RESUMO
A ilegalidade da busca pessoal por mera suspeita vem ganhando uma maior notoriedade na atualidade, isso porque tal busca pautada somente nesse sentimento subjetivo do agente que promove a abordagem da pessoa a ser revistada pode causar inúmeras ilegalidades aptas a prejudicar o indivíduo e a própria persecução penal. Neste ínterim, o presente artigo tem como objetivo definir o que seria a busca pessoal, apontar fatos importantes acerca do contexto histórico do referido procedimento, promover a classificação sob a ótica preventiva e processual, discorrer acerca da impressão subjetiva da abordagem pessoal, versar a respeito do abuso de autoridade ocasionado pela busca pautada na mera suspeita, tratar acerca da ilicitude das provas embasada nessa ação eivada de falibilidade e por fim, discorrer acerca do entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores.
Palavras-Chaves: Busca Pessoal. Ilegalidade. Processo Penal
ABSTRACT
The illegality of the personal search for mere suspicion has been gaining greater notoriety nowadays, because such a search based only on this subjective feeling of the agent that promotes the approach of the person to be searched can cause numerous illegalities capable of harming the individual and the criminal prosecution itself. In the meantime, this article aims to define what the personal search would be, point out important facts about the historical context of the referred procedure, promote the classification from a preventive and procedural perspective, discuss the subjective impression of the personal approach, deal with the regarding the abuse of authority caused by the search based on mere suspicion, to deal with the illegality of the evidence based on this action fraught with fallibility and, finally, to discuss the jurisprudential understanding of the Superior Courts.
Keywords: Personal Search. Illegality. Criminal proceedings
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como tema a ilegalidade da busca pessoal por mera suspeita sob a perspectiva dos Tribunais Superiores. A escolha dessa temática se dá em virtude dos recentes casos em que a constatação de uma busca pessoal sem elementos concretos para a sua realização deram ensejo a importantes reflexos nas cortes de maior autoridade no país.
É sabido que a busca pessoal é um importante procedimento, isso porque nesse momento crucial podem ser encontradas com o potencial indivíduo praticante de crime objetos que mantenham relação direta com o delito, objetos esses que darão suporte para uma eventual persecução penal.
Ocorre que a busca pessoal por se tratar de um ato que retira temporariamente a individualidade do agente, é considerada medida excepcional, sendo que a sua realização deverá ser fundamentada em fatos sólidos para que não sobrevenha nenhuma ilegalidade.
Frente aos aspectos previamente apresentados, o artigo ora desenvolvido visa contribuir com o escopo social, jurídico e científico no que toca acerca do devido respaldo para a busca pessoal, com vias a encontrar uma solução que reduza drasticamente ou até mesmo tenha a capacidade de inibir a revista do indivíduo por mera suspeita.
Por fim, para a construção da presente pesquisa será utilizado o método dedutivo, ante ao fato de que se promoverá a análise da doutrina, jurisprudência, lei seca e ainda outros trabalhos científicos que são referência na área a ser trabalhada, sendo que todas essas fontes têm o objetivo único de visualizar como os Tribunais Superiores têm firmado entendimento acerca dessas questões.
I. Definição e contexto histórico da busca pessoal
A busca pessoal também denominada como revista pode ser definida como uma medida cautelar na qual a autoridade policial ou judiciária investiga se o indivíduo possui em sua posse algum objeto que possua caráter ilícito ou que faça alusão ao fato típico.
A doutrina ao disciplinar acerca dessa temática, conceitua tal procedimento da seguinte forma:
Trata-se da diligência realizada no corpo da pessoa, em suas roupas ou objetos que tenha consigo. Pode ser efetivada de forma manual, ocular, mecânica ou radioscópica, esta última utilizada para detecção de coisas proibidas eventualmente ingeridas ou introduzidas no corpo da pessoa em revista. (AVENA, 2021, p. 650)
Historicamente, pode se dizer que a ação ora tratada possui um referencial nas escrituras, isso porque a Bíblia Sagrada especificamente no livro de Gênesis em seu capítulo 44 narra de forma incontestável a busca pessoal realizada em desfavor de homens que supostamente teriam praticado um crime de furto.
Independentemente da origem desta medida, é sabido que o Código de Processo Penal vigente em seu artigo 240 permite o procedimento supracitado, sendo que o artigo 244 do referido código aduz a respeito sobre em quais hipóteses a busca pessoal será cabível.
A busca pessoal é em verdade uma medida que acaba por violar algumas garantias e direitos individuais expostos na Constituição Federal, entre eles o direito à privacidade, razão pela qual é apontada como sendo um ato excepcional.
