Os precedentes judiciais e a proteção da confiança no ordenamento jurídico brasileiro

08/09/2022 às 13:13

Resumo:


  • O sistema de precedentes obrigatórios foi adotado no Brasil para promover segurança jurídica, previsibilidade e isonomia nas decisões judiciais, conforme estabelecido pelo Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015).

  • As técnicas de superação de precedentes, como overruling e overriding, permitem a revogação total ou parcial de decisões anteriores, respeitando os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

  • O princípio da proteção da confiança exige do Poder Judiciário a manutenção de expectativas legítimas da sociedade, sendo necessário um comportamento estatal previsível, especialmente ao modificar entendimentos consolidados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO

Diante da instabilidade judicial, calcada em pronunciamentos jurisdicionais imprevisíveis, surgiu a necessidade de adoção de um sistema de precedentes obrigatórios, cuja finalidade constitui-se na busca pela segurança jurídica, pautada na previsibilidade das decisões, e no resgate da confiança social no sistema brasileiro de justiça. No entanto, reconhecendo-se a inevitável mutabilidade jurisprudencial, imperiosa à evolução do direito, afirma-se que a confiança legitimamente depositada na continuidade das situações jurídicas já consolidadas deve ser preservada. Diante desse panorama, o presente estudo tem por finalidade analisar a incorporação e compatibilização do sistema de precedentes obrigatórios ao direito brasileiro, bem como se debruçar sobre a necessidade de compatibilização das modificações jurisprudenciais com o princípio da proteção da confiança.

Palavras-chave: Precedentes. Segurança jurídica. Modificações jurisprudenciais. Proteção da confiança.

ABSTRACT

In the face of judicial instability, based on unforeseeable jurisdictional pronouncements, there was a need to adopt a system of mandatory precedents, the purpose of which is to seek legal security based on predictability of decisions and to restore social trust in the Brazilian system of justice. However, recognizing the inevitable mutability of case law, which is imperative to the evolution of law, it is stated that the legitimate trust placed in the continuity of already consolidated legal situations must be preserved. In view of this scenario, the purpose of this study is to analyze the incorporation and compatibilization of the system of mandatory precedents in Brazilian law, as well as to consider the need to reconcile jurisprudential changes with the principle of the protection of trust.

Keywords: Precedents. Legal certainty. Legal changes. Protection of trust.

  1. Introdução

Constitui debate de relevo no seio acadêmico e doutrinário o grau de imprevisibilidade assumido por decisões judiciais que dialogam com hipóteses fáticas semelhantes. É como se o jurisdicionado estivesse diante de uma empreitada jurídica, cujo resultado depende mais da sua própria sorte que do direito posto em si.

Nota-se que a liberdade conferida ao órgão julgador na apreciação de fatos e consideração dos substratos normativos que constituirão arcabouço decisório admite, ainda que mediatamente, que seja feita verdadeira formatação da norma jurídica aplicável ao caso sub judice. Não significa dizer que não seja salutar atribuir determinado grau de liberdade no desempenho da função judicante. O que se quer dizer é que a norma jurídica empregada deve ser fruto de uma construção institucionalizada, pautada em um sistema de precedentes judiciais. Caso contrário, permitir-se-á a subsistência de um sistema incongruente, inseguro e anti-isonômico.

A necessidade de estabilidade dos entendimentos jurisdicionais tem se tornado uma preocupação dos mais variados ordenamentos jurídicos, tanto os cujas bases jurídicas extraem-se do common law, quanto do civil law.

Nota-se que, além dessa necessidade, há outra, qual seja, a busca por mecanismos adequados à alcança-la, realidade também partilhada pelo direito brasileiro. Daí porque o ordenamento jurídico brasileiro, através do Novo Código de Processo Civil, trouxe um sistema de precedentes obrigatórios, exatamente com a função de cumprir esse desiderato.

No entanto, ao passo que a estabilidade revela-se como valor a ser perseguido, especialmente num sistema incongruente e insuflado por decisões contraditórias, mesmo diante de hipóteses fáticas análogas, reconhece-se que a jurisprudência e os precedentes não podem ficar totalmente à mercê dessa estabilidade, sob pena de macular a própria evolução do direito.

Nesse diapasão, os fenômenos de modificações jurisprudenciais revelam ferramentas também necessárias, especialmente no que toca à imperiosidade de oxigenação do direito e alinhamento às transformações sociais.

Tarefa que não se revela fácil é compatibilizar a natural necessidade de evolução jurisprudencial com a observância às legítimas expectativas depositadas pela sociedade na manutenção de entendimentos consolidados, que constituem base do princípio da proteção da confiança.

Assim, além de constituir objetivo do presente trabalho analisar o sistema de precedentes obrigatórios adotados pelo direito brasileiro, que funciona como mecanismo de proteção da segurança, estabilidade e previsibilidade do próprio ordenamento jurídico, também é imperioso que se firme a ideia de que, a despeito da inevitável necessidade de modificação jurisprudencial, também é necessário se conferir proteção à confiança legítima da sociedade na manutenção de situações jurídicas já consolidadas.

Para alcançar tais desideratos, buscar-se-á, inicialmente, as origens históricas dos precedentes judiciais, perpassando pelos dois grandes sistemas de direito conhecidos: o common law e o civil law. Posteriormente, analisar-se-á a incorporação e compatibilização do modelo de precedentes ao direito brasileiro, com especial enfoque no Novo Código de Processo Civil, e as suas principais características, técnicas de confronto e superação. Por derradeiro, debruçar-se-á sobre a compatibilização da evolução jurisprudencial com a necessidade de respeito à confiança na proteção às situações jurídicas já consolidadas.

  1. Análise comparativa e contextualizadora dos precedentes judiciais nos sistemas da common law e civil law

Tal como a configuração hodierna de um Estado encontra guarida no seu processo histórico e cultural de formação, não é diferente com o Direito. São identificáveis dois grandes sistemas nos quais se extraem tradições jurídicas remotamente dissociáveis, com características e institutos próprios, mas que passaram a apresentar notáveis pontos de convergência contemporaneamente. São os sistemas jurídicos da common law e civil law.

Esses dois grandes sistemas recebem tradicionalmente a alcunha de famílias, que reservam como uma de suas finalidades reunir as principais características dos diversos tipos de direito espalhados globalmente. Como ressalva René David, estes grupos de direitos, porém, qualquer que seja o seu valor e qualquer que possa ter sido a sua expansão, estão longe de dar conta de toda a realidade do mundo jurídico contemporâneo (DAVID, 2002, p. 23).

Tendo em vista que a eficácia dos precedentes em cada sistema jurídico apresenta nuances específicas e que teve o common law como sustentáculo teórico, este será analisado inicialmente.

