada pretender dizer que Lula ou qualquer outra pessoa tenha sido responsável, em seu governo, pós 1988 e até mesmo pós 1824, pela garantia da liberdade religiosa no Brasil. Ao contrário, todos os agentes políticos e públicos em geral, estiveram sempre submetidos à obediência de normas constitucionais imperativas que lhes obrigavam e obrigam ao respeito e a assegurar a liberdade religiosa no país. Não se trata de favor de ninguém e sim de dever constitucionalmente imposto de forma incontornável.

Em segundo lugar, há realmente uma lei sancionada num dos governos de Lula, a qual trata muito parcamente da liberdade religiosa, ou mais especificamente da tolerância religiosa. Trata-se de uma mera “Lei Ordinária”, a Lei 11.635/07, a qual, na realidade apenas institui o “Dia de Combate à Intolerância Religiosa”, um recurso meramente demagógico e retórico. Como visto, a liberdade religiosa no Brasil não depende, desde 1824, de lei ordinária alguma, é garantida constitucionalmente. Aos políticos, à sociedade civil, ao Estado e aos cidadãos em geral resta apenas o dever de assegurar o cumprimento da Constituição. O resto é balela.

Na verdade a Lei 11.635/07 é um diploma legal minúsculo, de apenas três artigos que somente institui o “Dia de Combate à Intolerância Religiosa” em 21 de janeiro. E mais, não há sequer uma determinação segura do sentido que se pretendeu dar à intolerância religiosa que se pretende combater. A expressão é dúbia e assim permanece nessa legislação apequenada. Seria o intento combater qualquer espécie de opressão às religiões e aos religiosos? Ou seria a ideia do combate voltado exatamente ao intuito de limitar ou coartar o exercício religioso que se considere intolerante com determinadas agendas (v.g. defesa do aborto, abjeção à família tradicional, ideologia de gênero, relativismo moral e cultural, imanentização de virtudes, despersonalização do ser humano etc.)? A lei referida não deixa isso claro. É evidente que tal legislação deve ser interpretada à luz da Constituição e então somente pode ser legítima se seu objetivo é o de assegurar o livre exercício de crença, culto e todas as manifestações religiosas, sem ingerência do Estado ou de quem quer que seja. Mas, a forma com que a lei foi produzida não deixa isso claro e, ademais, considerando as pautas típicas de partidos como PT, PSOL, PCB e outros, não oferta nenhuma garantia de que a ideia não seja a imputação de intolerância às religiões e a pretensão de inserir, ainda que sutilmente e embrionariamente, um instrumento de contenção e opressão à atividade religiosa. [2]Ademais, reconhecido constitucionalmente o direito à liberdade religiosa, não tem cabimento sua regulamentação. Liberdade e regulamentação são coisas antagônicas, o que não quer dizer que a liberdade (qualquer uma) seja ilimitada. Mas, a princípio, estabelecida uma liberdade, sua regulamentação milimétrica significa sua extinção. A semelhança é muito grande com o que ocorre com a defesa pelos mesmos atores em destaque quanto à regulamentação das redes sociais e da liberdade de expressão. Ora, isso é matar a liberdade de expressão, jamais garanti-la. Isso é tudo, menos liberdade de expressão, é censura, opressão, vontade de poder totalitário, qualquer coisa, menos liberdade de expressão.  

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Em suma, Lula e outros que gostam de se chamar de “progressistas”, com sua mentalidade revolucionária centrada na força do negativo (desconstrução), nunca podem ser referência de confiança quanto ao reconhecimento da importância da liberdade religiosa. Suas ações vão na contra – mão desse reconhecimento e não é de se estranhar que pretendam, com tanta avidez, uma nova Constituição.

Também há a Lei 10.825/03, que apenas repete o que já é constitucionalmente garantido, prevendo o seguinte no artigo 44, § 1º., do Código Civil:

São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.

Como se vê, não se trata daquilo que se poderia legitimamente chamar de uma “Lei de Liberdade Religiosa”, conforme alardeado, mas apenas de mais uma norma ordinária inserida no Código Civil por força de obrigação constitucional, obrigação esta que poderia muito bem ser afastada mediante uma nova constituinte que poderia derrubar até mesmo as atuais “Cláusulas Pétreas”. E essa defesa de nova constituinte é algo concreto nos discursos ditos “progressistas” já há muitos anos (1999, 2006, 2022 e por aí vai). [3]

As palavras de um político devem ser julgadas não de acordo com o seu conteúdo meramente formal, mas em comparação com as ideologias que defende, com o conjunto de suas obras, de suas declarações de intenções e com as figuras históricas e da atualidade a que se filia, apoia e venera. Também hão de ser cotejadas, no âmbito jurídico, com a realidade normativa em termos formais e materiais. Dessa forma é fácil demais reconhecer a verdade e a mentira.


[1] Desde 1824 a liberdade religiosa só tem se ampliado com a adoção de um modelo de Estado Laico, que não permite uma religião oficial e assegura o direito a todos os credos de serem professados ou não.  Conforme chama a atenção Castro, a liberdade de religião na Carta de 1824 era limitada, pois havia a religião católica como oficial, de modo que até mesmo o acesso a registros civis (v.g. casamento, nascimento , óbito) eram condicionados. O movimento histórico tem sido, portanto, de ampliação da liberdade de religião nas Cartas Constitucionais brasileiras ao longo do tempo. Cf. CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito Geral e Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 366.

[2] Há ainda outros diplomas sancionados em governos de Lula e Dilma que tratam de questões religiosas. São sempre leis ordinárias irrelevantes aprovadas pelo Congresso, indicando algum dia comemorativo e que não seriam objeto de veto por mera questão eleitoral, até quando essa questão seja importante. São exemplos dessas legislações inócuas: O Dia Nacional da Marcha para Jesus em 2009, o Dia Nacional do Evangélico foi criado em 2010 em governos de Lula. E o Dia Nacional da Proclamação do Evangelho no governo da Dilma Roussef em 2013. Cf. NOGUEIRA, Ítalo. Lula lista leis de seu governo para tentar quebrar resistência entre evangélicos. Disponível em https://br.noticias.yahoo.com/lula-lista-leis-seu-governo-135900796.html , acesso em 30.08.2022.

[3] Cf. GERCHMANN, Léo. Lula Defende uma Nova Constituinte. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc29089906.htm , acesso em 30.08.2022. OLIVEIRA, Mariana. Lula falou em Constituinte em 2006; Deputado protocolou PEC neste mês. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/lula-falou-em-constituinte-em-2006-deputado-protocolou-pec-neste-mes.html , acesso em 30.08.2022. OLIVEIRA, Wesley. Ala do PT defende que Lula convoque uma Assembleia Constituinte se eleito. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/ala-do-pt-defende-que-lula-convoque-uma-constituinte-se-for-eleito/ , acesso em 30.08.2022. Além disso, é declarado escancaradamente que Lula não queria o texto da CF/88, queria “algo mais radical, que tornaria o país ingovernável”. Cf. ALCÂNTARA, Diogo. Após 25 anos da Constituição, Lula justifica voto contrário do PT. Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/apos-25-anos-da-constituicao-lula-justifica-voto-contrario-do-pt,ded5e2e05b471410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html , acesso em 30.08.2022.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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