Mesmo sendo uma medida importante para uma eventual elucidação acerca de um fato criminoso, a busca pessoal pode se mostrar como sendo ilegal quando o fundamento para a sua realização é pautada na mera suspeita, vejamos abaixo alguns entendimentos jurisprudenciais dos Tribunais Superiores versando acerca da necessidade de uma fundamentação concreta para que se proceda a busca pessoal:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. POSSE DE ACESSÓRIOS PARA ARMA DE FOGO. ALEGAÇÃO DE INDEVIDA INVASÃO DE DOMICÍLIO. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. SITUAÇÃO DE URGÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. VOLUNTARIEDADE DO CONSENTIMENTO PARA O INGRESSO NA RESIDÊNCIA. NÃO COMPROVADA. PRECEDENTES. ILEGALIDADE MANIFESTA EVIDENCIADA. OMISSÃO. AUSÊNCIA. 1. A Sexta Turma, ao revisitar o tema referente à violação de domicílio, no Habeas Corpus n. 598.051/SP, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti, fixou as teses de que "as circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que justifiquem tal diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito, as quais, portanto, não podem derivar de simples desconfiança policial, apoiada, v. g., em mera atitude 'suspeita', ou na fuga do indivíduo em direção a sua casa diante de uma ronda ostensiva, comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não, necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando substância entorpecente", e de que até mesmo o consentimento, registrado nos autos, para o ingresso das autoridades públicas sem mandado deve ser comprovado pelo Estado (HC n. 596.694/SC, Ministro Antônio Saldanha Palheiro. DJe 19/10/2021).
2. Não se desconhece a quantidade de entorpecente e o material bélico encontrado dentro da residência (barraco); contudo, a forma como se chegou a esse material está eivada de nulidade, pois as circunstâncias concretas do caso, mesmo somadas, não constituem as fundadas razões exigidas no art. 240, § 1º, do Código de Processo Penal, razão pela qual o ingresso na residência se deu de forma ilegal, motivo pelo qual deve ser reconhecida a ilicitude das provas obtidas por meio da invasão de domicílio, bem como as delas derivadas, e a sentença deve ser anulada, absolvendo-se o paciente, por ausência de provas da materialidade do delito. 3. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no AgRg no HC n. 638.662/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/9/2022, DJe de 22/9/2022.)
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. ABORDAGEM PESSOAL, AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. APLICAÇÃO DA EXEGESE DO RHC N. 158.580/BA. INGRESSO POLICIAL APOIADO EM APREENSÃO DE DROGAS NA POSSE DO AGENTE. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. APLICAÇÃO DO ENTENDIMENTO FIRMADO NO HC N. 598.051/SP. ILEGALIDADES FLAGRANTES. 1. Tendo como referência o recente entendimento firmado por esta Corte, nos autos do HC n. 598.051/SP, o ingresso policial forçado em domicílio, resultando na apreensão de material apto a configurar o crime de tráfico de drogas, deve apresentar justificativa circunstanciada em elementos prévios que indiquem efetivo estado de flagrância de delitos graves, além de estar configurada situação que demonstre não ser possível mitigação da atuação policial por tempo suficiente para se realizar o trâmite de expedição de mandado judicial idôneo ou a prática de outras diligências. 2. No caso em tela, os policiais deram ordem de parada aos corréus em razão de denúncias anônimas que afirmavam estar sendo realizado tráfico de drogas na região. Dado que o motociclista avançou e o carona dispensou um invólucro com 83g (oitenta e três gramas) de insumos para preparo de cocaína, os agentes foram detidos e todos se deslocaram à residência de um deles, onde foram encontrados mais 19g (dezenove gramas) dos mesmos insumos. 3. Portanto, de plano, há ilegalidade na abordagem e revista pessoal nos agentes em razão de terem como lastro somente denúncias anônimas não registradas e não sindicáveis, com o posterior ingresso forçado em domicílio fora das hipóteses legais. 4. "Não satisfazem a exigência legal [para autorizar a busca pessoal], por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de 'fundada suspeita' exigido pelo art. 244 do CPP." (RHC n. 158.580/BA, relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 19/4/2022, DJe 25/4/2022.) 5. Ademais, esta Sexta Turma tem diversos julgados no sentido de que a apreensão de drogas em posse de um agente não torna prescindível a necessidade de mandado judicial para a invasão ao domicílio, porquanto o fato de o suspeito estar com restrição deambulatorial - ainda que momentaneamente, uma vez que detido em flagrante - afasta qualquer possibilidade de que esteja, naquele momento, causando risco à investigação. 6. Habeas corpus concedido para anular as provas decorrentes da busca pessoal ilegal e do ingresso forçado no domicílio, com extensão dos efeitos ao corréu, nos termos do art. 580 do CPP. (HC n. 696.390/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 20/9/2022, DJe de 26/9/2022.)
Neste ínterim, um procedimento que retira a individualidade e a privacidade do possível agente criminoso deve de fato, ter uma motivação mais incisiva, que tenha o condão de justificar a necessidade da medida de forma que subsistam para a realização da diligência, fragmentos mínimos acerca de uma possível autoria delitiva.