2.1. Os precedentes na família do common law

O common law engendrou-se com base no direito inglês, cujos fundamentos se espraiaram sobre diversos países, como os Estados Unidos, Irlanda e África do Sul, com os quais a Inglaterra manteve relações coloniais.

Inúmeras são as características que fizeram desse sistema um modelo único e tradicionalmente diferente do civil law, de tradição romano-germânica, como a formação de um direito essencialmente jurisprudencial e pautado na solução de casos concretos levados à apreciação do Poder Judiciário pelos common lawyers.

De maneira similar ao que ocorreu com a jurisprudência no Brasil, houve certa dificuldade em se delimitar se a atividade judicante era meramente declaratória ou criativa, de modo que duas teorias se insurgiram para tratar do tema.

A primeira teoria, denominada declaratória, apregoava que ao juiz lhe incumbia tão somente a tarefa de declarar o direito (BLACKSTONE, 1979, p. 69), tendo por base os costumes gerais já observados. Já a teoria constitutiva ou positivista enuncia que o direito é produto da manifestação de vontade dos magistrados, considerados detentores de law making authtority (poder de criar o direito). A lei era considerada um produto da vontade judicial, não sendo, portanto, descoberta, mas criada. Embora possuam algumas falhas em sua formulação, são teorias compatíveis com o stare decisis (MARINONI, 2010, p. 24-32).

Convém advertir que o common law não se confunde com a doutrina do stare decisis, sendo entendido aquele como os costumes gerais que determinavam o comportamento dos englishmen, em contraposição aos direitos tribais que vigiam anteriormente à sua formação (DAVID, 2012, p. 359). Embora faça parte hodiernamente do commmon law, o stare decisis possui origem muito menos remota, uma vez que a elaboração de regras e princípios regulando o uso dos precedentes e a determinação e aceitação da sua autoridade são relativamente recentes, para não se falar da noção de precedentes vinculantes (binding precedentes), mais recentes ainda (SIMPSON, 1973, p. 77).

Ademais, o stare decisis revela-se uma faceta do moderno sistema do common law, funcionando como um mecanismo cujas finalidades precípuas são aumentar o grau de previsibilidade das decisões judiciais, privilegiando a segurança jurídica e certeza do direito (CRUZ E TUCCI, 2004, p. 152-153).

Antes da adoção desse modelo, as decisões emanadas pelos magistrados eram catalogadas nos statute books, cuja função era a de registrar os costumes da corte. O simples registro das decisões, embora configurasse fonte do direito apta a guiar casos vindouros, permitia que existissem muitos julgamentos contraditórios, o que colocava em cheque a certeza do direito e o grau de confiabilidade pelos jurisdicionados.

Em termos procedimentais, a doutrina ou regra do stare decisis impunha que os precedentes fossem aplicados consoante uma verticalidade hierárquica. Em outras palavras, os entendimentos jurídicos firmados em uma corte superior devem ser observados pelas cortes inferiores que com ela partilham vínculo hierárquico (CAPPELLETI, 1992, p. 80).

Com a maturação desta teoria, a aplicabilidade vertical dos precedentes cedeu lugar também à aplicabilidade horizontal. Vale dizer, o tribunal de onde emanou o pronunciamento judicial estaria vinculado a este para a solução de casos futuros. A vinculação a precedentes, portanto, transcendia o plano unicamente vertical, alcançando, também, o horizontal, de modo que a house of lords (Câmara dos Lordes, referindo-se a uma das casas do parlamento inglês) e as courts of appeal (cortes superiores de apelação) estariam vinculadas aos próprios precedentes (BUSTAMANTE, 2012, p. 76).

Com efeito, assevera a doutrina que o caso Beamish v. Beamish (1861) foi o marco prático da afirmação desse entendimento, de modo que eventual afastamento aos precedentes afirmados consubstanciaria a assunção de uma anômala função legiferante (CRUZ E TUCCI, 2004, p. 158).

Em 26 de julho de 1966, no entanto, por ocasião do Pratice Statement, documento de cunho declaratório editado pela House of Lords, reconheceu-se a possibilidade de afastamento dos próprios precedentes, por meio do overruling (CRUZ E TUCCI, 2004, p. 159). Embora constitua importante ferramenta na busca por maior previsibilidade judicial, eventual engessamento jurisprudencial poderia conduzir a injustiças. Vale dizer, a possibilidade de aplicação do overruling (técnica de superação dos precedentes) encontra guarida no próprio movimento de transformação histórica do direito e da sociedade, não podendo o Poder Judiciário isentar-se de apreciá-lo.

2.2. Os precedentes na família do civil law

Nos países cuja família adotada é o civil law, a lei revela-se como principal fonte do direito. Através da compilação e codificação de normas escritas e costumeiras, a tradição jurídica romano-germânica erige-se como um sistema normativo legal.

As bases desse sistema podem ser extraídas, originariamente, do direito romano, especialmente no que se atine à introdução do corpus Iuris Civilis, pelo imperador Justiniano, cujo objetivo precípuo era o de unificar o direito.

Todavia, foi através da Revolução Francesa que o direito codificado ganhou força. Firmou-se a ideia de que, com base no direito escrito e codificado, os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade seriam alcançados, eis que orientaria a todos quanto à observância desses valores.

Com a paulatina expansão romano-germânica sobre os povos europeus, a família do civil law ganhou especial relevo, tendo atingido a posição de uma das principais famílias jurídicas, ao lado da família do common law.

Exatamente porque nos países cuja tradição jurídica seja o civil law a principal fonte do direito é a lei, os precedentes judiciais geralmente são desprovidos de eficácia vinculante, possuindo, tão somente, eficácia persuasiva, eis que sua função se pauta na orientação de casos futuros (CRUZ E TUCCI, 2004, p. 101). Isso porque o próprio papel da jurisprudência como fonte do direito foi relegado, no civil law, a segundo plano. Ora entendia-se que era fonte secundária, ora informal do direito.

Nesse diapasão, as decisões judiciais não são consideradas fonte de produção do direito, mas apenas fonte de conhecimento do conteúdo normativo da lei, e que, portanto, não se impõem ao juiz. Assim, o precedente teria lugar somente em ambiência de dúvida, cuja finalidade seria a de indicar o melhor caminho a ser seguido pelo órgão julgador no processo hermenêutico (CRUZ E TUCCI, 2004, p. 13).

Ademais, a valorização do processo de codificação da lei escrita fez com que a doutrina se sobrepusesse à jurisprudência, sendo desprezados, em consequência, os costumes gerais e jurisprudenciais (SOARES, 1999, p. 28).

