Resumo
Apesar da importância do conceito de bem jurídico para o direito, com especial relevância para o direito penal, ao definir a aplicabilidade ou não do seu objeto, há discondâncias doutrinárias quanto a sua natureza. Uma breve exposição sobre as correntes clássicas e algumas discussões atuais relevantes para o conceituação do bem jurídico serão abordadas.
1.INTRODUÇÃO
Ferrajoli (2014), em seus dez axiomas do Garantismo Penal traz a seguinte assertiva: Nulla necessitas sine injuria. Ou seja, não há necessidade sem ofensa a bem jurídico. A depender da posição doutrinária que se tome, a ausência de ofensa ao bem jurídico resultará na ausência de materialidade do crime ou na não punibilidade. Há corrente minoritária que entende que há crime e punibilidade mesmo sem lesão a bem jurídico, contudo tal posição encontra barreira em disposições legais, como no crime impossível positivado no art. 17 do Código Penal ou no princípio da bagatela que se extrai do § 2º do art. 155 do mesmo código. Sem querer entrar na divergência que se forma, é certo que pelo princípio da lesividade ou ofensividade do evento, o conceito de bem jurídico se torna relevante. Assim, não se pode negar a discussão doutrinária sobre o bem jurídico, como critério de referência da dimensão material do delito. A noção de bem jurídico teve mudanças ao longo da história, porém, as diferentes doutrinas podem ser divididas em duas correntes: a transcendental, que aponta que o bem jurídico existe por si mesmo; e a imanentista que acredita que a norma cria e precede o bem jurídico. Irá se expor um recorte das diferentes doutrinas.
2.Origem e evolução histórica
2.1 Fase pré-iluminista
Nesse período o objeto tutelado era o interesse religioso, o direito de castigar tinha como fundamento um direito eterno, independente do contrato social, o delito aparece como pecado e desobediência a vontade divina.
2.2 Iluminismo
Vem a primeira tentativa de delimitar um conceito material de delito,com Anselm von Feuerbach. Influenciado pelos pensamentos jusracionalistas, iluminista e idealista kantiano apresenta-se em contrapartida com os pensamentos teocrático e do despotismo esclarecido colocando o homem em posição principal, o delito está ligado à proteção da liberdade pessoal prevista no contrato social, assim toda pena passa a ter tida como consequência jurídica de uma norma, o valor protegido se identifica com o direito subjetivo pessoais. Johan Birnbaum de outro modo, defendia um modelo natural, não atribuindo a essência do delito a lesão de direito garantido pelo contrato social mas a ofensa aos bens comuns, o delito se torna o dano social, só sendo punido quando efetivamente ofensivo, o valor defendido é social e não pessoal.
2.3 Positivismo Formal
Karl Binding, principal representante dessa corrente, aponta a configuração do bem jurídico como uma figura privilegiada. O poder de criminalizar era apenas do legislador. Sua concepção positivista revela uma harmonia absoluta entre norma e bem jurídico, sendo sua única fonte. Entende que o bem jurídico é elemento é mero resultado da norma, negando qualquer legitimação material.
2.4 Positivismo Material
Fraz von Liszt, com um postura extranormativa, negou qualquer liberdade ao legislador, considerando a imparcialidade, devendo a ação do legislador ser limitada, sofrendo críticas por não especificar como. Admitindo que o bem jurídico precede a norma, que apenas o reconhece.
2.5 Neokantismo
Houve a substituição da noção material de bem pela noção de valor, de um valor cultural que nasce da proibição das normas culturais que precedem as normas jurídicas. Ernest Mayer representa uma volta ao reconhecimento da dimensão individual e do caráter psicológico-cultural. Inaugura a justificação da obrigatoriedade das normas positivas. Richard Honig põe o bem jurídico concebido como valor cultural não real, mas ideal ou espiritualizado, o bem jurídico era apenas o sentido dos preceitos penais. Ao confundir objetivo e objeto a vertente neokantiana recebe críticas.