II. Classificação (Preventiva e Processual)
Como visto no tópico anterior, a busca pessoal pode ser compreendida como a abordagem do corpo do indivíduo pelo agente policial, em que tem como objetivo buscar e efetivar a promoção da segurança pública, ao procurar drogas, armas, que liguem a um fato criminoso, sob fundada suspeita.
A busca pessoal, além do conceito popular, pode ser entendida como o principal instrumento da polícia militar, inclusive quando realizado o patrulhamento ostensivo que visam garantir o bem comum e a segurança pública.
Nesse sentido, cumpre destacar que o ordenamento jurídico trabalha com a possibilidade de diferentes modalidades da busca pessoal, podendo ser classificadas da seguinte forma para Adílson Nassaro[3]:
1. Quanto ao sujeito passivo da medida, busca pessoal individual e coletiva;
2. Quanto à tangibilidade corporal, busca pessoal direta e indireta
3. Quanto à natureza jurídica do procedimento, se tem a busca pessoal preventiva e processual;
4. Quanto ao nível de restrição de direitos individuais imposto verifica-se a busca pessoal preliminar e coletiva.
Com base nisso, a par de sua importância, a busca pessoal em sua natureza jurídica pode ser classificada de duas formas, a preventiva e a processual. A busca pessoal preventiva decorre do efetivo trabalho do poder de polícia, que atua em nome do Estado, sem exigência de ordem escrita e fundamentada, considera a garantia da segurança pública como mecanismo para prevenir o cometimento de crimes.
Noutro giro, arrematando a questão, os doutrinadores Távora e Alencar[4] (2013, p. 431), elucidam quanto a busca pessoal:
Envolve a busca nas vestes e demais objetos em poder do revistado, como malas, mochilas, automóveis etc. Advirta-se, contudo, que se o automóvel não é apenas um meio de transporte, sendo utilizado como residência, como ocorre com o trailer, alguns barcos, a parte traseira do interior da boléia do caminhão, o tratamento é o mesmo dado à busca e apreensão domiciliar.
Diante dessa perspectiva, a modalidade preventiva nada mais é que salvaguardar provas, após o cometimento de crimes ou seguida à sua constatação, com o fim de atender o interesse processual, inclusive, Lopes Júnior (2015, p. 533)[5], pontua sobre o tema:
Ao lado da busca e apreensão domiciliar, está a busca pessoal, ou seja, aquela que incide diretamente sob o corpo do agente. Autoriza o art. 240, § 2º, que se proceda a busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior. Assim, a autoridade policial (militar ou civil, federal ou estadual) poderá revistar o agente quando houver fundada suspeita. Mas, o que é fundada suspeita? Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policia
Pois bem, esse exercício arbitrário realizado pelo agente estatal encontra previsão legal no artigo 144, §4º da Constituição Federal, o qual expressa de forma fundamentada a regulamentação do instrumento preventivo, ao prescrever que: a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Contudo, vale pontuar que a busca pessoal preventiva, se não for observada sua formalidade, pode causar constrangimento e violar princípios intrínsecos do indivíduo, inclusive no que tange a sua privacidade e liberdade, de acordo com a previsão legal constante no art. 5º, inciso X, da CF, por ser submetido a uma revista pessoal com base em suspeita de indícios de criminalidade, logo, a busca só deve ser admitida no estrito do cumprimento do dever legal, ante violação da intimidade.
Nestes termos, é cirúrgico o entendimento do Tribunal de Justiça do Paraná, que decidiu acerca do exercício do poder de policia em relação a abordagem e revistas. Senão, vejamos:
O Estado possui o que denominamos de poder de polícia (.....). É esse poder que permite aos policiais militares a realização de abordagens e revistas em civis quando entenderem necessário (....). O artigo 240 do Código de Processo Penal trazido pelo apelante não tem nada haver com a "busca" que está a se tratar nos autos. A busca a que se refere o autor é meio de prova (que exige o requisito: fundada suspeita), enquanto que a "busca" que foi feita pelos policiais militares é um ato do exercício do poder de polícia que visa impor aos particulares um dever de abstenção, preservando a segurança e a ordem pública (TJ-PR, Apelação Cível n. 780905-8 Relator: Fabio Andre Santos Muniz, Data de Julgamento: 5.7.2011, 1ª Câmara Cível)
Com efeito, se torna necessário e lógico que o instrumento utilizado pelo agente estatal deve ser procedida com cautela, para que de fato, aplique a fundada suspeita contida no regulamento do Código do Processo Penal em seus arts. 240 e 244 devendo estar presentes os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na busca pessoal, visto que, trata-se de um dever inerente à função policial, mas frisa-se, admitindo somente na hipótese de averiguação da suspeita de um ato criminoso, porque essa é a função preventiva.
Por outro lado, a busca pessoal processual diz respeito ao cumprimento de uma ordem judicial, a ser realizada também, por agentes do Estado, que na oportunidade, são designados para cumprirem deveres solicitados pela autoridade judiciária, tendo como exemplo, colheita de elementos de provas no local, equipamentos, etc, como forma de atender o interesse processual, conforme prevê o art. 243 do Código de Processo Penal.