Paulatinamente, o abandono ao Estado estritamente legalista, com seio no positivismo jurídico, permitiu que o Direito buscasse em outras fontes real significado a sua completude. O reconhecimento de que a lei per si não trazia a solução para todos os casos concretos, especialmente diante da gradual complexidade das relações jurídicas, foi essencial para a derrocada do positivismo e ascensão do pós-positivismo.

A valorização do poder criativo do juiz, especialmente no que diz respeito ao trato com as cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, permitiu a aproximação dos sistemas da common law e civil law. O primeiro concedeu gradual prestígio ao direito legislado, ao passo que o segundo atribuiu crescente valor aos precedentes (TARUFFO, 2011, p. 8)

Desse modo, a tradicional separação estanque dos sistemas jurídicos, atribuindo-se ao common law a pecha de direito jurisprudencial pautado em precedentes e ao civil law a pecha de legalista não subsiste contemporaneamente. O que se observa é um verdadeiro diálogo sistêmico com influências recíprocas.

A interrelação dessas famílias jurídicas tem levado inúmeros doutrinadores a anunciarem tradições jurídicas híbridas, como a observada no Brasil hodiernamente. Exemplo disso é o prestígio conferido aos precedentes judiciais e sua eficácia vinculante pelo direito brasileiro com a edição do Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015) e mesmo antes, com a eficácia vinculante das decisões proferidas em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade levado a cabo pelo Supremo Tribunal Federal.

  1. A incorporação e compatibilização dos precedentes ao direito brasileiro

Neste item serão delineados os principais pontos acerca da incorporação e compatibilização dos precedentes ao direito brasileiro, desde suas nuances históricas, definição jurídica, diferenças com outros institutos.

Com o incremento da litigiosidade e judicialização dos conflitos em uma sociedade cada vez mais multifacetada, é vedado ao sistema processual manter suas bases teóricas e linhas procedimentais. É bem verdade que o direito deve acompanhar as transformações sociais, sempre reestruturando seus institutos. De igual modo, cabe à ciência processual remodelar-se, propondo alternativas e sempre buscando harmonizá-las às transformações mais hodiernas.

3. 1. Modalidades de litigiosidade: individual; coletiva; de alta intensidade, serial ou de massa

Preleciona Marcelo Pereira de Almeida (2013, p. 171) que a ciência processual deve se reestruturar para lidar com diversas espécies de litigiosidade, sendo três as catalogadas pela doutrina moderna.

Inicialmente, como bem destaca Dierle Nunes (2011, p. 40), há a litigiosidade individual ou de varejo, cuja tradicionalidade impunha ao operador do direito o desenvolvimento de técnicas com o fito de solucionar lesões ou ameaças de lesões de forma isolada.

A litigiosidade coletiva, por seu turno, envolve direitos coletivos e difusos. A lesão ou ameaça de lesão ocorre aqui em razão da violação de direitos ou interesses de uma coletividade de pessoas determinadas ou indeterminadas, conforme se esteja abordando a categoria de direitos coletivos ou difusos.

Inúmeros diplomas legais foram editados com o fito de tratarem de demandas coletivas, como a Ação Popular (Lei nº 4.717/65), a Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/85) e, mais recentemente, o Código de Defesa do Consumidor, diploma destinado a tratar de relações jurídicas consumeristas, incrementando a defesa de direitos transindividuais.

Entretanto, não se afigura conveniente tecer prolixas considerações acerca da litigiosidade coletiva, uma vez que a terceira espécie de litigiosidade, ou seja, a de alta intensidade, serial ou de massa, se alinha mais às bases teóricas do presente trabalho.

Este tipo de litigiosidade potencializa ações repetitivas, cujas pretensões, embora contenham suas especificidades, abordam questões comuns de fato ou de direito (ALMEIDA, 2013, p. 174).

Nessa toada, lidar com o ajuizamento de pretensões de alta intensidade, que abarrotam cada vez mais o Judiciário, revela-se importante tarefa a ser desempenhada pelo operador do direito, sobretudo quando se busca coerência, segurança e previsibilidade do sistema de justiça brasileiro.

3.2. O movimento de reestruturação processual e o emprego dos precedentes nas demandas seriais ou de massa

Não constitui escopo do presente tópico abordar o movimento de reestruturação processual em sua completude, mas sim apontar quais foram suas principais nuances e em que medida puderam exprimir a necessidade de emprego de um sistema judicial de precedentes.

Durante as últimas décadas, o legislativo brasileiro foi inflado de projetos de lei destinados a modificar o sistema processual vigente. Com o advento da Constituição de 1988 e a valorização da celeridade processual e da segurança jurídica, a necessidade de reformulação das bases processuais do ordenamento jurídico brasileiro foi mais patente.

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Foram discutidas propostas de alteração do Código de Processo Civil e Penal por comissões de juristas renomados, como Ada Pellegrini Grinover, alguns ministros do STJ à época, como Sálvio de Figueiredo Teixeira e Athos Gusmão Carneiro, e deflagrados processos legislativos de alteração dos diplomas processuais vigentes. Foram, entretanto, alterações legislativas pontuais que, sob o argumento de tornar o sistema processual mais operável e efetivo, acabaram tornando-o mais uma colcha de retalhos com inúmeras alterações que, ao revés, não cumpriram tal desiderato.

Somente através da edição da Emenda Constitucional n° 45, de 8 de dezembro de 2004, o movimento reformista se intensificou, objetivando uma reestruturação racional dos processos, e embebido dos discursos da celeridade e segurança jurídica.

Vislumbrou-se, à época, um modelo de processo com diálogo permanente com a sociedade civil, em cujas bases a participação social, a publicidade, a valorização da segurança e a cooperação entre os órgãos judiciais e os jurisdicionados seriam potencializados.

Nesse diapasão, constatou-se que as reformas processuais deveriam lançar suas premissas numa estruturação processual que atendesse, de um lado, aos princípios processuais constitucionais, com a efetivação normativa necessária, e de outro, aos resultados mais úteis possíveis, dentro de uma perspectiva de Estado Democrático de Direito (FIX-ZAMUDIO, 1977, p. 315-348).

Os precedentes judiciais assumiram importante papel nesse contexto e, se comparados ao modelo veiculado nos países de common law, possuem feição diversa. Nesses países, não há, como regra, um procedimento específico para a formação de precedentes judiciais, tampouco se pode dizer que uma decisão judicial tenha a finalidade precípua de se converter em precedente. O que ocorre é uma natural conversão em precedentes, quando determinadas decisões são confrontadas com outras anteriores semelhantes em questões fáticas e jurídicas.

As reformas processuais paulatinamente inseridas no cenário jurídico brasileiro com o fito de fortalecerem os precedentes apontam para a adoção direta de um sistema de precedentes. Vale dizer, constrói-se proativamente um precedente a partir de uma decisão judicial, com a finalidade de se tornar um paradigma para casos vindouros.