2.6 Finalismo
Tem como expoente Hans Welzel. Ele propôs que a intervenção penal deveria punir desvalores da conduta em si, e não com seu resultado como propusera Liszt. O direito penal cabe proteger valores elementares da vida social e os bens jurídicos se tornam o estado social desejável, com missão de cunho ético-social, modelando o indivíduo enquanto integrante da sociedade, cabe ao direito penal tutelar a consciência dos cidadãos. Só devendo o bem jurídico a ser protegido quando tem relevância na vida social.
2.7 Funcionalismo Moderado
Claus Roxin, principal representante dessa doutrina, baseia-se em ideais iluministas e na ideia de contrato social, criticando Welzel. Defende que o bem jurídico deve ser princípio interpretativo da norma penal e não elemento normativo em si devido a sua imprecisão e vulnerabilidade. Aponta o direito penal como o responsável pela proteção seletiva de bens jurídicos. Para Roxin o bem jurídico apresenta caráter transcendental, aproximando-o dos princípios constitucionais, cabendo ao Direito penal a defesa de bens jurídicos de ligados ao indivíduo e bens fundamentais à sociedade, protegidos pela constituição.
2.8 Funcionalismo Radical
Günther Jakobs se opõe ao funcionalismo moderado. Baseando-se em Hegel, aponta que a função do direito penal é a proteção da da norma, entendendo o delito como uma lesão ao sistema normativo o que enfraqueceria a vigência da norma. Sua visão, deixa em segundo plano a tutela constitucional, atribuindo ao legislador a função de determinar que lesão a qualquer conteúdo normativo será legitimamente tutelado pelo Direito penal.
2.9 Funcionalismo Redutor
Eugenio Raúl Zaffaroni, aponta o bem jurídico como ratio legis da norma e do tipo, dando sentido e finalidade ao direito penal, ao qual cabe tutelar não o respeito ao bem jurídico, mas sua disponibilidade ao indivíduo,o bem jurídico torna-se uma relação comunicacional entre pessoas e o delito seria a conduta que impossibilite ou lese a relação de disponibilidade do bem jurídico.
2.10 Teoria do Harm Principle
Comum em países de origem anglo-saxã, propõe não a defesa do bem jurídico mas do harm principle que limita o poder punitivo do Estado, só podendo o comportamento individual ser limitado para prevenir danos a interesse de terceiros. O bem jurídico indica interesse a ser protegido pela norma enquanto o harm principle analisa as consequências dos atos e a reparação do dano a pessoa prejudicada.
4.Discurso atual: bens transindividuais e coletivos:
Impelida por previsões incriminadoras destinadas a bem jurídicos de difícil individualização, a discussão sobre a validade e legitimidade de incriminação de determinadas condutas que guardam referência a bens jurídicos transindividuais. Costuma-se diferenciar bem jurídico individual, que pertence à pessoa mesma; e os bens jurídicos coletivos. Contudo o aumento da importância do tema não gerou uniformidade da discussão. A doutrina já desmistificou, bens jurídicos aparentemente coletivos que na realidade são a soma de bens jurídicos individuais, como é o caso da saúde pública. Contudo existem diversos contextos dignos de intervenção penal, que não podem ser identificados como bens jurídicos individuais ou sua soma, é o caso do ambiente por exemplo, de sorte que a discussão passa a ser como devem ser tratados esses bens jurídicos.
A primeira discussão trata-se de se manter uma única definição de bem jurídico (monismo) ou duas definições uma para os bens jurídicos individuais e outro para os bens jurídicos coletivos (dualismo). A opção predominante foi pelo monismo, com vista a evitar a fragmentação do direito penal. O monismo pode ser coletivo, admitindo somente a referência ao bem jurídico individual a partir da demonstração de um interesse coletivo; ou individual, admitindo somente a referência ao bem jurídico coletivo no medida em que esse se justificasse por vários interesses individuais subliminares. Entre essas opções a personalista é a preferida, visto que a coletiva dota o Estado da condição de sujeito de direito.
Atualmente existem diversas tendências de monismo e dualismo, contudo existem outros aspectos que estão em discussão, como se o direito penal deve ou não ocupar-se dos bens jurídicos coletivos, quais e sob quais critérios. A tendência monista personalista atualmente afirma que o Direito penal é incapaz de intervir sobre os chamados novos riscos, ou seja sobre o Direito coletivo. Vinculados ao patrimônio ideológico iluminista acreditam que um autêntico bem jurídico é expressão de um interesse individual.
