3. REITERAÇÃO CRIMINOSA COMO FUNDAMENTO JURÍDICO PARA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA À LUZ DE REGRAS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
A necessidade de se evitar a futura reiteração do agente na prática delituosa[3] é a mais clássica interpretação conferida pela doutrina processual penal e pela jurisprudência ao conceito de garantia da ordem pública, para fins de decretação da prisão preventiva.
Diante disso, tal vertente do conceito de garantia da ordem pública, vale dizer, a necessidade de se evitar a futura reiteração criminosa é o argumento mais utilizado e, de igual forma, o mais aceito como motivação da prisão preventiva com vistas a resguardar a ordem pública.
Numa obra antológica, já bastante inovadora para os padrões da época, Basileu Garcia (1945, p.169-170) já afirmava ser tal argumento (impedimento da reiteração criminosa) como fundamento válido para a decretação da prisão preventiva, a fim de se garantir a ordem pública. Nesse sentido, assim prelecionava o retromencionado processualista penal:
Para a garantia da ordem pública, visará o magistrado, ao decretar a prisão preventiva, evitar que o delinqüente volte a cometer delitos, ou porque é acentuadamente propenso à práticas delituosas, ou porque, em liberdade, encontraria os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida.
No mesmo sentido, Avena (2014, p. 899) leciona que:
Entende-se justificável a prisão preventiva para a garantia da ordem pública quando a permanência do acusado em liberdade, pela sua elevada periculosidade, importar intranquilidade social em razão do justificado receio de que volte a delinquir.
Não bastam, para que seja decretada a preventiva com base neste motivo, ilações abstratas sobre a possibilidade de que venha o agente a delinquir, isto é, sem a indicação concreta e atual da existência do periculum in mora. É preciso, pois, que sejam apresentados fundamentos que demonstrem a efetiva necessidade da restrição cautelar para evitar a reiteração na prática delitiva.
Da mesma forma, Lima (2011, p. 236) conceitua e considera plausível o uso da garantia da ordem pública como forma de se evitar a reiteração delitiva do indivíduo:
[...] entende-se garantia de ordem pública como risco considerável de reiteração de ações delituosas por parte do acusado, caso permaneça em liberdade, seja porque se trata de pessoa propensa à prática delituosa, se porque, se solto, teria os mesmos estímulos relacionados com o delito cometido, inclusive pela possibilidade de voltar ao convívio com os parceiros do crime. Acertadamente, essa corrente, que é majoritária, sustenta que a prisão preventiva poderá ser decretada com o objetivo de resguardar a sociedade da reiteração de crimes em virtude da periculosidade do agente.
Na mesma senda converge a lição de Mirabete (2003, p. 166):
Fundamenta-se em primeiro lugar a decretação da prisão preventiva a garantia da ordem pública, evitando-se com a medida que o delinquente pratique novos crimes contra a vítima ou qualquer outra pessoa, quer porque seja acentuadamente propenso à prática criminosa, quer porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida. Mas o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão.
Essa mesma interpretação conferida ao conceito de garantia da ordem pública para fins de decretação da prisão preventiva há muito é utilizada de forma pacífica pelos tribunais brasileiros. A título de exemplo, confiram-se os seguintes arestos extraídos do vastíssimo acervo jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF):
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E LAVAGEM DE DINHEIRO. PRISÃO PREVENTIVA. NECESSIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. RISCO DE REITERAÇÃO DELITIVA. INAPLICABILIDADE DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. A prisão preventiva, nos termos do art. 312 do CPP, poderá ser decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que presentes prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
2. Consta dos autos que o paciente seria integrante de uma organização criminosa e que teria alto grau de gerência do esquema criminoso. Conforme ressaltado pela Corte de origem, a prisão é necessária para fazer cessar a atividade de branqueamento de valores e evitar uma possível reorganização da atividade criminosa.
3. A prisão cautelar está fundamentada na necessidade de garantia da ordem pública, diante da gravidade concreta da conduta e do risco de reiteração delitiva e na necessidade de se interromper ou diminuir a atuação de integrantes de organização criminosa.()
(STJ, AgRg no HC n. 719.304/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 06/09/2022, DJe de 13/09/2022.)
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME DE ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. APLICAÇÃO DA LEI PENAL. PACIENTE FORAGIDO. INDÍCIOS DE AUTORIA. REEXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. MANIFESTA ILEGALIDADE OU TERATOLOGIA NÃO IDENTIFICADAS.
1. Prisão preventiva decretada forte na garantia da ordem pública, presentes as circunstâncias concretas reveladas nos autos. Precedentes.
2. Se as circunstâncias concretas da prática do ilícito indicam, pelo modus operandi, a periculosidade do agente ou o risco de reiteração delitiva, está justificada a decretação ou a manutenção da prisão cautelar para resguardar a ordem pública, desde que igualmente presentes boas provas da materialidade e da autoria, à luz do art. 312 do CPP. Precedentes.
3. O fato de o paciente permanecer foragido constitui causa suficiente para caracterizar risco à aplicação da lei penal a autorizar a decretação da preventiva. Precedentes.
