RESUMO
No enfoque sobre a relevância para o Direito Penal frente às condutas dos guardadores/lavadores informais de veículos foram apontados os dispositivos legais relacionados à atividade profissional e a incidência de normas penais, sendo objeto de interpretação as condutas dos profissionais sob a ótica da ciência criminal, com especial análise ao crime de extorsão, para serem confrontados com as práticas cotidianas. Para além do Direito Penal, medidas extrajudiciais poderiam regulamentar a profissão, para tanto, foi utilizado o método dedutivo, a pesquisa documental e bibliográfica.
Palavras-chave: Guardadores/Lavadores de veículos; Criminalização; Extorsão.
ABSTRACT
In the focus on the relevance of Criminal Law in face of the conduct of informal car keepers/cleaners, the legal devices related to the professional activity and the incidence of criminal norms were pointed out, being the object of interpretation the conducts of professionals from the point of view of criminal science, with special analysis of the crime of extortion, to be confronted with the daily practices. In addition to the Criminal Law, out-of-court measures could regulate the profession, for such, the deductive method, documentary and bibliographical research were used.
Keywords: Vehicle guardians/cleaners; Criminalization; Extortion.
- INTRODUÇÃO
A profissão dos guardadores e lavadores autônomos de veículos surgiu para atender a uma demanda do mercado por pequenos serviços a serem prestados aos motoristas que estacionam o veículo na via pública, tais como indicação de vagas para estacionar, vigilância, manobra e lavagem de veículos. Na década de 1970, foi sancionada a Lei Federal n. 6.242[5], de 23 de setembro de 1975, e regulamentada pelo Decreto n. 79.797, de 8 de junho de 1977, firmados pelo então presidente Ernesto Geisel, em que estipulava que os interessados tenham a obrigação de se registrarem nas Delegacias Regionais do Trabalho, como também, estabelece os requisitos para o seu exercício, bem como deveres a serem cumpridos pelos profissionais e pelo Poder Público.
Na atualidade, no município de Belo Horizonte - MG, existem um grande número de guardadores e lavadores autônomos de veículos atuando informalmente, sem se preocupar com os preceitos legais, haja vista que a prática da profissão é vedada, conforme o artigo 118 da Lei Municipal de número 8.616 de 14 de julho de 2003 (Código de Posturas), porém, segundo informações oficiais prestadas pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, em 2021, existem cerca de 1.056 trabalhadores cadastrados. Verificou-se, também, inúmeras vezes, um grau muito elevado de insatisfação, por parte dos motoristas usuários dos serviços prestados por esses trabalhadores, referente aos serviços mal prestados. As reclamações dos motoristas, em muitos casos, sinalizavam indícios da prática de ilícitos penais, por parte dos guardadores e lavadores autônomos de veículos. Diante dessa situação evidencia a necessidade de um exame acurado sobre o tema: Qual a relevância da tutela do Direito Penal, em relação à atuação irregular de guardadores e lavadores autônomos de veículos em via pública?
A hipótese cientifica levantada pauta-se na percepção de que a irregularidade principal, constatada na presente pesquisa, foi a prática da profissão sem regulamentação própria, sendo que atualmente existe uma lacuna legislativa regulatória, bem como indícios de atentados aos direitos fundamentais, especialmente, a liberdade de locomoção e patrimonial dos motoristas, usuários dos serviços daqueles trabalhadores. Para resolver tais questões, faz-se necessário que o Estado intervenha com eficiência, utilizando os instrumentos mais adequados, dentre os que possui. À disposição do Poder Público estão vários ramos do Direito, que devem ser aplicados, conforme o ensejo de cada tipo de situação. Por meio do Direito Administrativo, por exemplo, pode o Poder Executivo fiscalizar a atividade dos guardadores e lavadores autônomos de veículos e aplicar sanções, em caso de irregularidades administrativas constatadas. A atuação do Direito Civil tem o poder de obrigar que eventuais danos, materiais ou morais, sejam reparados, se provocados pelos trabalhadores guardadores de carros ou pelos motoristas usuários dos seus serviços. Ambas as partes, ainda, caso se sintam insatisfeitas com algum aspecto dos serviços prestados, podem recorrer ao Direito Consumerista, competente para regular a relação entre prestador e usuário de serviços. Bem como apontar como o Direito Penal constitui recurso válido para resolver eventuais lesões aos direitos, cuja tutela seja penalmente relevante.
A competência do Direito Penal, porém, se restringe àqueles casos em que há violação de bens jurídicos muito relevantes para a convivência em sociedade. Desse modo, diante dos indícios de irregularidades verificadas, relacionadas à prestação de serviços dos guardadores e lavadores de veículos, percebeu-se ocasião propícia para examinar se o Estado deve ou não sempre utilizar esse ramo do direito para penalizar as condutas desses profissionais. Para tanto, esta pesquisa buscou estudar as normas gerais e especiais do Direito Penal a fim de se prover com conteúdos básicos para interpretação das situações que envolvem as práticas cotidianas dos guardadores e lavadores autônomos de veículos, e, conferir se elas possuem relevância suficiente para serem alvos de preocupação das Varas Criminais do Poder Judiciário.
Na sequência, foram, especialmente, analisados os entendimentos de alguns doutrinadores, como na obra Manual de Direito Penal: Parte Geral de Fabbrini Mirabete e Curso de Direito Penal: Parte Especial do Prof. Rogério Greco, para comparação com as condutas dos trabalhadores pesquisados, objetivando conferir se, efetivamente, as práticas cotidianas daqueles indivíduos contêm ações expressamente proibidas pelo Direito Penal.
O método consiste no exame do tema sob todos os seus aspectos, mediante observação dos os fatores que o influenciaram. Nesse sentido, os guardadores e lavadores autônomos de veículos atuantes na cidade de Belo Horizonte MG, foram escolhidos como um grupo representativo desses trabalhadores, de forma ampla. A elaboração deste trabalho contou com a técnica da documentação indireta, mediante pesquisa documental, na qual foram buscados documentos normativos relacionados com o tema, como forma de reunir os preceitos legais que dizem respeito à atuação dos guardadores e lavadores autônomos de veículos. Em seguida, a técnica de pesquisa bibliográfica foi utilizada para investigar a visão de especialistas sobre aspectos relevantes que guardam relação com o objeto de estudo do presente trabalho.