Esse fenômeno que direciona o sistema de precedentes adotado no Brasil recebe a alcunha de precedentes uniformizadores de jurisprudência, ou, em outras palavras, precedentes formados consoante um procedimento específico, que visam afastar divergências jurisprudenciais (MADEIRA, 2014, p. 276).

O fortalecimento dos precedentes pode ser observado também quando estes projetam eficácia vinculante (binding precedentes), como usualmente nas ações do controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade e mais recentemente, através o CPC de 2015, no incidente de resolução de demandas repetitivas e recursos especial e extraordinário repetitivos.

Sua gradual importância tem sido notada pela doutrina nacional, especialmente na lavra de Luis Roberto Barroso, cuja exortação colaciona-se abaixo:

Nos últimos anos, por fatores diversos, a jurisprudência dos tribunais, notadamente do STF, tornou-se elemento fundamental para a estabilidade e a harmonia do sistema jurídico. A observância dos precedentes liga-se a valores essenciais em um Estado de direito democrático, como a racionalidade e a legitimidade das decisões judiciais, a segurança jurídica e a isonomia.

A incorporação e aplicabilidade dos precedentes no sistema processual brasileiro, no entanto, não fica imune a críticas. Parcela da doutrina apregoa que o seu emprego conduziria a uma concentração de poderes nos órgãos de cúpula, desprestigiando as instâncias inferiores.

É o que afirma Barbosa Moreira, para quem bloquear, de forma direta ou indireta, na produção dos órgãos situados na base da pirâmide judiciária, os eventuais desvios das teses firmadas em grau superior significa, em certos casos, barrar precocemente um movimento, talvez salutar, de renovação da jurisprudência (2007, p. 311).

Ressalvadas as críticas respeitáveis da doutrina, a incorporação e aplicabilidade dos precedentes ao direito brasileiro revelam-se positivas, quando se busca eficiência, segurança, previsibilidade e isonomia na ordem jurídica.

  • Decisão, precedente e jurisprudência: distinções fundamentais

Com o desiderato de promover uma clara abordagem sobre os precedentes judiciais, um dos escopos do corrente trabalho, revela-se essencial sua confrontação com outros institutos com os quais possui alguma similitude.

Inicialmente, cumpre destacar que precedente judicial não se confunde com decisão judicial. A decisão judicial é o ato jurídico de onde se extrai a solução do caso concreto, encontrável no dispositivo, e o precedente, comumente retirado da fundamentação. A decisão é, pois, o conjunto e o continente, com no mínimo esse duplo conteúdo (DIDIER JR, BRAGA e OLIVEIRA, 2016, v.2, p. 457). Tem-se, portanto, que todo precedente constitui uma decisão judicial, mas a recíproca não é verdadeira.

Para que uma decisão judicial tenha animus de tornar-se um precedente, afigura-se necessário que possua determinadas características que a façam presumir como fonte normativa capaz de guiar casos vindouros. Em outras palavras, a decisão deve contar com a potencialidade de se firmar como um paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados (MARINONI, 2010, p. 215-216).

Conforme afirmado, não é qualquer decisão judicial que tem a aptidão para servir como tese jurídica para casos futuros. Ela deverá transcender o caso concreto sub judice.

A doutrina nacional e alienígena trabalham com inúmeras definições de precedente, sendo certo que não há a fixação de um conceito único como correto. À guisa exemplificativa, em uma concepção em sentido amplo, a doutrina alemã, na lavra de Robert Alexy, preleciona que o termo é usualmente empregado para significar qualquer decisão anterior possivelmente relevante para um caso que deva ser atualmente decidido (ALEXY, 1997, p. 23). Já em uma acepção estrita, a doutrina espanhola, na lavra de Alfonso Ruiz Miguel e Francisco J. Laporta, associa precedente à ideia de vinculação, correspondendo a decisões judiciais dotadas de efeitos vinculantes (RUIZ MIGUEL, Alfonso; LAPORTA, Francisco J., 1997, p.269).

No que se atina à doutrina nacional, é possível afirmar que precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos (DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA, 2016, vol. 2, p. 455).

De maneira semelhante, Miranda de Oliveira (2012, p. 699) estatui que o chamado precedente, utilizado no modelo judicialista, é o caso já examinado e julgado, cuja decisão primeira sobre o tema atua como fonte para o estabelecimento (indutivo) de diretrizes para os demais casos a serem julgados.

Nota-se que, consoante se estatui acima, a definição de precedente vincula-se à utilização de um padrão decisório que deveria ser adotado por juízes em casos semelhantes. E para que um pronunciamento judicial possa ser utilizado como padrão decisório para casos vindouros, necessário se faz que sua autoridade e consistência sejam irradiadas no tempo.

Precedente não se confunde, ainda, com jurisprudência, embora sejam corriqueiramente empregados indistintamente. Há uma distinção quantitativa e outra qualitativa, que merecem ser delineadas a seguir.

Sob o aspecto quantitativo, precedente constitui uma decisão individualizada de um caso concreto (CRUZ E TUCCI, 2012, p.98), cujo núcleo pode servir de diretriz para o julgamento posterior de casos semelhantes, ao passo que jurisprudência consiste em reiteradas decisões que guardam relação com determinada questão jurídica.

No mesmo sentido, diversamente de precedente, a jurisprudência, em sua acepção contemporânea, traz intrínseca a ideia de conjunto, de uma pluralidade de decisões (SANTOS, 2012, pp. 142/143). Nota-se, consoante o autor, uma distinção de caráter quantitativo: enquanto o termo jurisprudência designa um conjunto de decisões, o termo precedente espelha, por essência, a ideia de uma decisão pronunciada pelo Judiciário.

Por seu turno, sob o aspecto qualitativo, o precedente é formado com base na decisão do órgão julgador que analisa se a ratio decidendi de um julgado anterior é capaz de trazer os fundamentos jurídicos suficientes para a solução que se espera. Caso positivo, o precedente formado fornece uma regra universalizável, isto é, com potencialidade de se firmar em casos semelhantes (TARUFFO, 2011, p. 141).

  • Ratio decidendi e obter dictum: as partes que integram o precedente

Tão ou mais difícil que extrair o conceito de precedente é a delimitação do que constituem as partes que o integram: ratio decidendi e o obiter dictum.

Consoante adverte Marinoni (2010, p. 223), não há sinal de acordo, no common law, acerca de uma definição de ratio decidendi ou mesmo um método capaz de permitir sua identificação. No entanto, inúmeras técnicas foram desenvolvidas com esse intento, tais como o teste de Wambaugh e o teste de Goodhart.