Sendo assim, interpretando o artigo supramencionado, a busca pessoal processual deverá seguir estritamente os seus requisitos contidos, como indicar o endereço que se procederá a realização do ato, fundamentar o motivo e fins da diligência, bem como ser subscrito pelo escrivão e ser assinado pela autoridade que expedir.
Em suma, a classificação processual nada mais é do que um instituto destinado a auxiliar a Justiça, como forma de obtenção de elementos probatórios na esfera de custódia do suspeito e auxiliar o trabalho repressivo da polícia, sendo o ato de procurar roupas, equipamentos, documentos, vestes, malas, automóveis, pastas, etc.
Portanto, a diferenciação de ambas as características é delimitada da seguinte forma: a preventiva diz respeito a atividade policial realizada como prevenção a prática do crime, enquanto na processual é realizada após a prática delituosa, visando atender os elementos probatórios da infração cometida, bem como para servir de elemento de defesa do réu.
Partindo dessa diferenciação ora estabelecida, Nassaro[6] elucida sobre sua finalidade:
Quanto aos critérios de classificação da busca pessoal em preventiva ou processual, além do aspecto do momento em que ela é realizada (antes ou depois da prática do crime ou da sua constatação), foi mencionada, ainda, a sua finalidade, vez que tecnicamente é possível conceber-se busca pessoal de natureza preventiva até mesmo em réu preso, por exemplo, que será movimentado de um estabelecimento prisional para outro, ou que será apresentado perante o juiz e a sociedade, em audiência criminal, por evidente questão de segurança indispensável nessa circunstância, e realizada por iniciativa da polícia (durante escolta) para a finalidade de preservação da ordem pública. A busca pessoal preventiva será sempre de iniciativa exclusiva da autoridade policial competente, ou seja, daquela que possui o poder de polícia para a consequente - e inevitável - restrição de direitos individuais imposta na medida necessária ao bem comum.
Por fim, na prática, o que ocorre é completamente diferente da teoria, ao vermos que a maioria das pessoas são abordadas pelos agentes sob o fundamento de mera suspeita, o que no caso, não é admitido e torna-se ilegal, inclusive quando envolve o famoso estereótipo de criminoso, acabando por violar princípios fundamentais relacionados a integridade física e moral, que será delimitado no próximo tópico.
III- Impressão subjetiva da abordagem policial
Conforme compreendido na natureza jurídica da busca pessoal, com a previsão constante no art. 244 do Código de Processo Penal, elucida que esta independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houve fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito, ou sendo o caso de medida determinada no curso de busca domiciliar.
Com base nessas informações, extrai-se o trecho da fundada suspeita, esta que conforme jurisprudência atual, é considerada ilegal quando for realizada em subjetividade baseada nas características físicas do indivíduo, uma vez que demonstram que o policiamento ostensivo possui um racismo estrutural, concentrando-se em grupos marginalizados, como fatores de gênero, cor, classe social, vestimentas e o local da residência.
A expressão utilizada da fundada suspeita são critérios objetivos e subjetivos, que devem ser aplicados sempre na proporcionalidade e razoabilidade, seguindo os princípios constitucionais, visto que é o principal requisito da busca pessoal, devendo ser rechaçada qualquer tipo de interpretação preconceituosa e discriminatória reproduzidos na atuação policial.
Desse modo, Nucci[7] aduz acerca da fundada suspeita:
Fundada Suspeita: é requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal, consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem e devem revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente.
Como se vê, a suspeita consiste em uma desconfiança, que da margem para vários debates e interpretações preconceituosas que na prática, são baseadas nos estereótipos, que se destacam pelos trajes e biotipo, ao fazerem uma filtragem racial, permitindo uma conclusão antecipada da polícia para presença da atividade criminosa.
Portanto, em um julgado do RHC nº 158.580 realizado pelo Superior Tribunal de Justiça, pela 6ª Turma, considerou que 99% das buscas pessoais efetivadas pelos agentes policiais não são apreendidos materiais ilícitos, seguindo a interpretação e entendimento do art. 244 do CPP, ao asseverar que a busca pessoal só será legitima e legal dentro dessas hipóteses, caso contrário, estará eivada de nulidade e ilegalidade[8], considerando que a forma no processo penal é uma garantia.
Pelas razões ora expostas, surge a necessidade das gravações no momento da abordagem possível, realizadas pelos próprios policiais, para se evitar abuso de autoridade e todo tipo de tortura ou coação, pois quando diante da ausência de motivos ou justificativos suficientes que assegurem a permissão da busca pessoal, esta acaba por violar a condição fundamental do indivíduo, que se caracteriza na sua privacidade e reiteradas violações constitucionais.
Urge destacar, sobretudo, o entendimento jurisprudencial adotado nos julgados realizados pelo STF e STJ sobre a questão da fundada suspeita e seu elemento subjetivo na abordagem policial:
A 'fundada suspeita', prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um" blusão "suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (HC 81305, Min. ILMAR GALVÃO, DJ 22-02-2002).
TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA. ALEGAÇÃO VAGA DE ATITUDE SUSPEITA. INSUFICIÊNCIA. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA. TRANCAMENTO DO PROCESSO. RECURSO PROVIDO. 1. Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. 2. [] O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como rotina ou praxe do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. 3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de fundada suspeita exigido pelo art. 244 do CPP. 4.O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos independentemente da quantidade após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento fundada suspeita de posse de corpo de delito seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida. [] (STJ. recurso do Habeas Corpus nº 158.580 do Tribunal de Justiça da Bahia. Rel. MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ. Sexta Turma. Julgada em 19/04/2022)
A revista pessoal somente é possível quando houver fundada suspeita de que o agente tenha consigo alguma prova do crime. O réu estava em um bar quando policiais militares chegaram ao local e determinaram que todos se posicionassem contra a parede para serem submetidos à revista pessoal em busca de drogas e, diante de sua negativa, foi preso em flagrante pelo crime de desobediência. Para os Julgadores, quando o policial desconfia de alguém, não pode valer-se unicamente de sua experiência ou pressentimento para realizar a busca pessoal, pois a suspeita a que se refere o Código de Processo Penal (art. 240, § 2º) deve ser séria e embasada em dados concretos de que o revistado esteja portando o objeto ilícito. Acrescentaram que a autoridade policial deve ter a máxima cautela para não praticar atos invasivos e impróprios, devendo evitar, por isso, a escolha aleatória das pessoas, pois a revista é sempre um procedimento constrangedor e humilhante. No caso concreto, os Desembargadores entenderam que, como não houve prova da fundada suspeita contra o acusado, existe dúvida sobre a legalidade da ordem emanada pelos policiais. Desta forma, aplicando o princípio do in dubio pro reo, o Colegiado decidiu absolver o réu. Acórdão n. 869366, 20100410089483APR, Relator: SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 21/05/2015, Publicado no DJE: 29/05/2015. Pág.: 85.
Por outro lado, os precedentes anteriores servem como base para asseverar o entendimento em que a busca pessoal será protegida e resguardada pela disposição constante no art. 5, inciso X, da Constituição Federal, ao preceituar que são invioláveis, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, não sendo admitido utilizar o art. 244 do Código de Processo Penal como prática da rotina policial ostensiva, com intuito exploratório, mas apenas serem realizadas com a finalidade probatória, não satisfazendo a exigência legal quando determinadas por informações anônimas ou pautadas em impressões subjetivas.
Ante o exposto, foi possível concluir no presente tópico que, a busca pessoal só pode e deve ser realizada quando fundada em elementos objetivos, em dados concretos, na fundada suspeita do agente esteja portando arma ou objetos ilícitos, não preenchendo o standard probatório quando baseada pelo estereótipo, expressão corporal ou vestimentas, sob o risco de violar direitos e garantias individuais, que por consequência, caracterizam o abuso de poder.
IV. Do crime de abuso de autoridade
Recentemente no Brasil, sobreveio a lei 13.869/19 disciplinando acerca de diversas condutas criminosas que acarretam abuso de autoridade por parte dos agentes e servidores públicos no exercício de suas funções, sendo que iniciará em persecução penal quando restar comprovado que tais agentes agiram com a finalidade de receber para si ou para outrem algum benefício bem como para prejudicar algum indivíduo.
Com vias a buscar um maior aprofundamento no que diz respeito ao assunto ora tratado, é importante citar como a doutrina conceitua o abuso de autoridade:
Abuso de autoridade é conceituado como o ato humano de se prevalecer de cargos para fazer valer vontades particulares. No caso do agente público, ele atua contrariamente ao interesse público, desviando-se da finalidade pública. (NOVO, 2019)
Dito isso, se pode dizer que o agente público que viola os direitos e as garantias fundamentais do indivíduo visando de alguma maneira causar mal ao suposto suspeito, incorre na supracitada tipificação penal.
As violações mencionadas são facilmente vislumbradas quando por exemplo o agente policial imbuído de um preconceito, usa a sua posição como agente público com a finalidade de causar ao suspeito no momento da revista pessoal um constrangimento em razão desse pré-julgamento.
Com base nisso, surge daí, a necessidade e importância do uso de câmeras pelas autoridades policiais, a fim de se resguardar e conferir maior segurança, bem como garantir o controle da atividade policial, objetivando coibir as práticas ilegais praticadas em abordagem, que ocasionam no abuso de autoridade. Inclusive, tal tema foi tratado no julgamento do HC nº 598.051/SP[9].
A pretexto, o objetivo do monitoramento por câmeras pelos agentes de segurança visa pelos menos evitar, os constrangimentos decorrentes da mera suspeita, sob o fundamento de elementos subjetivos, como as vestimentas, cor, gênero, local residencial, algo insuficiente para medida invasiva, que ocasiona na violação direta dos direitos fundamentais do suspeito, uma vez que implica na detenção do mesmo, ainda que por pouco tempo.