4. A análise minuciosa para o fim de concluir pela inexistência de indícios mínimos de autoria demandaria incursão no acervo fático-probatório, inviável em sede de habeas corpus. Precedentes. 5. Agravo regimental conhecido e não provido.
(STF, HC 218.869 AgR, relatora Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 14/09/2022, processo eletrônico DJe-187 , 19/09/2022).
Sucede que a reiteração criminosa, enquanto expressão da garantia da ordem pública para fins de decretação da prisão preventiva sofre duríssimas e fundamentadas críticas na seara doutrinária.
Nesse compasso, parcela relevante da doutrina processualista penal entende que ao afirmar que a prisão serve para acautelar o meio social contra aquele indivíduo a fim de evitar que o mesmo reitere na prática delituosa, o julgador faz um prematuro julgamento da causa, afirmando ser ele (o agente) o autor do crime ou mesmo que praticará outros delitos. Sim, porque, só reitera uma conduta quem a praticou e só se pode evitar a reiteração restringindo a circulação do autor de certo delito.
Nesse sentido, eis o preciso magistério de Delmanto Júnior (2001, p. 120):
Sem dúvida, não há como negar que a decretação de prisão preventiva com o fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção: a primeira, de que o imputado realmente cometeu o delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime, ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado.
Na mesma senda, Lopes Júnior (2020, p. 707) entende que:
A prisão preventiva para garantia da ordem pública sob o argumento de perigo de reiteração bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a acontecer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível).
Para o dicionário Michaelis (2022, online), reiterar significa manifestar-se pela palavra ou por atos novamente; dizer ou fazer novamente.
É evidente que um dos papéis do Estado, além da persecução e correção daqueles que delinquirem lesando bens jurídicos importantes, é o de tentar evitar que tais infrações ocorram mais de uma vez.
Entretanto, como equacionar a questão, impondo derrotabilidade ou relativização de garantias constitucionais que servem exatamente para dar maior responsabilidade àquele responsável pela aplicação das leis?
Entendemos que esse juízo empírico e genérico de dedução, quando isolado (risco genérico e abstrato de reiteração criminosa) está em rota de colisão com o direito fundamental e princípio constitucional da não culpabilidade ou da presunção de inocência, que detém status de garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República.
Ora, como se poderia dizer que o Estado deve se organizar segregando indivíduo para impedi-lo de reiterar conduta criminosa se na maior parte dos casos sequer o processou formalmente garantindo-lhe o devido processo legal, com o asseguramento do exercício do contraditório e da ampla defesa?
Parece-nos que a solução mais adequada para esta escolha de Sofia passa pela avaliação fática e específica do caso, mantendo com o julgador a discricionariedade já tão debatida e exigindo o exercício do fator humano, da sensibilidade de enxergar as situações com a complexidade que se apresentam.
Muito embora se mantenha a vagueza da expressão, entende-se que a prisão para se evitar a reiteração delitiva conserva a possibilidade de prevenção geral, resguardando o resultado do processo, porém deve ser conjugada com outros fatores, sob pena de receber a pecha comum de exercício de futurologia.
Daí porque se deve apresentar outro motivo recorrente para a decretação de prisões preventivas com base na garantia da ordem pública, que isoladamente também claudica, porém, quando associado ao risco da reiteração delitiva, ganha músculos e se sustenta com mais vigor.
A chamada periculosidade do agente, aferida a partir de circunstâncias concretas, como o modus operandi do fato delituoso ou o fato de o agente pertencer a facção ou organização criminosa, justifica a prisão preventiva para garantia da ordem pública.
Note-se que, aí sim, o Estado-Juiz encontraria razões pretéritas ou atuais relevantes que calçassem uma atuação interventiva, retirando a liberdade de locomoção do agente, com o consequente acautelamento do meio social.
Assim, a prisão preventiva serviria para prevenir a possibilidade de reiteração delitiva. Sobre o tema, confira-se precedente persuasivo da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que se amolda com perfeição ao explanado:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. GRAVIDADE CONCRETA. MODUS OPERANDI. REITERAÇÃO DELITIVA. EXCESSO DE PRAZO. NÃO OCORRÊNCIA. TRÂMITE REGULAR. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. A validade da segregação cautelar está condicionada à observância, em decisão devidamente fundamentada, aos requisitos insertos no art. 312 do Código de Processo Penal, revelando-se indispensável a demonstração de em que consiste o periculum libertatis.
2. No caso, a prisão preventiva está justificada pelo modus operandi empregado na conduta delitiva, revelador da periculosidade do agravante, consistente na prática, em tese, de duplo homicídio qualificado em concurso de agentes, em razão de disputa entre facções criminosas rivais, além de o agente já responder a outras duas ações também por homicídios. Dessarte, evidenciada a sua periculosidade e a necessidade da segregação como forma de acautelar a ordem pública. (...)
(STJ, AgRg no RHC n. 154.568/CE, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 22/03/2022, DJe de 25/03/2022).
Nestas condições, desde que haja elementos probatórios concretos que indiquem, de forma clara e concreta, a periculosidade do agente, e desde que as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso permitam, é possível se atingir um cenário mais adequado para que se conclua, aí sim, baseado em situações subjetivas e objetivas, pela real possibilidade de reiteração delitiva, alcançando-se motivação idônea para a decretação da prisão preventiva para a garantia da ordem pública.