Para Wambaugh, a ratio decidendi é a regra segundo a qual um determinado caso não seria decidido em razão da sua ausência (MARINONI, 2010, p. 224). Com a finalidade de se chegar a essa regra, aponta o jurista, deve-se, inicialmente, formular a suposta proposição de direito. Deve-se, em seguida, inserir na proposição uma palavra que inverta o seu significado. Após, verificar-se-á se, ao adicionar a palavra que inverteu o significado a proposição, o tribunal teria julgado de outra forma. Se a decisão foi a mesma, não será o caso um precedente para a proposição inicialmente afirmada. Se a decisão foi diversa, o caso tem autoridade para a proposição original. Portanto, para que a proposição constitua ratio decidenti, a inversão de sentido da proposição não pode gerar uma decisão semelhante.

O teste proposto por Wambaugh, no entanto, é considerado falho pela doutrina hodierna do common law, exatamente porque a decisão prolatada pela Corte encontra guarida em dois fundamentos que, isoladamente, podem levar à mesma solução. Assim, caso eventualmente a proposição de um fundamento fosse invertida, o outro é suficiente para preservar uma mesma conclusão, eis que a alteração de sentido de um fundamento não tem condão por si só para alterar a conclusão.

A tese anunciada por Goodhart, todavia, confere maior atenção aos fatos quando comparada à de Wambaugh. Para o eminente jurista e professor da Universidade de Oxford, a ratio decidendi é encontrada mediante a análise de todos os fatos considerados pelo juiz como materiais ou fundamentais na formulação de sua decisão. Em outras palavras, deve-se dispensar atenção a todos os fatos sob apreciação pelo juiz e encontrar quais foram materiais ou fundamentais na decisão do magistrado (GOODHART, 1931, apud MARINONI, 2010, p. 224).

Ato contínuo, não é despiciendo mencionar a definição proposta por Cross (1991, p. 77), consoante a qual a ratio decidendi de um caso afigura-se qualquer regra de direito, expressa ou implicitamente, tratada pelo juiz como substrato necessário para alcançar sua conclusão.

A despeito das proposições conceituais levadas em consideração acima, alguns doutrinadores nacionais se debruçaram sobre o tema e lançaram mão de suas considerações, sem deixarem de lado as teses afirmadas pelos autores supramencionados.

É o caso, à guisa exemplificativa, de Didier Jr., Braga e Oliveira (2016, v.2, p. 455), segundo os quais a ratio decidendi (para os ingleses) ou a holding (para os norte-americanos) são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão, sem os quais a decisão não seria proferida como foi. Revela-se na tese jurídica acolhida pelo órgão julgador.

Cruz e Tucci (2004, p.12), ao seu turno, preleciona que a ratio decidendi é a tese ou princípio jurídico assentado na motivação do provimento decisório, ou, consoante Abboud (2013, p. 516), ratio decidendi configura a regra de direito utilizada como fundamento da questão fática controvertida (lide).

A ratio decidendi, portanto, constitui a tese, o princípio jurídico ou a regra de direito que conduz o provimento decisório, sem o qual a decisão prolatada não seria a mesma. Este substrato normativo forma o precedente, que orientará os pronunciamentos decisórios posteriores.

É imperioso aduzir que, conforme constata Marinoni (2010, p. 222), a ratio decidendi não tem um correspondente no direito brasileiro. Ela não se confunde com a fundamentação, o disposto e tampouco com o relatório. Em verdade, trata-se de elemento externo a eles, um algo mais que o magistrado consigna em sua decisão.

No que se refere ao efeito vinculante do precedente (binding precedente), é cediço que, ao menos no sistema da common law, há acordo no sentido de que a parte integrante do precedente que tem a potencialidade de vincular casos análogos futuros é a ratio decidendi.

Em contraposição à ratio decidendi, a outra parte integrante do precedente, o obiter dictum, também é alvo de intensas discussões doutrinárias e a tentativa de delimitação do seu conceito é tão antiga quanto a travada em razão da ratio decidendi.

Aprioristicamente, a partir de um raciocínio de exclusão, pode-se constatar que obiter dictum é tudo que não constitui ratio.

Conforme lição de Didier Jr., Braga e Oliveira (2016, v.2, p. 458):

o obiter dictum (obiter dicta, no plural), ou simplesmente dictum, consiste nos argumentos jurídicos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influência ou relevante e substancial para a decisão.

A diferenciação entre ratio decidendi e obiter dictum é de substancial relevância, eis que o common law dispensa tratamento valorativo no que concerne aos fundamentos da decisão, de modo que seja buscado o que lhe confere real significado. Isso se torna mais claro ainda quando confrontamos os sistemas da civil law com o da common law. Enquanto que o primeiro se alicerça na aplicação da lei e a sua maior importância é conferida através do dispositivo da decisão, o segundo dispensa maior importância na fundamentação, eis que faz parte da criação do direito e interessa, de todo modo, à sociedade (MARINONI, 2010, p. 233).

Esse raciocínio ganha maior relevo, ainda, em razão da existência, na praxe forense, de corriqueira indevida e arbitrária confusão entre os institutos. Não é incomum que o obiter dictum seja invocado como precedente, como se ratio decidendi fosse (TARUFFO, 2012, apud DIDIER JR, BRAGA e OLIVEIRA, 2016, v.2, p. 460).

Feitas as relevantes considerações acima, as doutrinas nacional e alienígena lançaram mão de conceitos que buscam delimitar o conteúdo dessa outra parte que integra o precedente, mas que com ele não se confunde. Conforme anota Taruffo (2008, p. 801), obiter dictum são as afirmações e argumentos contidos na motivação, mas que, mesmo podendo ser útil para a compreensão da decisão e seus motivos, não fazem parte da base jurídica da decisão.

Ainda que não faça parte da base jurídica da decisão em que foi veiculado, o obiter dictum não é desprezível, eis que pode sinalizar uma ulterior orientação do tribunal. Exemplificativamente, o voto vencido analisado em uma decisão, embora constitua obiter dictum, pode ter eficácia persuasiva, de convencimento, para a tentativa futura de superação do precedente (DAVID, 2002, apud DIDIER JR, BRAGA e OLIVEIRA, 2016, vol. 2, p. 459).

Ademais, um obiter dictum pode, uma vez emanado por tribunal superior, possuir vigor impositivo para ser observado tanto por instâncias inferiores quanto por comentaristas, especialmente quando fora dispensado tempo e atenção a ele (MARSHALL, 1997, p. 515).

  • Técnica de confronto, interpretação e de aplicabilidade do precedente: distinguishing

Para que um precedente possa ser utilizado em um caso sob julgamento, faz-se necessário que o órgão julgador realize um juízo comparativo entre o caso paradigma e o sob julgamento, afim de se determinar se há similaridade suficiente para justificar a aplicação do precedente.