Vale dizer, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça[10], que existem três razões que exijam elementos objetivos, concretos e sólidos para a realização da busca pessoal, que se resumem em: evitar o uso excessivo da medida, garantir a sindicabilidade da abordagem e evitar sua repetição.
Neste sentido, ainda que exista uma legislação especial dispondo que esse comportamento configura crime o abuso de autoridade, o dispositivo legal não é hábil o suficiente para inibir essas condutas, isso porque a busca pessoal por mera suspeita sem outros elementos que comprovem a sua real necessidade pode ser banalmente utilizada para justificar tais espécies de arbitrariedades.
V- Ilicitude Da Prova
Como visto, a busca pessoal deve seguir a regra legal, conforme previsão constante no art. 244 do CPP, se realizando somente quando houver fundada suspeita de que o indivíduo esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituíam corpo de delito, em que a polícia só pode se utilizar do instrumento baseado em elementos objetivos, caso contrário, constitui vedação e ilegalidade da prova, esta quando obtida por elementos subjetivos, como é a hipótese da mera suspeita, o qual vem sendo sedimentada nos tribunais superiores.
Nesse sentido, a prova ilícita no processo penal tem previsão legal no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, ao dispor que são inadmissíveis as provas obtidas por meio ilícito, bem como, teor semelhante no art. 157 do CPP, que determina que quando a prova for ilícita, esta se torna inadmissível e deve ser desentranhada do processo, visto que foram obtidas em violação as normas constitucionais ou legais.
Á título de exemplificação, as provas ilícitas decorrem daquelas que violam a intimidade do indivíduo, quando violam a honra, intimidade, vida privada, imagem, domicilio e das comunicações, esta última, apenas quando autorizada pela autoridade judicial.
Para Borges da Rosa[11], ensina que "a suspeita deve ser fundada, isto é, não vaga, e, sim, forte, séria, apoiada num motivo plausível, aceitável, irretorquível; ter um fundamento real, indiscutível sobre que se apoie a sua razão de ser".
Em brilhante entendimento, o doutrinador Ada Pellegrini Grinover[12] elucida quanto o conceito da prova ilícita, ao dizer que é toda e qualquer prova colhida com infringência às normas ou princípios colocados pela Constituição e pelas leis, frequentemente para a proteção das liberdades públicas e especialmente dos direitos de personalidade e mais especificamente do direito à intimidade.
Com efeito, pode-se dizer que a prova é o meio processual que o juiz irá se valer para formar o seu convencimento acerca de um fato, sendo necessário para o réu ratificar seus direitos, bem como demonstrar quando diante da ausência de culpa ou dolo, por essa razão, é imprescindível a aplicação da proporcionalidade e razoabilidade ao fazer a análise da prova, declarando proibida toda aquela ilegítima, esta entendida como violação de natureza processual ou material.
Sendo assim, a prova contribui para elucidação e contribuição de uma investigação e regular persecução penal, devendo observar a forma em que foi obtida. O grande constitucionalista Alexandre de Morais[13] em sua obra defende a distinção existente entre as provas ilegais e ilegítimas, que não se confundem, uma vez que a prova ilícita é toda aquela obtida com a infringência de um direito material, e a ilegítima, há desrespeito ao direito processual.
Portanto, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, através do julgado do HC nº 158850, sob a Relatoria do Ministro Rogerio Shietti, este sustenta em seu voto que fontes não identificadas como as denúncias anônimas ou impressões subjetivas, não demonstram a descrição concreta e precisa para satisfazer a busca pessoal, além de que, o fato de encontrar objetos ilícitos após a prática da revista pessoal, não convalida a fundada suspeita, não podendo admitir a mera descoberta em situação de flagrância.
Com base nisso, assevera que quando violadas as regras para realizar a busca pessoal, esta resultará na ilicitude da prova, visto que obtida em decorrência da medida, tal como as provas que decorrem dela, popularmente conhecida como a teoria dos frutos da árvore envenenada.
De igual modo, corrobora que a permissão utilizada para a revista pessoal decorre da fundada suspeita devidamente justificada, por circunstâncias do caso concreto e elementos objetivos que apontem que o sujeito esta na posse de ilícitos, logo, neste cenário, não seria possível a permissão do art. 244 do CPP a busca policial como praxe do policiamento ostensivo.
Depreende-se, desta Corte Superior de Justiça, que o tema vem sido reiteradamente decidido a respeito da atitude considerada como suspeita, como o nervosismo apresentado pelo sujeito ao avistar os policiais, estando ausente de razoabilidade a autorização para a busca pessoal, vislumbrada como ilicitude da prova, nos termos do art. 157 do CPP, desentranhando inclusive, dos autos do processo.
Dessa forma, também afirma o Ministro que se não havia fundadas suspeitas para a realização de busca pessoal no acusado, não há como se admitir que a mera constatação de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.