Este trabalho foi desenvolvido mediante estruturação de seções, cada uma com finalidade convergente para o alcance dos objetivos do estudo. Estruturalmente, a pesquisa está dividida em três seções além desta introdução, conclusão e referências, intituladas de: Legislação e a Atividade de guardadores e lavadores de veículos em via pública; Direito Penal e as práticas de guardadores de veículos e Especial análise da infração penal de extorsão.
- LEGISLAÇÃO E A ATIVIDADE DE GUARDADORES E LAVADORES DE VEÍCULO EM VIA PÚBLICA
A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, foi instituída pela Portaria Ministerial Nº 397/2002, com o objetivo de promover uma uniformização das ocupações existentes no mercado de trabalho, para fins de classificação junto aos registros administrativos e domiciliares. Importante ressaltar que a CBO não se confunde com a regulamentação das profissões, a qual é feita mediante lei, não havendo, portanto, obrigações decorrentes da mudança da nomenclatura do cargo exercido pelo empregado. (BRASIL, 2002).
A atividade de guardador de veículos, na CBO, tem o código nº 5199-25, com a seguinte descrição: Flanelinha[6], guardador autônomo de veículos, guardador de carro, orientador de tráfego para estacionamento. (BRASIL, 2002). A descrição apresentada pelo documento do Ministério do Trabalho e Emprego é simples e não traz detalhes sobre as atribuições específicas dos flanelinhas, mas somente expõe sinônimos para o termo guardador de veículos, o que já demonstra uma deficiência no enfrentamento da temática pela esfera legislativa.
Para a ocupação lavador de veículos, a CBO atribui o código de nº. 5199-35, e a descrição seguinte:
Ajudante de lavador de automóvel, Ajudante de polidor de veículos, Enxugador de veículos, Enxugador e acabador na lavagem de veículos, Lavador de automóveis, Lavador de carros, Lavador de ônibus, Limpador de aviões, bondes, coletivos, ônibus e trens, Operador de lavador de veículos, Polidor de automóveis, Polidor de veículos. (BRASIL, 2002).
De igual forma, em relação à profissão de lavador de veículos, a CBO se restringiu a mencionar expressões equivalentes ou similares, sem se ocupar da descrição de atribuições, requisitos ou outro aspecto qualquer.
2.1 Requisito para o exercício
A Lei de nº 6.242, de 23 de setembro de 1975, dispõe sobre o exercício das profissões de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, determinando preceitos a serem observados pelos profissionais e por órgãos do Poder Público. Esse dispositivo legal estabelece como requisito para o exercício da profissão, o registro na Delegacia Regional do Trabalho competente, o qual pode ser feito, mediante convênio celebrado, por quaisquer órgãos da Administração Pública Federal, Estadual ou Municipal. (BRASIL, 1975)
A concessão do referido registro para os guardadores e lavadores autônomos de veículos depende do preenchimento de condições que devem ser verificadas por ocasião da apresentação de documentos, por parte do interessado, conforme estabelece o artigo 3º da Lei 6.242/75:
Art. 3º A concessão do registro somente se fará mediante a apresentação pelo interessado, dos seguintes documentos:
- - prova de identidade;
- - atestado de bons antecedentes, fornecido pela autoridade competente;
- - certidão negativa dos cartórios criminais de seu domicílio;
- - prova de estar em dia com as obrigações eleitorais;
- - prova de quitação com o serviço militar, quando a ele obrigado.
Parágrafo único. Em se tratando de trabalhador menor, a efetivação do registro de que trata este artigo fica condicionada ao que dispõe o parágrafo 2º do artigo 405 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). [...] (BRASIL,1943)
A concessão do registro, pela Delegacia Regional do Trabalho, ou outro órgão público que tenha competência, por força de convênio, conforme se verifica no artigo 608, da Consolidação das Leis Trabalhistas:
Art. 608 - As repartições federais, estaduais ou municipais não concederão registro ou licenças para funcionamento ou renovação de atividades aos estabelecimentos de empregadores e aos escritórios ou congêneres dos agentes ou trabalhadores autônomos e profissionais liberais, nem concederão alvarás de licença ou localização, sem que sejam exibidas as provas de quitação do imposto sindical, na forma do artigo anterior. [...] (BRASIL,1943)
Por fim, ressalta-se que outro requisito para o exercício das profissões de guardador e lavador de veículos é o porte do Cartão de Identificação fornecido pelo sindicato, cooperativa ou associação, que deve ser exibido aos usuários de seus serviços, bem como aos órgãos públicos de fiscalização e aos Sindicatos, em conformidade com o previsto no artigo 6º do Decreto Federal de Nº 79.797/77 (BRASIL, 1977), o qual Regulamenta o exercício das profissões de guardador e lavador autônomos de veículos automotores, atendendo ao artigo 5º da Lei de nº 6.242, já mencionada.
2.2 Trabalhador menor de idade
Verifica-se que o menor de 18 anos, inclusive, pode obter o registro de guardador de veículos, respeitada a legislação trabalhista, consoante o disposto no artigo 405, do Decreto 5.452, Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), retro mencionado, onde se lê:
Art. 405 - Ao menor não será permitido o trabalho:
- - nos locais e serviços perigosos ou insalubres, constantes de quadro para esse fim aprovado pelo Diretor Geral do Departamento de Segurança e Higiene do Trabalho;
- - em locais ou serviços prejudiciais à sua moralidade.
§ 2º O trabalho exercido nas ruas, praças e outros logradouros dependerá de prévia autorização do Juiz de Menores, ao qual cabe verificar se a ocupação é indispensável à sua própria subsistência ou à de seus pais, avós ou irmãos e se dessa ocupação não poderá advir prejuízo à sua formação moral. [...] (BRASIL,1943)
Impositivo que se faça necessário observar que em tempos atuais, é preciso o respeito aos dispositivos constitucionais acerca do trabalho de adolescentes:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;( BRASIL,1988)
[...]
