A nova disciplina da indisponibilidade de bens na ação de improbidade: da sua incompatibilidade com a ordem constitucional

14/09/2022 às 17:09
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Antes das alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21 junto à Lei de Improbidade (8.429/92), a medida de indisponibilidade de bens era disciplinada pelo procedimento de medidas antecipatórias previsto no Código de Processo Civil. Em síntese: comprovada a probabilidade do direito e o risco ao resultado útil do processo (o qual era presumido diante do interesse coletivo[1]), estava viabilizado o manejo da medida cautelar a qual era examinada inaudita altera pars.

Todavia, após as alterações, foram criados inúmeros entraves para a análise da medida cautelar. Passou-se a exigir a oitiva prévia do réu, a demonstração de risco concreto ao resultado útil do processo, além de se restringir a medida de indisponibilidade apenas ao valor do suposto dano causado ao erário, excluindo-se, por exemplo, eventuais valores devidos a título de multa.

Pelo cotejo das disposições, afere-se clara inversão de valores constitucionais realizada pelo legislador pátrio, que passou a prestigiar o potencial agente ímprobo em detrimento da coletividade.

Com efeito, o pedido de indisponibilidade de bens tem por escopo garantir ao erário a reparação integral do dano, evitar o enriquecimento ilícito e garantir a efetividade da medida punitiva de multa. Em uma sociedade moderna, a ocultação de bens se dá de forma célere e sofisticada, muitas vezes dificultando ou mesmo impedindo a restauração da coletividade ao status quo ante. Aí se encontra a relevância do instituto: antecipa-se a prática de uma medida cautelar não satisfativa com o desiderato de evitar o perecimento do direito eventualmente reconhecido por sentença condenatória. Porém, assim não entendeu o legislador.

Inicialmente, além de exigir que a medida esteja fundamentada em prova concreta do perigo de dano irreparável ou do risco ao resultado útil do processo, ele passou a exigir que o exame do pedido cautelar se dê, como regra, apenas após a oitiva do réu (§3º do art. 16).

Contudo, a previsão legal não é razoável, contraria o senso comum, afora não estar minimamente justificado o porquê de o agente ímprobo merecer uma deferência privilegiada sequer concedida à Fazenda Pública ou a réus em ações penais.

Como consabido, o Código de Processo Civil regula exaustivamente a matéria atinente às tutelas de urgência, estabelecendo como requisitos gerais positivos a (i) probabilidade do direito e (ii) perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, e, como requisito negativo, (iii) a impossibilidade de concessão de medida quando houver perigo de irreversibilidade da decisão.[2] Ou seja, não se cogita da oitiva preliminar do demandado, o que, diga-se, contraria a própria natureza da uma medida antecipada.

O mesmo tratamento é dispensado às medidas antecipadas de urgência em desfavor da Fazenda Pública. As únicas ressalvas ficam por conta da (a) impossibilidade de compensação de crédito tributário, (b) entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, (c) reclassificação ou equiparação de servidores públicos e (d) concessão de aumento ou extensão de vantagem ou pagamento de qualquer natureza (diante do risco da sua irreversibilidade e satisfatividade). Ainda, embora haja regra dispondo sobre a necessidade de oitiva prévia da Fazenda, no prazo de 72 horas, em ação coletiva ou ação civil pública sobre pleito liminar, a jurisprudência há muito consolidou o entendimento de que se cuida de regra mitigável a depender da urgência da medida[3].

Na seara criminal, os provimentos cautelares se dão sem a prévia oitiva do investigado/réu, bastando a existência de indícios do delito (art. 126 do Código de Processo Penal).

Veja que, regra geral, até por conta da sua natureza, as tutelas de urgência (cautelares ou pedidos antecipatórios) são examinadas inaudita altera pars. Isto é, por se tratar de uma providência que demanda pronta análise, se posterga o contraditório para se garantir a proteção do direito debatido. Inexiste prejuízo à parte adversa, uma vez que sobre o pedido de indisponibilidade poderá ele se manifestar profunda e amplamente quando do seu ingresso no feito. Cuida-se de contraditório diferido há décadas aceito usualmente pelo ordenamento pátrio.