Assim, feito o juízo comparativo e demonstrada a similaridade entre os casos, o órgão julgador lançará mão do precedente, aplicando a mesma solução ao caso sub judice. Por outro lado, em não havendo semelhança fática entre os casos, o órgão julgador demonstrará a diferença entre eles, de modo a afastar a incidência do precedente. A essa atividade jurisdicional se atribui a pecha de distinguishing (MARINONI, 2010, p. 326).

Como antecedente lógico do emprego de distinguishing, deve-se delimitar a ratio decidendi do precedente, eis que o espelha. Essa tarefa se justifica, pois, ao confrontar a razão de decidir do primeiro caso com o suporte fático do caso sob julgamento, determinar-se-á ou não a aplicação daquela ratio decidendi. Através do distinguishing, serão reveladas as distinções fáticas entre os casos de modo a se constatar que a ratio do precedente não se amolda ao caso sob julgamento, uma vez que os suportes fáticos de ambos são diversos.

Anota Bustamante (2012, p. 488) que o afastamento do precedente pode ser feito de dois modos: (1) Reconhecendo-se uma exceção do caso em análise, não considerada anteriormente. Desse modo, o órgão julgador restringe a hipótese de incidência da ratio decidendi, reduzindo a área semântica da regra jurídica excepcionada. Esse fenômeno, consoante o autor, denomina-se redução teleológica das normas jurídicas; (2) Através de um juízo comparativo, a partir do qual chega-se à conclusão de que o suporto fático do caso em análise não se coaduna com o expressado na ratio do precedente.

O emprego da técnica do distinguishing deve ser feita com parcimônia pelo julgador, de modo a restar demonstrado que não há materialidade suficiente para a aplicação do precedente ao caso sub judice. Quanto a isso, importa salientar que a mera afirmação de que a diversidade de fatos não justifica o emprego do precedente não isenta o órgão julgador de aplica-lo. Em outras palavras, deve restar demonstrado que há uma incompatibilidade material e que, portanto, revela-se justificativa idônea ao não emprego do precedente (MARINONI, 2010, p. 327).

Exatamente por isso é que muito dificilmente será encontrada uma incompatibilidade fática absoluta entre o caso sob julgamento e o caso paradigma. Se aquele apresentar alguma peculiaridade que o diferencia deste, ainda assim o precedente poderá ser aplicado (DIDIER, BRAGA e OLIVEIRA, 2016, vol. 2, p. 505).

Impende advertir que o afastamento do precedente não conduz à sua revogabilidade ou, de qualquer modo, sinaliza que está equivocado. O seu afastamento apenas anuncia que ele não se aplica a determinado caso.

Em suma, a partir da confrontação e interpretação dos casos paradigma e sob julgamento é que o julgador determinará ou não a aplicação da ratio decidendi daquele sobre este. Se entender pela não aplicação, lançará mão da técnica denominada distinguishing.

  • Os precedentes no Novo Código de Processo Civil
    1. Generalidades

Com o advento do novel diploma processualista civil (Lei n° 13.105/2015), instituiu-se no ordenamento jurídico brasileiro um sistema positivo de precedentes vinculantes. Até então, possuíam eficácia meramente persuasiva, influenciando o convencimento dos órgãos julgadores, servindo de base na fundamentação de seus provimentos judiciais e inspirando a edição de normas pelo legislativo nacional.

A positivação de um sistema de precedentes e, além disso, a atribuição de pecha vinculante à sua ratio decidendi, revelam a necessidade de o Estado Democrático de Direito calcar-se na estabilidade e na continuidade da ordem jurídica, através de pronunciamentos decisórios coerentes. A garantia da previsibilidade das consequências jurídicas de determinada conduta traduz-se na precípua manifestação da segurança jurídica, apanágio da contemporaneidade, e contribui para o grau de confiabilidade emanado pela sociedade a qual o direito busca tutelar.

A segurança jurídica, nas lições de Humberto Ávila (2012, p. 674-675), é um instrumento de realização dos valores da liberdade, igualdade e dignidade: (i) da liberdade, pois quanto maior é o acesso material e intelectual do cidadão às normas que deve obedecer, maiores serão as condições para que possa conceber o seu presente e planejar o seu futuro; (ii) de igualdade, pois quanto mais gerais e abstratas forem as normas, e mais uniformemente forem aplicadas, tanto maior será o tratamento isonômico entre os cidadãos; (iii) de dignidade, porque quanto mais acessíveis e estáveis forem as normas, bem como mais justificadamente forem aplicadas, melhor será o tratamento do cidadão como ser capaz de autodefinir-se autonomamente.

Ademais, outros valores são buscados além da segurança jurídica, a exemplo da isonomia e a eficiência. A primeira em razão do rechaço aos julgamentos conflitantes, de modo que se confira igualdade nos pronunciamentos decisórios semelhantes. A partir disso, possibilitar-se-á a consecução do segundo valor, uma vez que o Judiciário lançará mão de seus recursos para efetivamente solucionar situações até então não apreciadas. Se os juízes estão obrigados a seguir os entendimentos firmados pelos tribunais, não consumirão seu tempo e recursos materiais para decidirem questões já apreciadas. Desse modo, haverá uma otimização e racionalização da prestação da atividade jurisdicional, proporcionando benefícios a toda a coletividade.

  • Hipóteses de vinculação dos precedentes

Hodiernamente, além das hipóteses de vinculação insertas nas decisões proferidas em controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade e nos enunciados de súmulas vinculantes, o novo Código de Processo Civil passou a prever outras, colacionadas no seu artigo 927, senão vejamos:

Art. 927. Os juízes e tribunais observarão:

I As decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II Os enunciados de súmula vinculante;

III Os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV Os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V A orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Destaca Didier Jr, Braga e Oliveira (2016, vol.2, p. 474) que, embora não constem na lei, os precedentes cujo entendimento consolida-se em enunciado de súmula dos tribunais a nível estadual têm força obrigatória em relação ao próprio tribunal e aos juízes a eles vinculados. Daí a previsão constante do art. 926 do CPC, consoante o qual os tribunais brasileiros têm o dever de uniformizarem sua jurisprudência, mantendo-a íntegra, estável e coerente.

Impende advertir, antes que se prossiga, que a produção de efeitos erga omnes nas decisões em controle concentrado de constitucionalidade não as traduz em precedentes vinculantes. Ao mencionar tais decisões, o art. 927 do CPC não reafirma a observância da coisa julgada com eficácia contra todos, como já constante do ordenamento jurídico. O dispositivo estabelece a hipótese de vinculação da ratio decidendi dessas decisões (DIDIER JR, BRAGA e OLIVEIRA, 2016, vol.2, p. 477).