Art. 227 [...]
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no Art. 7º, XXXIII; [...] (BRASIL,1988)
Enfatiza-se que a idade mínima para o labor, sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo 60, prevê que é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. (BRASIL, 1990).
O poder público deve fiscalizar e coibir a atividade de flanelinha exercida por menores de idade em desacordo com as normativas trabalhistas, evitando-se, desse modo, a exposição dos menores a todo tipo de exploração.
2.3 Legislação do Município de Belo Horizonte
Em Belo Horizonte não há regulamentação municipal para a atividade dos guardadores de veículos, que fica condicionada, então, às especificações gerais da legislação federal. Destaca-se, porém, que tramita na Câmara Municipal, o Projeto Lei 55/2021[7], que pretende acrescentar ao Código de Posturas do Município dispositivos para regular aspectos relacionados às atividades dos guardadores e lavadores de veículos. O projeto prevê a cobrança de licenciamento para o exercício das profissões, bem como a padronização de uniformes para os profissionais, como forma de facilitar a fiscalização das atividades.
No caso de lavadores de veículos, por outro lado, já está em vigor, desde 1.993, a Lei Municipal de Nº 6.482, que autorizou o Poder Executivo a estabelecer convênio com a Delegacia Regional do Trabalho, para controle e fiscalização da profissão de lavador de veículos automotores nas vias públicas do Município. (BELO HORIZONTE, 1993), conforme Art. 1º da Lei Municipal de Nº 6.482/1993. De acordo com a previsão da Lei Federal nº. 6.242: Art. 2º - Para o registro a que se refere o artigo anterior, poderão as Delegacias Regionais do Trabalho celebrar convênio com quaisquer órgãos da Administração Pública Federal, Estadual ou Municipal (BRASIL, 1975). Em 1994, foi publicado o Decreto Municipal de nº. 7.809 (BELO HORIZONTE, 1994), com a finalidade de regulamentar a Lei de nº. 6.482, o qual apresenta dispositivos relevantes sobre o ofício de lavadores de veículos no município.
Registre-se que a legislação federal reservou à Autoridade Municipal a competência para definição de quais os logradouros podem ser utilizados para a prática dos lavadores de veículos: Art. 4º - A Autoridade municipal designará os logradouros públicos em que será permitida a lavagem de veículos automotores pelos profissionais registrados na forma da presente lei. (BRASIL,1975).
Percebe-se que legislação municipal previu a delimitação dos logradouros onde deve ser permitida a lavagem por ocasião da própria concessão do registro aos lavadores, tendo em vista que o documento a ser fornecido ao profissional deve estabelecer o ponto onde ele pode exercer o ofício (BELO HORIZONTE, 1994):
Art. 5º - É vedado exercer a atividade em ponto diverso daquele para o qual foi autorizado.
Parágrafo único - O limite para o exercício da atividade compreende o quarteirão onde se localiza o ponto.
Em Belo Horizonte, aqueles que se interessem em obter o registro, previsto pela legislação, devem comparecer às Regionais da Prefeitura, locais habilitados para o cadastro e registro dos profissionais, nos termos da normatização profissional específica, disposta na Lei nº 6.242/75. Existem 1.056 lavadores e guardadores de veículos registrados[8] na Prefeitura de Belo Horizonte.
- DIREITO PENAL E AS PRÁTICAS DOS GUARDADORES DE VEÍCULOS
Dentre os vários aspectos sob os quais se poderia estudar as condutas dos guardadores e lavadores de veículos em via pública, essa pesquisa se ocupou de examinar as implicações que essa prática traz para o Direito Penal. Desse modo, é imprescindível que se averigue, brevemente, alguns ângulos desse ramo da ciência jurídica, como forma de evidenciar a base de conhecimentos utilizada para o desenvolvimento da primeira consideração relevante sobre o Direito Penal que se pode fazer, nesse contexto, diz respeito a sua finalidade, a qual está relacionada com a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade, mediante proibição ou obrigação de determinadas condutas. Para tanto, sanções são aplicadas àqueles que descumprem os preceitos jurídicos penais. A esse respeito, afirma Rogério Greco (2010, p. 2) que:
A finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade... Com o Direito Penal objetiva-se tutelar os bens que, por serem extremamente valiosos, não do ponto de vista econômico, mas sim político, não podem ser suficientemente protegidos pelos demais ramos do Direito.
Júlio Fabbrini Mirabete (2007, p. 3) explana que a ofensa a bens alheios, pura e simples, constitui ilícito civil, gerando necessidade de reparação, mediante indenização. Em alguns casos, porém, os bens jurídicos afetados têm maior relevância e extrapolam interesses individuais, constituindo condutas profundamente lesivas à vida social (MIRABETE, 2007, p. 22). Nesse caso, para o autor, o Estado utiliza o Direito Penal para aplicação de sanções severas, tendo em vista que o Direito Civil ou os demais ramos do Direito Público não são suficientemente eficientes para proteção desses bens jurídicos.
Nesse ponto, cabe uma reflexão sobre a necessidade (ou a falta dela) de se atribuir ao Direito Penal a incumbência de tratar das condutas de guardadores autônomos de veículos em via pública, que atuam sem preencher os requisitos legais exigidos para a prática da profissão. Importante verificar, no contexto desta pesquisa, se a finalidade do Direito Penal inclui a responsabilidade de proibir e punir práticas cotidianas desses trabalhadores. A problemática jurídica persiste em responder à seguinte indagação: Não seria suficiente deixar a cargo do Direito Administrativo, Civil, ou outro pertinente, a aplicação de sanções para cidadãos que exercessem a profissão de guardadores e lavadores autônomos de veículos, de forma clandestina, sem registro formal em órgãos públicos? Ou o fato tem relevância suficiente para ser proibido e penalizado pelo Direito Penal, devido aos bens jurídicos que afeta? E o que dizer sobre as condutas desses trabalhadores, durante o exercício da atividade, suas práticas profissionais? Será que há elementos nocivos à sociedade, lesões a bens jurídicos com maior relevo? As respostas a essas questões só podem ser obtidas com uma análise mais detida dos dispositivos do Direito Penal, que versam sobre a criminalização das condutas, que será realizada nesta seção.