A teoria social dos bens jurídicos, por outro lado, acredita que o direito penal deve ser socialmente integrado, levando em consideração a sociedade e seus integrantes, aponta o monismo personalista como defensor da propriedade privada, defendendo que se deveria contemplar não apenas o objeto que será protegido mas também o titular desse bem, entendendo que o bem jurídico individual só deve ser protegido se coletivamente isso se justifica. Nessa concepção os bens jurídicos individuais assumem o figura do que normalmente denominado transindividuais, atendendo a um único indivíduo ou grupo.
A teoria dos bens jurídicos intermediários defende um modelo dualista pelo qual um bem jurídico seria protegido pelo Direito penal quando puderem ser identificados como valores meios ou instrumento a realização de valores essenciais, como vida, liberdade e propriedade. Assim seria legítima a intervenção penal sobre bens jurídicos coletivos que servem de instrumento à realização plena dos bens jurídicos individuais, essenciais.
A teoria dos bens jurídicos coletivos autônoma defende que os bens jurídicos coletivos tem tanta legitimidade quanto os individuais, contudo de bases diversas destes. Tentam assim identificar características próprias dos bens jurídicos coletivos dignos de proteção, sendo algumas dessas características a excluibilidade, ou seja que ninguém todos podem tomar livre proveito do bem protegido e seu uso por um indivíduo não diminui a possibilidade de que outros gozem do mesmo bem.
A referência monista humanista, por outro lado, defende que ataques graves a bens jurídicos essenciais para o desenvolvimento humano em sociedade, e reconhecidos por ela como tal. Assim, não se diferenciaria os bens jurídicos individuais dos supra individuais ou coletivos.
Assim, as diversas doutrinas apontam diferentes visões sobre a proteção ou não de bens transindividuais e coletivos pelo Direito penal. Entende-se, contudo, que os bens jurídicos coletivos são legitimamente protegidos pelo Direito penal embora não consiga ser individualizados, vista sua relevância para a coletividade, como aponta Busato (2015).
3.Função e conceito de bem jurídico
Bussato (2015), aponta que para que uma ação ou omissão tenha relevância para o Direito penal necessita possuir pretensão conceitual de relevância ou tipicidade formal, que se encontra vinculada à concorrência de um tipo de ação que possui uma dimensão formal; e uma dimensão material, ou seja, vinculada ao ataque a um bem jurídico essencial. A lógica silogística é superada, adotando-se uma dimensão material integrada ao tipo.
Contudo, sem a pretensão de encerrar a discussão, humildemente entendo que o bem jurídico é a justificação material de tomar-se determinada conduta como delito. Isso porque a intervenção Estatal, no âmbito do direito penal, que restringe direitos fundamentais, só se justifica, em um Estado democrático de direito, se determinados bens essenciais, em geral positivados na constituição, são postos em risco. Assim sendo, entendo o bem jurídico como transcendental a norma, dando origem a mesma, inclusive a nível constitucional, estando imanente a sociedade. Cabe ao ordenamento jurídico defender esses bens essenciais aos indivíduos e garantidos pelo pacto social que justifica todo o ordenamento, só sendo legítima a norma, inclusive a norma penal, que atua nesse sentido.
4. Conclusão
A discussão sobre a natureza dos bens jurídicos não alcançou um consenso doutrinário. Apesar disso, o bem jurídico é ser assertivamente aquilo que é tutelado pelo direito penal enquanto ultima ratio e, a depender da teoria do crime adotada, a base para definir a punibilidade ou a materialidade do crime, sendo relevan.
Referências
FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão (Teoria do Garantismo Penal), 4 ed. São Paulo, RT, 2014
BUSATO, Paulo César. A dimensão material da pretensão de relevância: pretensão de ofensividade. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. p. 346-391.
MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Evolução histórica da teoria do bem jurídico. Lições fundamentais de Direito Penal: parte geral. [S.l]: Saraiva, 2016. p. 89-136.