Não obstante, vale destacar o importantíssimo objeto de julgamento pela Quinta Turma do STJ, da relatoria do Ministro Joel Ilan, ao conceder o Habeas Corpus nº 470397/SP, sob fundamento da ilicitude da prova obtida através da revista pessoal quando realizada por agente de segurança particular, uma vez que a segurança pública, conforme previsto na Constituição Federal, estabelece que somente as autoridades judiciais e policiais estão autorizados a realizar a busca pessoal ou domiciliar, inexistindo previsão legal que autorize revista pessoal por agente particular.
Na ocasião desse julgado, in casu, o Ministro alegou, ainda que, o agente da segurança privada se quer pode ser equiparado a guardas municipais, uma vez que são regidos pela CLT, portanto, configurava ilicitude da revista pessoal e todas aquelas provas decorrentes deste ato, absolvendo o paciente de acordo com o art. 386, inciso II, do Código de Processo Penal.
Assim, o objeto do estudo desse tópico foi apresentar a análise da ilicitude da prova quando não estiver em consonância com a permissão da busca pessoal, visto que ninguém poderá ser investigado ou condenado com base em prova ilícita ou ilegítima, como o caso da prática ostensiva dos agentes estatais, que desrespeitam as garantia e princípios constitucionais ao realizar a busca por mera suspeita, o que por consequência, merece ser afastada e repudiada.
VI. Entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores
Com o propósito de contribuir para a ciência jurídica, quanto ao contexto apresentado sobre a ilicitude da prova obtida através da revista pessoal, cabe salutar o entendimento sedimentado e dominante pelas Cortes superiores acerca do tema, que trazem importantes interpretações dos limites na aplicação da medida.
De início, merece referência as recentes decisões pautadas pelas Turmas do STJ, o qual tem se posicionado sobre a ilicitude da busca pessoal quando diante da ausência de fundadas razões, como a justa causa, para indicar a autorização da busca pessoal, inclusive, reconhecendo absolvições que servem como parâmetro e precedentes para a defesa.
O primeiro caso a ser citado trata-se do Agravo Regimental no HC nº 707149/RS[14], que em resumo, o Ministro Sebastião Reis firmou entendimento que é dispensável o mandado de busca e apreensão quando for o caso de flagrante da prática criminoso, contudo, não se satisfaz o ingresso em domicilio e a busca pessoal, visto que não se considera fundadas razões, que desautoriza seu ingresso.
Na ocasião, a diligência foi realizada por policias a partir de uma denúncia anônima, resultando na abordagem do réu em local de ponto de tráfico de drogas, na oportunidade, ao ser revistado, foi apreendido uma porção de maconha, desacompanhada de qualquer monitoramento, investigação ou qualquer elemento que indicasse a mercancia ou outros objetos ilícitos na residência do mesmo.
Nesse sentido, afirmou que conforme precedentes da Corte Superior, as circunstâncias que antecederam a violação de domicilio devem evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que justifiquem tal diligencia e a eventual prisão em flagrante, não podem derivar de simples desconfiança policial, mera atitude suspeita ou fuga do individuo em direção a sua casa quando diante de uma ronda ostensiva.
Logo, pela corrente construída através desse julgado anterior, é possível extrair a interpretação de que nem mesmo a fuga para o interior da residência é apta a justificar a busca pessoal, tornando-se ilícita a prova, considerando que não estão presentes os pressupostos, de forma satisfatória e objetiva as razões que justifiquem a realização da busca pessoal, uma vez que exige-se o standard probatório, o que não foi o caso dos autos em questão.
Por ocasião do julgado do HC 74815/GO[15], o Ministro Rogerio Schietti pontua que o a violação das regras e condições legais para a busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como as das demais provas que dela decorrem em relação a causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do agente público que tenha realizado a diligência.
Nessa linha, no julgado do REsp nº 1977119/SP[16], igualmente da Corte Superior, cuida da hipótese em que guardas municipais estavam realizando patrulhamento quando avistaram o recorrente sentado na calçada, e na ocasião, assustado, levantou-se e colocou uma sacola plástica na cintura. Decorrente de tal conduta, frisa-se, os guardas municipais o abordaram e decidiram realizar a busca pessoal, encontrando um recipiente com cerca quantidade de drogas, efetuando sua prisão em flagrante.
Nesse caso em questão, foi inclusive mencionado no tópico da ilicitude da prova, considerando que assim como seguranças privados, guardas municipais não detém autorização e competência legal para realizar a busca pessoal, violando as disposições contidas nos arts. 244 e 157 do CPP, tendo em vista que, cabe somente a estes agentes municipais acionar os órgãos policiais, para que estes últimos realizem a revista pessoal e abordagem, como desobedeceram às atribuições que lhe eram conferidas, macularam na ilicitude da prova e todas que foram decorrentes.