3.1 Princípios penais de garantia
Para Fernando Capez (2010, p. 28), imprescindíveis são as considerações acerca dos princípios penais de garantia, já que a eles está subordinado o próprio legislador, que não pode incriminar determinada conduta sem levar em consideração o seu conteúdo material, bem como a sua ofensa à dignidade da pessoa humana, sob pena de inconstitucionalidade. Está subordinado a essa análise prévia, inclusive, o operador do direito, no momento de proceder à adequação típica, tendo em vista que os princípios penais de garantia são anteriores aos tipos penais, e componentes estruturais deles. Uma análise dos tipos penais deve ter em conta essa premissa, tendo como pano de fundo os princípios penais, com suas especificações e implicações.
- Princípio da Intervenção Mínima
Um princípio penal de garantia amplamente acolhido pela doutrina é o da intervenção mínima do Direito Penal, segundo o qual não há necessidade de atuação do Direito Penal nas questões que podem ser devidamente resolvidas a partir de outros ramos do Direito (GRECO, 2010). A esse respeito manifesta Capez (2010, p. 36) que:
Somente haverá Direito Penal naqueles raros episódios típicos em que a lei descreve um fato como crime; ao contrário, quando ela nada disser, não haverá espaço para a atuação criminal. Nisso, aliás, consiste a principal proteção política do cidadão em face do poder punitivo estatal, qual seja, a de que somente poderá ter invadida sua esfera de liberdade, se realizar uma conduta descrita em um daqueles raros pontos onde a lei definiu a existência de uma infração penal.
Percebe-se que o entendimento de Capez (2010) sobre o princípio da intervenção mínima abrange a obrigatoriedade de se haver previsão legal expressa, para que determinado fato seja considerado criminoso, em consonância com o previsto no Art. 1º do Decreto Lei Nº 2.848, Código Penal Brasileiro: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. (BRASIL, 1940). Destaca- se, então, que a legalidade, imposta para que haja imputação de um crime ao cidadão, funciona também como um funil, a serviço do princípio da intervenção mínima: se não houver previsão legal anterior, nenhum fato pode ser considerado ilícito penal.
3.1.2 Princípio da Insignificância
Segundo Capez (2010), esse princípio tem origem no Direito Romano e possuía cunho civilista, sendo introduzido no direito penal em 1964 por Claus Roxin, considerando o moderno contexto de política criminal. Reza o princípio que não deve o Direito Penal se ocupar com condutas que lesem os bens jurídicos de forma insignificante, pois, nesse caso, não há lesão de fato no interesse que se pretende proteger. Ressalta o autor, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça, bem como o Supremo Tribunal Federal, concordam com a utilização do princípio da insignificância, que é aplicado, cotidianamente, naquelas casas judiciárias.
Greco (2010) afirma que a lesão a bens jurídicos de valor insignificante faz carecer a conduta de tipicidade, o que encerra a discussão sobre a existência de crime. Conforme o autor, enquanto o princípio da intervenção mínima se dirige principalmente ao legislador, que deve utilizá-lo para selecionar os bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal, o princípio da insignificância tem como objetivo central o operador do direito, que deve avaliar o grau da lesividade das condutas, no momento de aplicar a lei penal.
- Princípio da Lesividade
Conforme assevera Greco (2010), o princípio da lesividade se dirige, primeiramente, ao legislador, o qual verificará quais condutas têm, de fato, potencial de causar lesão a bens jurídicos relevantes. Em observância a esse princípio, por exemplo, não se deve proibir atitudes internas, quer dizer, intenção ou pensamento, tendo em vista que elas não afetam nenhum bem jurídico. Não se pode, também, incriminar uma conduta que se restrinja ao âmbito do próprio doutrinador, motivo pelo qual não se pune o suicídio tentado. Não se pode proibir e punir, tampouco, estados ou condições existenciais, por falta absoluta de conduta, elemento fundamental para existência de crime. Por fim, expõe o autor, que condutas desviadas, que não afetem nenhum bem jurídico, a exemplo do indivíduo que deixa de tomar banho, não devem ser incriminadas (GRECO, 2010).
Somente há crime quando determinada conduta seja materialmente típica, não bastando a simples adequação da conduta ao tipo, que garante apenas a tipicidade formal, a qual não é suficiente para configuração do delito, conforme teoria conglobante da tipicidade.
- Princípio da adequação social
Afirma Capez (2010) que esse princípio pretende fazer com que deixe de ser considerada criminosa a conduta que seja socialmente aceita, ainda que haja tipo penal que a incrimine. A aceitação social, nesse caso, pode ocorrer por meio do uso histórico, costumeiro, de forma que a sociedade não tenha como injusta ou danosa a conduta aceita socialmente. A lógica por trás desse princípio se abrigaria na premissa de que a lei penal deve incriminar apenas condutas que tenham relevância social, de forma que aqueles comportamentos que passem a ser aceitos pela sociedade não podem ser considerados infração penal, sob pena de inconstitucionalidade. O autor alerta para que não se confunda esse princípio com o da insignificância, que discrimina a conduta que tem tipicidade formal, mas, há ausência de lesão a bem jurídico relevante; enquanto o princípio da adequação social apregoa que se deixe de considerar crime a conduta aprovada, admitida pela sociedade. O próprio Capez (2010), contudo, previne que há críticas ao princípio da adequação social, lembrando que costume não revoga lei. Assevera o autor também que ao juiz não cabe considerar revogado dispositivo legal vigente, pois senão haveria confusão entre seu papel e o do legislador. Outra crítica apontada se refere à característica vaga do conceito de adequação social, que dificulta uma interpretação objetiva, tornando-o de difícil aplicação. Conclui, por fim, Capez, entretanto, lembrando que não se pode descartar o princípio, principalmente no que diz respeito à análise da subsunção das condutas aos tipos penais, considerando cada período histórico (CAPEZ, 2010, p. 35-36).