Nesse sentido e com o desiderato de esclarecer eventuais dúvidas acerca dessa interpretação, o Fórum Permanente de Processualistas Civis fez questão de afirmar, no Enunciado n. 168, que são os fundamentos determinantes (ou seja, a ratio decidendi) do julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade que produzem o efeito vinculante de precedente para todos os órgãos jurisdicionais.

Feitas as considerações acima, dentre os institutos supramencionados, dois são absolutamente novos e modelados para operar com o novo Código de Processo Civil: o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência. O primeiro constitui-se num procedimento específico que pode ser instaurado em segunda instância, cuja finalidade é o julgamento de caso repetitivo, enquanto que o segundo permite que uma relevante questão de direito, cuja repercussão social revela-se acentuada, seja apreciada por um órgão específico, indicado pelo regimento interno do tribunal.

Todos os demais casos, alçados à pecha vinculante pelo ordenamento processual vigente, traduzem a necessidade de respeito às decisões prolatadas pelos tribunais superiores, de modo a revelar os desideratos buscados e delineados no tópico anterior, quais sejam: a segurança jurídica, a igualdade e a eficiência do sistema jurisdicional.

  • Precedentes de eficácia persuasiva, normativa e intermediária

Afirma-se que, no sistema processual brasileiro, os precedentes podem assumir três modalidades de eficácia (MELLO, 2008, p. 61-112). A primeira, denominada de eficácia persuasiva, já constante no ordenamento jurídico brasileiro, atribui eficácia meramente influenciadora/interpretativa às decisões judiciais. Embora os precedentes cuja eficácia não tenham o condão de vincular os demais órgãos judiciais, sua importância não é despicienda. Destaca-se que os julgados que contém esta eficácia podem servir de substrato hermenêutico para o direito e argumentativo-judicial, além de influenciarem o próprio legislador em sua atividade legiferante.

Os precedentes cuja eficácia é normativa são de observância obrigatória, cujo desrespeito pode ensejar o manejo de reclamação, nos termos do art. 988 do CPC. São precedentes que possuem tal potencialidade normativa as súmulas vinculantes (inciso II do art. 927 do CPC), as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade (inciso I do art. 927 do CPC), os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos especial e extraordinário repetitivos (inciso III do art. 927 do CPC).

Por derradeiro, os precedentes de eficácia intermediária são alçados a essa categoria por não ensejarem o manejo de reclamação, caso violados, e por não se revelarem meramente de eficácia persuasiva, eis que o próprio ordenamento processual lhes atribuiu respeito obrigatório. São modalidades os enunciados de súmula do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional (inciso IV do art. 927 do CPC) e a orientação do plenário ou órgão especial ao qual os juízes e tribunais encontram-se vinculados (inciso V do art. 927 do CPC).

  1. Técnicas de superação do precedente e proteção da confiança

4.1. Overruling e overriding

Como o direito reserva ora ou outra uma exceção ao absolutismo de seus princípios e regras, não é diferente quando o tema em questão são os precedentes judiciais. Desenvolveram-se técnicas com o fito de determinarem a revogação total ou parcial de um precedente, denominadas overruling e o overriding. Nem mesmo a Inglaterra, reconhecida por adotar um sistema ortodoxo de precedentes, está imune às técnicas supramencionadas.

A possibilidade de alteração de um entendimento outrora firmado constitui característica ínsita dos precedentes, ou, em maior grau, do próprio direito em si, eis que encontra-se em constante evolução.

Em salutar contribuição, preleciona Melvin Eisenberg (1988, apud MARINONI, 2010 p. 390) que um precedente encontra-se em condições de ser revogado no momento em que tem sua correspondência aos padrões de congruência social e consistência sistêmica afastada. Mais que isso, descompatibiliza-se com os valores que sustentam a estabilidade, como a isonomia, a confiança e a vedação da surpresa.

Um precedente deixará de corresponder a padrões de congruência social quando incorrer na negação de proposições morais, políticas ou de experiência. As primeiras encontram guarida na determinação de uma conduta como certa ou errada a partir de uma moralidade geral reconhecida pela sociedade. As segundas revelam situações de boa e má-fé perante o bem-estar geral. As últimas, a seu turno, traduzem as condutas usualmente empregadas pelos grupos sociais.

Por outro lado, um precedente deixará de possuir consistência sistêmica quando deixar de possuir coerência com as demais decisões judiciais. Haverá uma incompatibilidade que exigirá a revogação do precedente, eis que sua razão de permanência e potencialidade de vinculação de decisões futuras restou-se comprometida.

Expostas as considerações acima, imperioso se faz distinguir as técnicas do overruling e do overriding. Enquanto que a primeira exige uma superação total do precedente, uma vez que não corresponde mais aos padrões de congruência social e consistência sistêmica, a segunda caracteriza-se pela superação parcial ou revogação parcial do precedente.

Consoante afirmam Didier Jr, Braga e Oliveira (2016, vol.2, p. 520), haverá overriding quando o tribunal apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, reduzindo suas hipóteses fáticas de aplicação, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal.

No overruling, ao revés, não é uma regra ou princípio legal superveniente que determina o completo afastamento do precedente, mas sim a superação da ratio decidendi constituidora do precedente, uma vez que seus fundamentos materiais são inaplicáveis ao caso futuro sob julgamento.

Ato contínuo, a possibilidade de revogação de precedentes não admite que os órgãos julgadores o façam indistintamente ou consoante lhes aprouver. Se assim não fosse, não haveria sentido, pois o dever de respeitar o precedente constituiria letra morta. Em verdade, a possibilidade indistinta de revogação de um precedente colocaria em cheque todos os valores que a sociedade espera ver respeitados pelo Judiciário, quais sejam, a segurança jurídica, a confiabilidade e a previsibilidade das decisões judiciais.

Nas palavras de Marinoni (2010, p. 390), Não há sistema de precedentes quando as Cortes Superiores não se submetam a critérios especiais para revogar seus precedentes. E é exatamente esta submissão a critérios que caracteriza a eficácia horizontal no direito contemporâneo.

No que se atine aos critérios que orientam os tribunais a revogarem seus precedentes, os usualmente indicados são os seguintes: (i) quando ocorre a obsolescência ou desfiguração do precedente; (ii) quando o precedente se mostra injusto, incorreto ou equivocado; (iii) quando se revela praticamente inexequível (REDONDO, 2013, p. 324-325; DIDIER JR, BRAGA e OLIVEIRA, 2016, vol.2, p. 511); (iv) quando não atende mais aos padrões de congruência social ou nega proposições morais, políticas ou de experiência; e (v) quando passa a não conter coerência sistêmica com outras decisões judiciais (REDONDO, 2013, p. 325; MARINONI, 2010, p. 389-391).