Noutro giro, o Supremo Tribunal Federal, no julgado do HC nº 212682, da Relatoria da Ministra Rosa Weber, pontua o entendimento em consonância com a jurisprudência do STJ, ao afirmar que a busca pessoal é legitima, desde que amparada por fundamentos devidamente justificados.
Portanto, como foi visto e analisado, os tribunais superiores tem sedimentado o entendimento de que a atitude suspeita baseada no elemento subjetivo do indivíduo através dos seus comportamentos ou características físicas é insuficiente para ensejar na licitude e legalidade da busca pessoal, uma vez que diante da ausência de fundada suspeita, ou seja, da justa causa para proceder a aplicação da medida.
Assim, impõe-se, nada menos, que elementos probatórios capazes de aferir, de modo objetivo e justificado, os indícios e circunstâncias do caso, de que, obedecendo a regra do art. 244 do CPP, o indivíduo esteja na posse de drogas, armas, ou objetos que constituam o corpo de delito, levando-se a urgência de executar tal diligência, pois como estudado, a violação dessas regras para busca pessoal enseja na ilicitude da prova e na sua ilegalidade.
Conclusão
Diante de todo o exposto nos capítulos anteriores, o presente artigo teve como objetivo demonstrar as ilegalidades recorrentes na busca pessoal, principalmente no que tange ao poder ostensivo da polícia, uma vez que violam as regras contidas no art. 244 do CPP, ao deixarem de observar que somente será autorizada e admitida a proceder tal diligência desde que diante da fundada suspeita e não mera suspeita.
Contudo, como visto, a fundada suspeita na maioria dos casos é realizada por meio de elementos subjetivos, aqueles que se baseiam nas características físicas e raciais do indivíduo, que negativamente contribuem para imagem de marginalização e preconceitos estruturais, ao pautarem por esses quesitos, além da suspeita com base em comportamentos, atitudes e denúncias anônimas, que não servem para fundamentar a decretação da medida e se transformam em ilegalidades.
Com isso, necessário mencionar que a busca pessoal trata-se de uma medida excepcional, considerando que esta quando é realizada, causa constrangimento e viola os direitos da personalidade do indivíduo, garantias essas resguardas pela Constituição Federal, que se destacam a da honra e a dignidade da pessoa humana.
De outro lado, foi possível observar que a busca pessoal sempre, independente da circunstância, deve estar resguardada e amparada de elementos objetivos, e nunca subjetivos, respeitando o que vem estabelecido no Código de Processo Penal, que façam a autoridade policial a crer que verdadeiramente o indivíduo esteja na posse ou prática de objetos ilícitos, para que resulte na busca pessoal idônea de legitimação.
Na oportunidade, é cabível mencionar o trecho do voto no julgamento do HC nº 158.580[17] do Ministro Shietti, do Superior Tribunal Federal, ao afirmar que em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Eis aqui, cirúrgico entendimento.
Além disso, levando em consideração o julgado anterior, o entendimento da Corte é pontual ao asseverar que se não há, na hipótese, fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de objetos ilícitos, não há como se admitir mera descoberta casual que justifique a medida realizada, portanto, a violação dessas condições legal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida.
Por fim, ficou demonstrado, de forma evidente, o entendimento das cortes superiores, ao sedimentarem o tema de que, a busca pessoal só deverá ser procedida quando houver justa causa para tanto, não havendo, ou sendo realizada em elementos subjetivos, deve ser considerada ilegal e ser desentranhada do processo, uma vez que contamina toda persecução criminal.
REFERÊNCIAS
[1] Advogada Criminalista, OAB-DF nº 72.611, Pós-graduanda em Processo Penal. E-mail: [email protected]
[2] Advogada Criminalista, OAB-DF nº 72.632, Pós-graduanda em Processo Penal. E-mail: [email protected]
[3] NASSARO, Adilson Luís Franco. A busca pessoal e suas classificações. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1356, 19 mar. 2007. Disponível em: jus.com.br/artigos/9608. Acesso em: 07.09. 2016
[4] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 8ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013.
[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 12ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.
[6] NASSARO, Adilson Luís Franco. Busca Pessoal. 2013. 151 f. Monografia (Especialização) - Curso de Especialização de Direito Processual Penal, Escola Paulista de Magistratura, São Paulo, 2003
[7] Código de Processo Penal Comentado. 4ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 493
[8] CONJUR. AZEVEDO, Juliano Marques, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-01/marques-azevedo-alem-fundada-suspeita
[9] HC n. 598.051/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/3/2021, DJe de 15/3/2021
[10] HC n. 598.051/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 2/3/2021, DJe de 15/3/2021
[11] ROSA, Inocencio Borges da. Processo Penal Brasileiro, v. II. Porto Alegre: Globo, 1942, p. 148
[12] GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
[13] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 117
[14] AgRg no HC n. 707.149/RS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 13/9/2022, DJe de 16/9/2022
[15] HC n. 742.815/GO, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 23/8/2022, DJe de 31/8/2022
[16] REsp n. 1.977.119/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 23/8/2022
[17] RHC n. 158.580/BA, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022
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