Régis Prado (1999) concorda com Capez, ao afirmar que o significado da adequação social implica que determinada conduta não será considerada típica, ainda que haja subsunção ao tipo, nos casos em que essa conduta tiver reconhecimento social. Também Prado, contudo, faz ressalva quanto a aplicação desse princípio, em decorrência de sua imprecisão, que o tem levado a ser descartado pela maioria da doutrina, atualmente. O autor sustenta que só se deve aceitar o princípio da adequação social como critério de interpretação, avaliando-se as elementares dos tipos, conforme o contexto histórico e social de cada época.
Nas palavras de Greco (2010, p. 54):
[...] o princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais incriminadores. Mesmo que sejam constantes as práticas de algumas infrações penais, cujas condutas incriminadas a sociedade já não mais considera perniciosas, não cabe, aqui, a alegação, pelo agente, de que o fato que pratica se encontra, agora, adequado socialmente. Uma lei somente pode ser revogada por outra, conforme determina o caput do art. 2º da Lei nº 4.657 de 1942, Introdução ao Código Civil.
Complementando seu raciocínio, Greco (2010) relata que há vários casos de réus que procuram se defender argumentando que a conduta praticada, encontra-se adequada socialmente, principalmente em relação à contravenção penal tipificada no artigo 58 do Decreto-Lei 3.688/41 (BRASIL, 1941), que proíbe o jogo do bicho. Segundo Greco, esse tipo de argumento, que tenta se valer do princípio da adequação social, desse modo, não costuma ser acatado pelos Tribunais. A falta de eficácia que tem tido o Poder Público em combater esse tipo de prática não a torna socialmente aceita.
- Teorias de crime
Segundo Greco (2010. p. 135), a legislação penal atual não fornece um conceito de crime, tal qual faziam dispositivos legais anteriores. Observa-se, apenas, um critério para diferenciação entre crime e contravenção, no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal:
Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas. alternativa ou cumulativamente. (BRASIL, 1941)
Apenas na doutrina, portanto, se verificam conceitos para o crime, dentre os quais, Greco (2010) considera mais relevantes três, com maior difusão e admissão: a) conceito formal; b) conceito material; e c) conceito analítico. O conceito formal se resume na simples coincidência entre o fato e a previsão da norma penal, sem se preocupar com as consequências ou implicações da conduta. O conceito material, por sua vez, considera que há crime ao constatar lesão a bem jurídico relevante, advinda de determinada conduta. Greco explica que os conceitos material e formal não bastam para o entendimento completo do crime. Enquanto o conceito formal negligencia uma análise concreta mais minuciosa, o conceito material deixa de levar em consideração a previsão legal para a conduta criminosa, essencial, segundo o princípio da legalidade. É por esse motivo que Greco declara possuir o entendimento de que o conceito analítico tem maior potencial para analisar o crime, na medida em que propicia uma avaliação mais completa e adequada (2010).
Para Capez (2010), material, formal e analítico são aspectos sob os quais se pode conceituar o crime. Sob o aspecto material, a análise busca identificar a essência das ações, sendo consideradas crime aquelas que causam lesão ou perigo aos bens jurídicos [...]considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social (Capez, 2010, p. 179). O aspecto formal se preocuparia com a previsão legal, sendo crime toda ação que fosse por ela abarcada, havendo perfeita subsunção da conduta ao tipo penal. Já o aspecto analítico separa o delito em elementos, para serem analisados de forma separada, a fim de se concluir pela existência de crime quando todas as etapas da análise fornecessem resultado positivo. O autor considera que as etapas a serem consideradas, conforme o aspecto analítico, são duas, a tipicidade e a ilicitude, o que confere a teoria por ele defendida a designação de bipartida.
Às teorias analíticas do crime. Capez é adepto da vertente bipartida, considerando crime todo fato típico e ilícito (ou antijurídico), sendo a culpabilidade mero requisito para aplicação da pena. Já Greco (2010) entende ser mais apropriada a teoria tripartida, que define o crime como o fato típico, antijurídico e culpável, sendo a concepção analítica de crime majoritariamente aplicada.
Seja como elemento do crime, ou como pressuposto para aplicação da pena, entretanto, todos os autores manifestam concordância em reconhecer o valor da culpabilidade, dedicando a ela expressiva atenção no decorrer de suas lições. Esse trabalho se preocupou em analisar, também, o entendimento da doutrina acerca do tema, como forma de compreender sua aplicação na disciplina jurídica.
- Tipicidade
Segundo Greco (2010), o primeiro elemento do crime é o fato típico, que se subdivide em conduta, resultado, nexo causal e tipicidade. A conduta pode ser dolosa ou culposa; comissiva ou omissiva. A conduta dolosa, para Greco, é aquela praticada pelo agente com a intenção de provocar determinado resultado, ou assumindo o risco de produzi-lo; já a conduta culposa é aquela por meio da qual advém um resultado pela inobservância do dever de cuidado, devido a negligência, imprudência ou imperícia. Greco destaca que a existência da conduta pressupõe a vontade do indivíduo de alcançar um resultado final. Se não houver vontade, não há conduta. São três, para o autor, as circunstâncias pelas quais se verifica ausência de conduta: a) força irresistível, que ocorre quando força da natureza ou de terceiro acomete o indivíduo, a exemplo da força do vento, ou empurrão de uma pessoa; b) movimentos reflexos, os quais podem resultar de uma descarga elétrica, por exemplo; c) ou estados de consciência, como no caso de embriaguez completa involuntária.
O resultado, segundo componente do fato típico, é conceituado por Mirabete como a [...]modificação do mundo exterior provocado pelo comportamento humano voluntário (MIRABETE, 2007, p. 82). O autor esclarece, porém, que vários crimes não provocam alterações no mundo exterior, a exemplo da injúria, do ato obsceno, da violação de domicílio, dentre outros. Conforme o artigo 13, do Código Penal, contudo, a existência do crime depende do resultado. Mirabete conclui que, por isso, deve-se entender o conceito de resultado em um sentido mais amplo, não restrito ao resultado naturalístico. É a esse resultado jurídico, proposto pelo autor, que se refere o artigo 13, do Código Penal, como requisito para existência do crime. No mesmo sentido, afirma Greco que todos os crimes produzem resultado jurídico, que deve ser entendido como a lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado pela lei penal (GRECO, 2010, p. 208).