Outrossim, a prévia ciência do réu sobre o pedido de indisponibilidade, diversamente do que faz presumir o legislador, como regra e não como exceção, acabará por obstaculizar a efetividade da medida.

Atualmente, a dinâmica das relações comerciais, a virtualização dos processos econômicos e o fato de os ativos serem facilmente movimentados por meios eletrônicos viabiliza que volumes enormes de dados, valores e patrimônio sejam transferidos imediatamente. Muitas dessas operações financeiras sequer deixam rastro digital, como se vê com as transações envolvendo parte das criptomoedas. Além disso, até mesmo em se tratando de indisponibilidade de bens de raiz, a prévia ciência do demandado pode vir a macular a efetividade da medida, não havendo meios para que o Ministério Público ou o ente lesado muitas vezes comprove, concretamente, esse risco. Vamos a um exemplo prático e corriqueiro: ajuizada ação de improbidade administrativa, é deduzido pedido cautelar de indisponibilidade de bem imóvel. Como sabido, tal medida não carreta perda do patrimônio do réu, tanto que pode ele usar, gozar e fruir do imóvel. Agora, caso o réu tenha ciência preliminar da medida, nada o impede (senão a boa-fé) de que referido imóvel seja objeto de transação particular (compromisso de compra e venda) entre ele e um terceiro. E, em ocorrendo tal situação, antes da anotação na matrícula, a única forma de anular essa negociação é a comprovação de que o terceiro agiu de má-fé, o que nem sempre é o caso. Logo, o prejuízo correrá por conta do erário.

Reforço: o legislador não atentou que a LIA tem por desiderato, antes de penalizar o infrator, proteger o erário público e os interesses da coletividade. É sob essa ótica que a legislação deveria ter sido pensada e editada, porque é com base nesses vetores que ela é interpretada e aplicada. O descompasso do legislador com os anseios da sociedade, somado a inserção de ferramentas e instrumentos capazes de dificultar e inviabilizar a proteção e o implemento otimizado do direito fundamental à moralidade administrativa, acabam por tornar inconstitucionais essas restrições impostas no uso da medida cautelar de indisponibilidade, por falta de razoabilidade, adequação ao fim pretendido, legitimidade democrática e proteção deficiente do bem jurídico tutelado.

Igualmente, a previsão contida no § 10 do art. 16, limitando o alcance da medida de indisponibilidade apenas aos valores que assegurem o ressarcimento do dano ao erário, excluindo os valores incorporados ilicitamente ao patrimônio do agente e a eventual multa aplicada, afora enfraquecer esse importante instrumento de efetividade processual, viola o princípio da proibição da proteção deficiente da moralidade administrativa e o direito fundamental à tutela executiva efetiva.

Com efeito, a medida de indisponibilidade de bens visa salvaguardar a satisfatividade de eventual juízo condenatório proferido na ação de improbidade. Trata-se de instrumento de envergadura constitucional porque tem por escopo a tutela efetiva da coletividade ao garantir a substantivização do direito fundamental à tutela executiva[4]. Isto é, se adotam medidas cautelares antecedentes que garantirão, em caso de procedência das pretensões, que o ressarcimento ao erário, a incorporação ilícita de valores ao patrimônio do agente e eventual multa aplicada sejam, de fato, concretizadas.

Veja-se que o direito à prolação de uma sentença não se resume ao ato de sentenciar, ao provimento final. Deve-se também garantir que o direito reconhecido seja implementado, motivo pelo qual é impositivo que se garanta ao autor e principalmente ao Poder Judiciário a utilização de instrumentos capazes de dar efetividade a esse direito substancial, o que significa direito à efetivação em sentido estrito[5]. Nada adianta o reconhecimento do direito em uma sentença se o Estado-Juiz não possui meios de concretizá-lo. Ao fim, o que realmente se busca com a tutela jurisdicional é a transplantação do direito reconhecido no mundo jurídico para o mundo dos fatos.

