Caso Klara Castanho: Um ato de dignidade, e vários atos de crueldade

12/09/2022 às 14:37
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Se a nossa sociedade fosse orientada pela moral, os 'cancelados' seriam os profissionais envolvidos no vazamento e divulgação dos dados da jovem e da criança.

No último dia 25/06, a atriz Klara Castanho revelou em carta aberta ter sido estuprada, ficando grávida após a violência. Sua revelação ocorreu após uma sucessão de fatos lamentáveis por parte de diversos profissionais da saúde e da comunicação, que a expuseram de forma absurda e criminosa.

O caso da jovem de 21 anos retrata um dos maiores sofrimentos pelo qual uma mulher pode passar: ser vítima de violência sexual, e carregar no ventre o fruto da agressão. Diante de tal provação, há mulheres que buscam o direito de um aborto legal. Outras trilham caminhos mais sombrios, como o aborto ilegal ou o abandono do bebê logo após o nascimento.

Mas Klara respondeu à violência e ao abuso sofrido com um ato de dignidade: a entrega voluntária do bebê para adoção, para uma família disposta a criá-lo com amor. Para tanto, atendeu aos requisitos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), enfrentando toda a burocracia que nosso país impõe a quem busca agir conforme a lei. Contudo, após todo o sofrimento físico, emocional e espiritual, a jovem se deparou com o inesperado: a cruel divulgação de sua dor e intimidade, por parte de pessoas que deveriam zelar por sua saúde, intimidade e privacidade.

Ainda no leito, após o parto ocorrido em maio deste ano, a jovem foi abordada por uma enfermeira, com a ameaça de divulgação do caso. E nos dias que sucederam outras abordagens ocorreram, por colunistas de fofocas e blogueiros, munidos de inúmeras informações sigilosas que jamais deveriam possuir. Conforme apurado pelas investigações, pouco após o parto, o marido da enfermeira que abordou a jovem, tentou vender informações sobre o caso para diversas emissoras de TV. Não tendo sucesso, passou a ofertar para portais de internet e colunas de fofocas, até encontrar pessoas com a índole necessária para consumação do crime. 

Após receberem informações sobre o caso, os abutres da comunicação divulgaram aos poucos e de forma organizada, em uma suave e dolorosa tortura. O primeiro divulgou que Klara deu à luz. A segunda criticou uma jovem atriz que teria entregado seu bebê para adoção. E o último apresentou um relato mais extenso do caso, omitindo, contudo, a violência sexual, criando o clima perfeito para que os canceladores de plantão criminalizassem imediatamente os atos de Klara. A conduta dos comunicadores foi cruel, típica do crime organizado, e precisa ser apurada com rigor pelas autoridades.

Como era de se esperar, o público digital devorou o caso com a costumeira avidez, massacrando a jovem de forma implacável. Klara foi julgada e ultrajada por milhares de pessoas, após ser exposta criminosamente por profissionais da comunicação sem vergonha ou moral, que rastejam pelo mundo promovendo a desgraça alheia. Contudo, o que mais chama a atenção no caso não é a conduta criminosa de pseudo profissionais da comunicação. Pois destes, sabemos exatamente o que esperar.

O mais absurdo do caso é o fato de Klara e a criança terem sido expostas a tudo isso, pelas mãos de quem tinha o dever de as acolher, e proteger. O vazamento de informações pessoais e sensíveis pelo próprio hospital, com a participação de profissionais da saúde que buscaram obter lucro com o caso. Algo monstruoso, estarrecedor.

Não é demais lembrar que o Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem traz em seus artigos 81 e 82 o dever de sigilo profissional, assim como diversos outros deveres violados pela enfermeira em questão. Se é que podemos a chamar de enfermeira, sem constranger a todos os demais profissionais que representam esta nobre profissão.

Klara sofreu uma violência tão grave, que a maioria das pessoas que a criticaram, jamais entenderá. Apesar disso, não se trata de uma violência sofrida por poucas mulheres, visto que o Brasil contabilizou no ano de 2021, um estupro a cada dez minutos. No mesmo ano, 17 mil meninas com menos de 14 anos se tornaram mães. Números chocantes, e que retratam somente os casos denunciados às autoridades, ou seja, a minoria dos casos, visto que a maior parte das vítimas se sente constrangida em denunciar o crime, assim como ocorreu com Klara.

Em resposta à exposição da totalidade do caso, o hospital que permitiu o vazamento dos dados se limitou a emitir uma nota, prestando solidariedade à jovem e informando a abertura de uma sindicância interna. O médico que a obrigou de forma antiética a ouvir os batimentos cardíacos contra sua vontade, não se manifestou. Parte dos comunicadores envolvidos no caso apresentaram desculpas esfarrapadas em função da repercussão negativa, enquanto outra seguiu com os ataques contra Klara. E a enfermeira que vazou as informações, ao que tudo indica, respondeu às denúncias constrangendo e ameaçando as vítimas. 

Klara foi vítima de estupro. Mas os fatos que sucederam o primeiro crime não são menos ofensivos e ultrajantes. A imposição à escuta dos batimentos cardíacos pelo médico violou os direitos à autonomia da paciente, de decidir livremente sobre seus cuidados e tratamentos. O vazamento de seus dados pessoais e sensíveis de saúde violou seus direitos constitucionais à personalidade, intimidade e privacidade, além de diversos dispositivos do Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e da LGPD. Além de expor dados sigilosos do processo de entrega voluntária para adoção, nos termos do ECA.

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Todos os envolvidos neste caso precisam responder por suas condutas. Eticamente (em seus respectivos conselhos profissionais), civilmente (indenizando as vítimas pelos danos causados) e penalmente (nos termos dos art. 139 e 154 do Código Penal).

Mas a pior pena de todas, foi e seguirá sendo imposta somente às vitimas: o ultraje pessoal, o massacre de suas reputações, a vergonha da exposição, a devassa de sua intimidade e a aflição do cancelamento social.

Klara sofreu uma violência terrível. Em resposta, deu uma aula de humanidade e maturidade, agindo de forma anônima e conforme a lei, em proteção às reais vítimas: ela, e a criança. Exposta por quem a deveria proteger, foi ultrajada por comunicadoresc om extrema maldade, e apedrejada por milhares de covardes anônimos. Se justificou publicamente, dando mais uma aula de maturidade e dignidade. 

Se a nossa sociedade fosse orientada pela moral, os cancelados seriam os profissionais envolvidos no vazamento e na divulgação das informações e dados da jovem, e da criança. Mas como não é o caso, sigamos em frente, à esperada tragédia da próxima semana.

Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país. 

[email protected]

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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