O terceiro componente do fato típico é a relação de causalidade, que constitui, para Greco, um elo entre a conduta do agente e o resultado jurídico dela consequente. Sem o nexo de causalidade não há como responsabilizar o autor da conduta pelo resultado ocorrido (GRECO, 2010).
Explica Mirabete que o conceito de causa tem origem nas ciências naturais, e não nas ciências jurídicas, devendo ser entendida como a ligação entre acontecimentos ocorridos sucessivamente. Analisando o sentido lexical do termo, tem-se que causa [...]é motivar, originar, produzir fenômeno natural que independe de definição (MIRABETE, 2007, p. 98). O doutrinador relata que existe proposta de reforma, pelo Ministro da Justiça, que pretende a eliminação da definição de causa no Código Penal, em virtude da imprecisão que se verifica na doutrina em relação à definição do termo. Por ora, porém, constata-se que o artigo 13 do atual Código mantém que Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (BRASIL, 1940).
A tipicidade penal, último componente do fato típico, é formada pela tipicidade formal e pela tipicidade material, juntas formam a chamada tipicidade conglobante. A tipicidade formal quer dizer a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um, tipo penal incriminador. Já a tipicidade conglobante pressupõe que: [...]a) a conduta do agente seja antinormativa e b) que haja tipicidade material, ou seja, que ocorra um critério material de seleção do bem a ser protegido (GRECO, 2010, p. 153). Sobre a antinormatividade da conduta, Greco (2010, p. 153) esclarece que a ação do agente não pode ser imposta ou fomentada por lei. É o que ocorre com o carrasco, o qual tem sua ação alcançada pela tipicidade formal, mas sua conduta não é antinormativa, na medida em que é imposta por lei. Em relação à tipicidade material, segundo pressuposto para a tipicidade conglobante, Greco adverte que deve ser aferida [...]a importância do bem no caso concreto, a fim de que possa concluir se aquele bem específico merece ou não ser protegido pelo Direito Penal (GRECO, p. 156).
Depois de analisada determinada conduta, caso se conclua que ela não guarda tipicidade, encerra-se a análise e conclui-se que não há crime, em virtude do princípio da reserva legal, segundo a lição de Capez (2010). O mesmo autor afirma, porém, que a confirmação da tipicidade, apenas, sinaliza que se deve prosseguir na análise, a fim de verificar se há ilicitude, segundo elemento do conceito analítico de crime.
- Ilicitude
Segundo Greco (2010), a tipicidade de determinada conduta indica que ela deve ser também, ilícita, na medida em que já se verificou que ela viola alguma previsão legal. A ilicitude (ou antijuridicidade), porém, deve ser confirmada, após uma análise mais aprofundada, a fim de verificar se o fato típico fere o ordenamento jurídico como um todo. O autor ilustra afirmando que há situações em que o agente realiza um fato típico, mas a ilicitude da conduta é afastada em virtude de previsão legal, ou supralegal, como no caso de alguém que mata outra pessoa, com a intenção de se defender de um grave ataque injusto. Nesse exemplo, não houve dolo do autor para a prática de ilícito, mas para proteger sua vida, situação que afasta a ilicitude do fato.
Mirabete, no mesmo sentido, afirma que a antijuridicidade é a contradição entre uma conduta e o ordenamento jurídico (MIRABETE, 2007, p. 168). Para o autor, o fato típico é antijurídico, até que se prove o contrário, na medida em que se ajusta ao tipo penal. Existem casos, porém, em que a lei afasta a antijuridicidade do fato, o que faz concluir pela não existência de crime nessas circunstâncias. Mirabete deduz, portanto, que a antijuridicidade se resume à inexistência de causas excludentes de ilicitude, quais sejam, estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito.
Para Capez (2010), os termos ilicitude e antijuridicidade, frequentemente tratados como sinônimos pela doutrina, devem ser diferenciados. Antijuridicidade seria a tradução de um termo alemão que significa contrariedade ao direito. O segundo elemento do conceito analítico de crime deve, de forma mais acertada, ser tratado como ilicitude, assim como faz a parte geral do Código Penal, nos artigos 21 e 23, ao se referir ao erro sobre a ilicitude do fato e causas de exclusão da ilicitude, respectivamente (BRASIL, 1940).
Como se percebe, fato ilícito é aquele que é típico e não tem sua ilicitude afastada por causa legal ou supralegal.
- Culpabilidade
O conceito de culpabilidade, na doutrina, está ligado à reprovação pessoal do agente que pratica um fato já considerado típico e ilícito. Damásio de Jesus (2007), por exemplo, assevera que o termo tem significação ligada a reprovação, reprovabilidade, censurabilidade, juízo de valor, todos sobre o agente de fato típico e antijurídico (JESUS, 2007, p. 13). Greco (2010), sobre o tema, manifesta que só pode ser considerado culpável o fato praticado pelo agente que detém a possibilidade de escolher agir em conformidade com a ordem jurídica.
Conforme Capez (2010), a culpabilidade diz respeito à possibilidade de reprovação do agente que praticou um ato punível, quando ele podia e devia ter agido de modo diverso. Relaciona-se, portanto, com a censura a determinada pessoa, pela provocação de um resultado negativo alcançado por sua vontade ou por descuido evitável. Os elementos da culpabilidade, para o autor, semelhante ao proposto por Greco, são três:
- imputabilidade;
- potencial consciência da ilicitude;
- exigibilidade de conduta diversa.
- Infração penal
Ainda que de forma sintetizada, o presente capítulo perpassou por temas complexos e abrangentes, imprescindíveis para a caracterização de um ilícito penal. Tão importante quanto à finalidade do Direito Penal, mencionada no início da seção, e cada dispositivo tratado na sequência, na medida em que é necessário a presença de todos eles para conclusão sobre a existência de crime ou contravenção, conforme se verificou com a explanação dos doutrinadores supracitados. A partir deste ponto, portanto, esta pesquisa está munida de elementos básicos para a análise das condutas dos guardadores e lavadores autônomos de veículos que não possuem registro profissional, a fim de conferir se há resquícios de infração penal.