Logo, a inconstitucionalidade desse parágrafo pode ser identificada em diversas vertentes.

Primeiro, no aspecto do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF). A proibição pura e simples da medida de indisponibilidade alcançar os valores ilicitamente incorporados ao patrimônio do agente ímprobo e os valores devidos a título de multa civil caracteriza violação do acesso à Justiça. Como o acesso à Justiça se cuida de um direito fundamental e cláusula pétrea, norma infraconstitucional que limita esse direito padece de inconstitucionalidade material.

Segundo, pelo prisma da moralidade administrativa enquanto direito fundamental[6], há clara violação da proteção deficitária dirigida pelo legislador. Isso porque, prevendo a Constituição Federal direitos fundamentais, é atribuição do Estado a adoção de postura tendente a concretizar esses direitos e colocá-los a salvo de investidas ilegítimas, seja de parte dos particulares ou do próprio Estado. A exclusão de valores relativos a multa civil do alcance da cautelar de indisponibilidade viola o artigo 37, §4º, da CF, certo que, em havendo improbidade, é a própria Constituição que impõe a indisponibilidade de bens, para garantia do resultado útil da ação civil pública de improbidade administrativa[7].

Logo, a alteração legislativa incorre em inconstitucionalidade por não tutelar, de forma eficaz, os direitos postos. Isso porque os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais[8].

Terceiro, também padece de inconstitucionalidade o dispositivo por violação do princípio da proporcionalidade.

O fundamento para a limitação do alcance da medida cautelar de indisponibilidade (presumo) reside no fato de não poder o réu ser penalizado sem a observância do devido processo legal e antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Contudo, incorre em erro de premissa o legislador ao considerar que a medida de indisponibilidade se trata de uma pena, assim com ponderou erroneamente o aparente conflito entre os direitos do réu e o direito à tutela da moralidade.

Como já assentado, a medida cautelar de indisponibilidade de bens não equivale a uma pena porque não importa em perda do patrimônio, mas, sim, mera restrição. E essa restrição se revela absolutamente justificada considerando a gravidade das condutas debatidas na ação de improbidade, os bens jurídicos protegidos e os requisitos impostos pelo legislador para fins de concessão da medida.

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Outrossim, a limitação imposta não se revela adequada à proteção do devido processo legal ou a garantia dos direitos do réu. Isso porque lhe é garantido se manifestar nos autos em relação à indisponibilidade perante o juiz de primeiro grau, como também pode se valer do duplo grau de jurisdição (uma vez que é admitido o manejo do agravo de instrumento contra eventual decisão que disponha sobre indisponibilidade de bens).

Ainda, não há necessidade na restrição porque o próprio legislador já oportunizou ao réu o devido processo legal e previu diversos expedientes que viabilizam o encerramento prematuro do processo caso não existentes provas robustas sobre sua responsabilidade pelos fatos. Além disso, a própria exigência, para deferimento da medida, de que haja substanciais provas sobre os fatos narrados e prova concreta do risco ao resultado útil do processo já se revela mais do que suficiente à tutela dos direitos do demandado.

Por fim, a restrição não ultrapassa o juízo da proporcionalidade em sentido estrito porque a opção legislativa acaba por privilegiar um falacioso direito absoluto de presunção de inocência, sacrificando outros dois direitos fundamentais: a moralidade administrativa e a tutela executiva efetiva[9]. Isto é, não procedeu o legislador na interpretação harmônica dos direitos fundamentais em aparente conflito, tendo optado por um, em detrimento dos outros.  Tal agir acaba por desconsiderar por completo toda a doutrina nacional e estrangeira sobre a resolução do aparente conflito entre direitos fundamentais. Desconsiderou-se, por completo, o princípio da unidade da Constituição, a qual exige a análise da Constituição como um todo, encarando-a como um sistema complexo que reclama compatibilização de preceitos discrepantes. De mesma forma, despreza o princípio da concordância prática, deixando de preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos.