Com esse nível de elementos, Rangel (2007, p. 613) entende que se o indiciado ou acusado em liberdade continuar a praticar ilícitos penais, haverá perturbação da ordem pública, e a medida extrema é necessária se estiverem presentes os demais requisitos legais.
A teor das considerações acima alinhavadas, filiamo-nos à corrente que entende que, havendo verossimilhança concreta de que o agente (investigado, indiciado, denunciado ou acusado) possa voltar a praticar novos crimes de natureza igual ou ainda pior, a prisão preventiva, pautada na garantia da ordem pública, poderá ser perfeitamente decretada. Vale dizer, deve-se estar diante de um quadro evidente, baseado em prova consistente nos autos, que permita concluir que o agente já demonstrou por sua conduta que não se comporta adequadamente em sociedade.
É óbvio que não se parte de um juízo de certeza absoluta, até porque as relações humanas e a própria ciência jurídica não se norteiam por regras matemáticas das ciências exatas. Busca-se, contudo, como bem lembra Pacheco (2006, p. 679), aferir a probabilidade de que o acusado volte a delinquir, o que se pretende evitar com sua prisão preventiva.
Mais adiante, o mesmo autor conclui, num exemplo que, embora simplista, é digno de transcrição: um acusado que tenha praticado vários crimes de roubo e volta a praticar mais um, provavelmente praticará outro roubo, colocando em risco a ordem pública (PACHECO, 2006, p. 679).
Do contrário, isto é, a se decretar a custódia cautelar preventiva lastreada em meras conjecturas, sem qualquer respaldo fático, aí sim, estar-se-á a violar irremediavelmente o direito fundamental e o princípio constitucional da não-culpabilidade, ambos previstos no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As explanações constantes deste breve estudo permitem chegar à inequívoca conclusão de que estamos longe de entregar a tão prometida segurança jurídica que se espera da relação vertical existente entre o Estado e o jurisdicionado, ou mesmo da horizontal entre os últimos (jurisdicionado-jurisdicionado) vivendo em comunidade.
O fator humano é responsável por grande parte dessa ausência de certezas, mas não está solitário nessa caminhada hesitante. Outro importante vetor que tempera os debates está na característica aberta das expressões de cerne, que permitem que as expressões legais sejam interpretadas casuisticamente pelo operador do Direito, numa discricionariedade aparentemente vinculada.
Ao sabor das paixões, exposto às intempéries de humor do hermeneuta julgador e dependentes de suas convicções pessoais e filosóficas (sendo positivistas ou garantistas), está o destinatário da norma, aquele personagem da ponta, que muitas vezes sequer entende exatamente do que se defender se os critérios determinantes são meramente interpretativos.
Expressões do gênero garantia da ordem pública da qual decorrem espécies criadas doutrinária e jurisprudencialmente como evitar a reiteração delitiva, representam convite ao flerte autoritário de um ser humano que é obrigado a decidir, e, sujeito a ideologias, crenças e valores pessoais, preenche a lacuna, aplicando a norma às vezes com dois pesos e duas medidas.
Enquanto o legislador se esquiva de suas obrigações de criar um cenário mais objetivo e menos discricionário, o julgador, que é obrigado a decidir por força do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CRFB), não pode se esquivar pelo contrário: deve cumprir de seu múnus, ainda que o caos da incerteza jurídica se instale mesmo nos casos em que se sacrifica um dos mais caros direitos humanos/fundamentais do indivíduo, o da liberdade de locomoção.
Especificamente sobre a utilização da justificativa da hipótese de garantia da ordem pública baseada no anseio de se evitar a reiteração delitiva para a prisão preventiva, é possível observar um vasto campo de conceitos abertos, e, por isso, de perigo acentuado, o que malfere direitos fundamentais e princípios constitucionais.
Todavia, conforme ponderado, se houver a conjugação de elementos concretos, pode-se diminuir um pouco a discricionariedade e, por que não dizer, do poder do juiz de decidir sobre a necessidade do encarceramento de um semelhante.
Aspectos como a gravidade específica e concreta do crime, a vida pregressa (lastreada em certidão de antecedentes) e a periculosidade concreta do agente (aferida a partir de elementos concretos, como o fato de o indivíduo integrar facção ou organização criminosa) podem servir de justificativa para retirá-lo do convívio social e, aí sim, preservar a ordem pública.
Não obstante, ainda assim não passa de utopia, porquanto a exposição da sociedade a risco com a liberdade do agente é mera projeção abstrata e empírica baseada em achismos, também de ordem subjetiva.
Enfim, diante da vagueza e porosidade da expressão garantia da ordem pública, é de se exigir do magistrado o máximo de cautela quando da decretação da prisão preventiva, obviamente sempre com base em elementos concretos. Somente assim é que será possível a adoção dessa medida cautelar penal deveras gravosa, sem que isso implique em violação ao direito constitucional e princípio constitucional da não-culpabilidade (art. 5º, LVII, CRFB).
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