- ESPECIAL ANÁLISE DA INFRAÇÃO PENAL DE EXTORSÃO
Até o momento, o presente trabalho preocupou-se com o exame das especificações legais sobre as profissões de guardadores e lavadores autônomos de veículos e com a realização de breve análise acerca das normas do Direito Penal, necessárias para o entendimento sobre a constatação de infrações penais. Este capítulo, nesse contexto, pretende propiciar um entendimento a respeito de alguns tipos penais, a fim de que se possa verificar se há enquadramento das condutas dos guardadores e lavadores de veículos, não registrados, em crime ou em contravenção.
O crime de extorsão é definido no Código Penal, artigo 158, onde se lê:
Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa. (BRASIL, 1940)
Para Mirabete (2010), a extorsão constitui delito contra o patrimônio, mas visa tutelar, também, a inviolabilidade e a liberdade individual. Segundo o autor, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, mas caso seja funcionário público e pratique a conduta em razão ou no exercício profissional, e este não utilize de violência ou grave ameaça, o crime poderá ser o de concussão, previsto no Art. 316 do Código Penal. Também o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa. Mirabete, em seguida, assevera que a extorsão existe quando o agente utiliza, para intimidar, violência ou grave ameaça idônea a provocar na vítima um temor que a obrigue a fazer, deixar de fazer ou tolerar que se faça algo, podendo ser a ameaça de revelar um segredo, de depor em juízo com declarações desfavoráveis e de prisão por falso policial, por exemplo. Não caracterizaria o delito a ameaça de recorrer à Justiça ou mover ação.
O autor chama atenção, também, para a elementar indevida vantagem econômica, e afirma que a vantagem devida, se exigida com violência ou grave ameaça, sinaliza o exercício arbitrário das próprias razões, tipificado no artigo 345 do Código Penal. Lembra ainda Mirabete, que o dolo, na extorsão, é o de constranger, com a finalidade de obter vantagem econômica ilícita, sempre com utilização de violência ou grave ameaça. Caso não haja fim econômico, o delito poderá ser o constrangimento ilegal, sequestro para fins libidinosos, ou outro, conforme cada caso em específico. Sobre a consumação, o autor esclarece que existem duas orientações. Uma delas considera a extorsão como crime formal, com momento de consumação coincidente com a ação, omissão ou tolerância da vítima.
Já a outra, entende o delito como material, com consumação relacionada a obtenção da vantagem econômica do agente. Mirabete afirma, sobre esse ponto, que a redação do tipo penal não é clara, e manifesta que a consumação deve ocorrer com a ação ou omissão do autor. Para clarear a questão, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 96, com a seguinte redação: crime de extorsão consuma-se independentemente de obtenção da vantagem indevida. Afirma ainda o autor que, apesar de formal, é possível a tentativa, no crime de extorsão, pois a consumação exige mais de um ato. Nas palavras de Mirabete: Ocorre a tentativa quando a ameaça não chega ao conhecimento da vítima, quando esta não se intimida ou quando o agente não consegue que ela faça, tolere que se faça ou deixe de fazer alguma coisa. (MIRABETE, 2010, p. 218)
Jesus (2007), no mesmo sentido, considera como objeto jurídico principal o patrimônio. Conforme o autor, porém, a extorsão é crime complexo, tendo como objeto jurídico, também, outros bens, tais como a vida, a integridade física, a tranquilidade de espírito e a liberdade pessoal. Sobre o sujeito ativo, afirma o autor que se trata de qualquer pessoa, mesmo que funcionário público no exercício da função. Nesse ponto, o entendimento de Jesus converge com o de Mirabete, pois ambos consideram que, havendo a violência, ou grave ameaça, não há que se falar em concussão. Sobre o mal prenunciado, porém, Jesus esboça posicionamento contrário, afirmando que pode ser justo ou injusto.
Em relação ao elemento subjetivo, o autor assevera ser o dolo, devendo ainda haver a finalidade econômica, ou a tipicidade poderá ser a do constrangimento ilegal. Outro ponto relevante, mencionado pelo autor, diz respeito ao critério de apreciação da ameaça, que não é objetivo, devendo ser verificado em cada caso, considerando as características pessoais da vítima. No caso de vantagem devida, Jesus afirma que não há tipicidade no delito de extorsão, podendo haver no exercício arbitrário das próprias razões. Já em relação a vantagem que não seja econômica, mas moral, tenderia a caracterizar o constrangimento ilegal.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais tem debatido o tema sobre a vertente da configuração do crime de extorsão no que tange à atividade profissional dos flanelinhas, conforme Ementa:
Ementa Oficial: PENAL - ARTIGO 158 DO CÓDIGO PENAL E ARTIGO 47 DA LCP - ABSOLVIÇÃO -IMPOSSIBILIDADE - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - AFASTAMENTO DA MAJORANTE DO ARTIGO 158 §1º DO CÓDIGO PENAL - INVIABILIDADE - TENTATIVA - INVIABILIDADE - ALTERAÇÃO DO REGIME - IMPOSSIBILIDADE - RECORRER EM LIBERDADE - DESCABIMNENTO - ISENÇÃO DAS CUSTAS PROCESSUAIS - PEDIDO PREJUDICADO - RECURSO DESPROVIDO. 1. Impõe-se a condenação quando comprovadas se encontram a autoria e a materialidade do delito. 2. Inviável é o afastamento da majorante do artigo 158 §1º do Código Penal pois a prova colhida confirmou a participação dos quatro apelantes na empreitada criminosa, agindo estes em união de desígnios e propósitos para a prática delitiva. 3. O delito de extorsão é crime formal, consumando-se independentemente da obtenção da vantagem patrimonial pelo agente desde que a vítima se sinta constrangida. 4. O pedido de recorrer em liberdade deve ser rejeitado, mantendo-se o acautelamento do apelante. 5. Prejudicado está o pedido de isenção de custas porquanto referido benefício já foi deferido pelo juiz a quo. 6. Recurso desprovido.