Aduza-se que permitir que a medida de indisponibilidade tenha amplo espectro, atingindo não apenas os valores devidos a título de danos ao erário, como também os valores integralizados ilicitamente ao patrimônio do réu e os valores devidos a título de multa civil coloca em harmonia todos os direitos fundamentais em aparente conflito, sem que qualquer deles reste integralmente sacrificado. Isso porque, como já exaustivamente assentado, a decretação de indisponibilidade não equivale a perda do patrimônio. Essa, portanto, é a solução mais condizente com a ordem constitucional.

 

Conclusão.

 

Considerando o exposto no presente artigo, surge necessário que os §§ 3º e 10 do art. 16 mereçam uma interpretação constitucional.

A regra do § 3º do art. 16 da Lei n. 8.429 merece uma interpretação conforme a constituição, com redução de texto, passando a contar com a seguinte redação: O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução.

Considerando a retirada da oração após a oitiva do réu em cinco dias, conclui-se pela inconstitucionalidade da totalidade do § 4º do art. 16 da Lei n. 8.429/92 por arrastamento.

Por fim, no tocante ao § 10 do art. 16, considerando ser inviável o empréstimo de uma interpretação conforme à Constituição Federal, a solução que se extrai é pela declaração de inconstitucionalidade da norma. Assim, prevalecerá o que já havia sido consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça que, em sede de recurso repetitivo (REsp 1862792/PR), conclui pela possibilidade de inclusão do valor devido a título de multa na medida cautelar de indisponibilidade.

 

 



[1] Em interpretação ao referido dispositivo, esta Corte Superior firmou o entendimento de que a decretação de indisponibilidade de bens em ACP por Improbidade Administrativa dispensa a demonstração de dilapidação ou a tentativa de dilapidação do patrimônio para a configuração do periculum in mora, o qual está implícito ao comando normativo do art. 7o. da Lei 8.429/1992, bastando a demonstração do fumus boni juris que consiste em indícios de atos ímprobos (REsp.

1.366.721/BA, Rel. p/acórdão Min. OG FERNANDES, DJe 19.9.2014). ((AgInt no AREsp n. 1.367.780/MG, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 25/5/2020, DJe de 28/5/2020.).

[2] Com a ressalva que essa regra pode ser afastada no caso concreto, a depender da natureza dos direitos que estão em debate.

[3] Nesse sentido: AgInt no AREsp 958.718/PI, AgInt no AREsp 1520963/SC e AREsp 1614843/TO.

[4] De forma mais aprofundada, tratei do tema no artigo Direito Fundamental à tutela executiva: a preponderância do princípio da efetividade na fase de cumprimento de sentença in Revista Judiciária do Paraná n. 21, maio/21 (http://www.revistajudiciaria.com.br/wp-content/uploads/2021/06/Revista%20Judici%C3%A1ria%20%2321%20-20maio%202021%20-%20PRONTA%20-%20VERS%C3%83O%20DIGITAL-compactado.pdf?_t=1623240446).

[5] MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à efetivação da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, 2003, p. 303.

[6] ECHE, Luís Mauro Lindenmeyer. A moralidade administrativa como direito fundamental disponível no endereço eletrônico https://jus.com.br/artigos/94620/a-moralidade-administrativa-como-direito-fundamental.

[7] Nota Técnica nº 01/2021 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/notas-tecnicas/docs/nt-1-2021-aplicacao-lei-14230-2021-pgr-00390794-2021.pdf.

[8] SARLET, Ingo. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista Opinião Jurídica, n. 7, 2006.1, p. 174, acessado no sítio eletrônico https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/2134/655, no dia 30/10/21, às 21h56min.

[9] Sobre o tema: Direito fundamental à tutela executiva. Disponível em https://luismaurolindenmeyer9470.jusbrasil.com.br/artigos/1317060205/direito-fundamental-a-tutela-executiva.

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