Quanto à eficácia da revogação dos precedentes no tempo, o overrruling pode ser classificado em retrospectivo, prospectivo e antecipado. Caberá ao órgão julgador a escolha de um método ou de outro, levando em conta os princípios da segurança jurídica e da isonomia (REDONDO, 2013, p. 325).

Será retrospectivo o overruling (retrospective overruling) cujos efeitos atribuídos à revogação sejam ex tunc, de modo que a ratio decidendi do precedente não se aplica inclusive nos casos que lhe foram contemporâneos antes da sua revogação.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a revogação de um precedente conduziria, como regra, a sua ineficácia retroativa (efeitos ex tunc). No entanto, a prática jurídica moderna é no sentido de não se conferir eficácia retroativa imediatamente, eis que as Cortes se mostram mais preocupadas em tutelar o princípio da segurança jurídica, especialmente em suas feições que garantem a previsibilidade e a confiança depositada pelos jurisdicionados no Poder Judiciário (MARINONI, 2010, p. 420).

Por sua vez, o overrruling admite, ainda, eficácia prospectiva (prospective overruling), consoante a qual atribui-se à revogação do precedente efeitos ex nunc, preservando as situações alcançadas pelos precedentes até sua revogação. Desse modo, a ratio do precedente é preservada para atingir as situações jurídicas ex ante.

Por derradeiro, não é despiciendo mencionar que o overruling pode possuir eficácia antecipada. Também alcunhado de antecipatory overrruling, constitui uma espécie de revogação preventiva do precedente, que não é realizada pelo órgão editor do precedente. De modo mais claro, os órgãos judiciais inferiores, ao notarem que há indícios suficientes de que a corte superior de onde o precedente emanou irá revoga-lo, podem se antecipar à mudança (CRUZ e TUCCI, 2012, p. 109).

4.2. A proteção da confiança

Antes de constituir um fenômeno jurídico, a confiança é um fenômeno extraído essencialmente das relações sociais, qualificando-se como uma sólida esperança em uma pessoa, uma coisa ou um comportamento, em relação aos quais o sujeito que confia projeta sentimentos de segurança e estabilidade (BORCHARDT, 1988, apud NETO, 2016, p. 24).

A confiança afigura-se, portanto, como um valor-base nas relações interpessoais, traduzindo-se na premente necessidade à segurança, estabilidade, previsibilidade e certeza, não só nas relações horizontais entre os indivíduos, como também nas verticais com o Estado.

Ínsitas são as palavras de Canotilho, segundo as quais o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideram os princípios da segurança e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito (2003, p. 257).

Na seara jurídica, a proteção da confiança constitui tema afeto à própria legitimidade do direito. Não há como pensar um sistema jurídico democrático cuja finalidade não seja o respeito à segurança e à certeza das relações jurídicas.

Ao partilharem desse posicionamento, inúmeros ordenamentos jurídicos, dentre os quais o brasileiro, outorgaram alguma proteção jurídica à confiança, seja sob o ponto de vista procedimental, seja substancial, erigindo-a como um princípio do direito (NETO, 2016, p. 25).

À guisa exemplificativa, o Novel Código de Processo Civil brasileiro (Lei n° 13.105/2015), conferiu especial proteção ao princípio em comento, quando, no artigo 927, §4º, estatuiu que a modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

Desse modo, ao modificar sua jurisprudência, o Poder Judiciário deve proceder com a devida cautela, valendo-se de motivação idônea à superação dos seus entendimentos anteriormente firmados, sob pena de frustrar a confiança legitimamente depositada pelo jurisdicionado e pela sociedade na estabilidade e manutenção do direito.

Historicamente, a relação entre o princípio da proteção da confiança e a segurança jurídica sempre foi muito próxima, de modo que a doutrina anunciava a primeira como parte da segunda ou como uma especial manifestação daquela (CANOTILHO, 2003, p. 257).

Alguns doutrinadores, no entanto, iam além, afirmando que a segurança jurídica correspondia aos aspectos objetivos da estabilidade das relações jurídicas, ao passo que a confiança se traduziria nos aspectos subjetivos dessa estabilidade, especialmente no que se atine à confiabilidade e previsibilidade nos pronunciamentos estatais (QUINTELA, 2013, apud NETO, 2016, p. 26).

Numa tentativa de delimitar o conceito do princípio da confiança, Steffen Detterbeck afirma que corresponde a uma vedação à atuação estatal que, a despeito de se encontrar amparada legalmente, frustra a confiança legitimamente depositada pela sociedade na continuidade da atuação do Estado, cuja proteção deveria ser melhor observada pela Administração Pública (2014, p. 73).

Obviamente, o Estado não deve observância permanente aos seus comportamentos, sob pena de descompatibilizá-los com as transformações sociais e se submeter a um engessamento que macula sua própria evolução. No entanto, na tarefa de modificação de suas bases e situações consolidadas, deve atuar com parcimônia, sob pena de romper com as expectativas depositadas e violar a estabilidade e a previsibilidade almejadas pela sociedade.

Além da previsibilidade dos pronunciamentos judiciais, o princípio da confiança exige, inclusive, a previsibilidade na alteração dos pronunciamentos já consolidados, justamente como forma de se evitar qualquer atuação estatal surpresa e, consequencialmente, violadora da expectativa gerada na manutenção das situações jurídicas firmadas.

Logo, há uma dimensão temporal da proteção da confiança que lhe é fundamental, de modo que se alicerça em um comportamento estatal pretérito, que serve de fundamento a uma confiança que se realça no momento em que se dá a modificação comportamental, exigindo uma proteção das expectativas dela decorrentes que se projeta para o futuro (DERZI, 2009, apud NETO, 2016, p. 28).

Feitas as considerações acerca da delimitação conceitual do princípio da confiança, é imperioso firmar seu caráter normativo, eis que impõe o respeito às legítimas expectativas depositadas pela sociedade, especialmente quando atreladas ao planejamento efetuado por esta em relação às suas atividades vindouras.

  1. Conclusão

A constante transformação e a escalada exponencial de complexidade das relações jurídicas em uma sociedade multifacetada, exige permanente atualização do direito, sob pena de submeter a um engessamento que corrói sua própria evolução.

Diante desse panorama, a incorporação e aplicação de um sistema calcado no respeito obrigatório aos precedentes judiciais, desvelou-se em uma premente necessidade de trazer a estabilidade, previsibilidade e a isonomia judiciais que a sociedade espera ver de um Poder Judiciário e, mais amplamente, de um Estado, cujas bases estejam consentâneas com um modelo de Estado Democrático de Direito.

O Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015) disciplinou o sistema de precedentes no Livro III, Título I, Capítulo I, entre os artigos 926 e 928, e logo no primeiro artigo, o 926, encetou norma dirigida a todo o sistema jurisdicional brasileiro, consoante a qual todos os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

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