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0024.13.315413-8/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE (TJ-MG, 2016)
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais ratificou a condenação em primeiro grau dos autores pela prática do crime de extorsão enquanto exerciam a atividade de flanelinha.
Em um outro julgado, porém, outra Câmara, assim entendeu:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - EXTORSÃO - ATIVIDADE DE "FLANELINHA" - VÍTIMA NÃO IDENTIFICADA E AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA - ATIPICIDADE DE CONDUTA - ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE NECESSÁRIA - RECURSO PROVIDO. 1. Sem vítima definida e identificada, além de não caracterizada a violência ou grave ameaça, deve o réu ser absolvido do crime do art. 158 do Código Penal. 2. É pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial, segundo o qual uma decisão condenatória só é possível diante de um juízo de certeza moral. 3. Recurso provido.
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0145.07.386956-5/001 - COMARCA DE JUIZ DE FORA (TJMG, 2014)
Na Vara Criminal de Juiz de Fora em Minas Gerais, um flanelinha foi condenado pela prática de extorsão, contudo, após recurso junto ao Egrégio TJMG, foi absolvido.
Nota-se que não há um entendimento uníssono quanto à interpretação das condutas dos flanelinhas, ficando à mercê do entendimento jurídico dos julgadores frente ao caso em concreto posto.
- CONCLUSÃO
Como se verifica, esta pesquisa iniciou com a análise da legislação pertinente à atividade de guardadores e lavadores autônomos de veículos, como forma de entender as especificações aplicáveis às suas práticas profissionais. Na sequência, o estudo de normas gerais e especiais do Direito Penal, objetivou fornecer elementos que permitissem uma compreensão abrangente sobre os limites legais que circundam as práticas cotidianas dos trabalhadores pesquisados.
Para tanto, obras de doutrinadores consagrados foram consultadas para formação de uma base consistente que pudesse sustentar a análise estudada. Ficou demonstrado que a atividade de guardadores e lavadores autônomos de veículos sem o preenchimento das condições exigidas pela legislação profissional pode configurar a contravenção penal de exercício ilegal da profissão (art. 47 da Lei 3688/41). É claro, que a verificação sobre a existência da contravenção, deve ser feita em cada caso em concreto, com a consequente responsabilização penal do agente, deve considerar todos os fatores relacionados à conduta do guardador e lavador de veículos, tendo em vista que ela deve ensejar um fato típico, antijurídico e culpável.
A confirmação da hipótese tem caráter genérico e diz respeito aos casos em que um guardador e lavador autônomo de veículo qualquer, deixa de cumprir as condições exigidas pela lei para o exercício da profissão, configurando-se a tipicidade penal. Em relação às causas que podem excluir a ilicitude da conduta do autor, a doutrina consultada somente admite o estado de necessidade, na medida em que as demais exigem requisitos que, em razão da lógica, não podem existir concomitantes à contravenção, ora analisada.
Quando trouxer elementos que apontam para indícios do cometimento dos crimes de ameaça, constrangimento ilegal e extorsão, que é a intimidação dos motoristas, por parte dos guardadores e lavadores de veículos. Sendo a intimidação elementar para os três delitos mencionados, que podem se alternar, conforme a presença de outras circunstâncias que variam em cada caso em concreto. Se o dolo do agente for o de ameaçar o motorista, estará presente o crime de ameaça (art. 147 do CP). Caso o dolo seja o de intimidar, com a intenção de obrigá-lo a fazer algo que a lei não obriga, ou deixar de fazer algo que ela permite, o delito será o constrangimento ilegal (art. 146 CP). Já no caso em que o agente possua o dolo de obter indevida vantagem econômica, poderá estar configurado o crime de extorsão (art. 158 CP)
A constatação da existência de infrações penais, considerando situações genéricas, como se pretendeu com esta pesquisa, encontra limites naturais ligados à falta de aspectos particulares presentes em cada caso. Como se nota, uma parcela considerável das situações que envolvem a atuação dos flanelinhas evidencia a presença, ou ausência, de indícios da prática de delitos por esses trabalhadores.
Para resolver esse quadro, o Direito Penal oferece ferramentas de coerção, para que o Estado coíba a atuação de indivíduos que queiram se fazer passar por trabalhadores, com o fim de cometer delitos e provocar prejuízos morais e materiais aos demais cidadãos.
Por fim, Belo Horizonte MG conta com uma imensa frota de veículos, e é notório que não foi projetada para abrigar essa grande quantidade de automóveis, onde então, foi inserido nesse contexto, os flanelinhas, que embora exerçam uma atividade importante para o gerenciamento das vagas de estacionamento, ainda não mereceu o tratamento sério e comprometido por parte das autoridades públicas. Não há um enfrentamento sistêmico do problema da exclusão social, revelando preocupante comodismo por parte do Poder Público, no sentido de controlar a vulnerabilidade social imposta, ao não apresentar soluções que resgatem a dignidade e a cidadania dos trabalhadores de rua, como por exemplo, a falta de iniciativa do poder executivo municipal em celebrar convênio com a Delegacia Regional do Trabalho. Assim, não efetivam políticas públicas para que possam regular o exercício da profissão, deixando, dessa maneira, as margens da Lei.
REFERÊNCIAS
BELO HORIZONTE. Decreto Nº 7.809, de 22 de fevereiro de 1994. Regulamenta a Lei n° 6.482, de 29 de dezembro de 1993 e estabelece diretrizes para o licenciamento de lavadores de carro. Disponível em <http://www.cmbh.mg.gov.br>. Acesso em: 03 abr. 2022.
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. Projeto de Lei Nº 1.942, de 2011. Dispõe sobre o exercício da atividade de lavador e guardador de veículo automotor, acrescentando a Seção IV-A ao Capítulo IV do Título III da Lei n° 8.616/03, que "Contém o Código de Posturas do Município de Belo Horizonte", e dá outras providências. Disponível em <http://cmbhweb.cmbh.mg.gov.br/leis/projetos-de-lei-e-outras-proposicoes>. Acesso em: 03 abr. 2022.
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