Análise da natureza jurídica do crime de deserção e seus reflexos penais e processuais

06/10/2022 às 14:47
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RESUMO: No crime permanente, a execução do delito e a ofensa ao bem jurídico se protraem no tempo por determinação do sujeito ativo, podendo cessar de acordo com a sua vontade. Segundo a doutrina e a jurisprudência majoritárias, a deserção é crime permanente, pois a situação de ausência e o prejuízo causado à regularidade da instituição militar se prolongam no tempo, por vontade do agente, o qual pode interromper a conduta típica. Assim, o art. 132 do CPM não se aplica ao sujeito capturado ou que se apresentou voluntariamente devido à cessação da permanência (art. 125, §2º, c, do CPM). A imposição de imediata lavratura do Termo de Deserção e a declaração de submissão do suspeito à prisão (com efeitos meramente declaratórios, e não constitutivos) servem apenas para atestar, tempestivamente, que a consumação do crime foi devidamente avaliada no âmbito administrativo, conferindo segurança jurídica. O art. 132 do CPM mitiga a imprescritibilidade que seria gerada pela situação de permanência. Quanto aos reflexos penais e processuais da discussão, verificam-se a irrelevância para a aplicação do art. 132 do CPM; impactos na redução do prazo prescricional (art. 129 do CPM); a possibilidade de reincidência no caso de deserções sucessivas e viabilidade do ingresso na casa do agente, a qualquer momento, para realização de prisão. Todavia, sendo a deserção crime próprio, a perda da qualidade de militar devido à exclusão de praças sem estabilidade e praças especiais provocará a cessação da prática do crime, o que não se aplica a praças estáveis e oficiais.

PALAVRAS-CHAVES: Deserção. Crime permanente. Crime instantâneo de efeitos permanentes. Art. 132 do CPM. Prazo prescricional. Reincidência. Ingresso em domicílio. Crime próprio. Exclusão do serviço ativo.

ENGLISH

TITLE: Analysis of the legal nature of the crime of desertion and its criminal and procedural consequences.

ABSTRACT: In permanent crimes, the execution of the crime and the offense to the legal interest are prolonged in time by determination of the active subject, and may cease according to his will. According to the majority doctrine and jurisprudence, desertion is a permanent crime, since the absence situation and the damage caused to the regularity of the military institution are prolonged in time, at the will of the agent, who can interrupt the criminal conduct. Thus, art. 132 of the Military Criminal Code does not apply to the subject captured or who presented himself voluntarily, due to the cessation of permanence (art. 125, §2, c, of the MCC). The imposition of immediate drawing up of the Term of Desertion and the declaration of submission of the suspect to arrest (with merely declaratory and not constitutive effects) only serve to certify, in a timely manner, that the consummation of the crime was duly evaluated in the administrative scope, providing legal certainty. The art. 132 of the MCC mitigates the imprescriptibility that would be generated by the situation of permanence. As for the criminal and procedural consequences of the discussion, it can be verified the irrelevance for the application of art. 132 of the CPM; impacts on the reduction of the statute of limitations (art. 129 of the MCC); the possibility of recidivism in the case of successive desertions and the feasibility of entering the agent's home, at any time, to carry out an arrest. However, since desertion demands the military status of the agent, the loss of this status due to the exclusion of enlisted members without stability or officer candidates will cause the cessation of the practice of crime, which does not apply to stable enlisted members and officers.

KEYWORDS: Desertion. Permanent crime. Instantaneous crime of permanent effects. Art. 132 of the MCC. Statute of limitations. Recidivism. Home entry. Porper crimes. Exclusion from active duty.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Crimes instantâneos, crimes instantâneos de efeitos permanentes e crimes permanentes 3. O crime de deserção 4. Discussão a respeito da natureza jurídica do crime de deserção 4.1. Argumentos a favor da natureza de crime permanente 4.2. Argumentos a favor da natureza de crime instantâneo de efeitos permanentes 4.3. Síntese 5. Reflexos penais e processuais penais da natureza jurídica do crime de deserção 5.1. Irrelevância para a aplicação do art. 132 do Código Penal Militar. 5.2. Cálculo da prescrição no caso de agente menor de 21 anos 5.3. Reincidência no caso deserções sucessivas 5.4. Possibilidade de ingresso na casa do agente para realização da prisão 6. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

A deserção é conhecida como o "crime militar por excelência". Tutela a regularidade das instituições militares, garantindo que estas disponham dos recursos humanos necessários ao devido cumprimento de suas missões constitucionais, as quais envolvem a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Uma das diversas polêmicas envolvendo esse delito diz respeito à natureza permanente ou instantânea de efeitos permanentes da infração penal. O questionamento é relevante, devido às consequências penais e processuais penais ensejadas por cada uma das linha de pensamento.

2. CRIMES INSTANTÂNEOS, CRIMES INSTANTÂNEOS DE EFEITOS PERMANENTES E CRIMES PERMANENTES

Dentre as diversas classificações dos crimes, a doutrina contrapõe os crimes instantâneos, os crimes instantâneos de efeitos permanentes e os crimes permanentes.

Rogério Sanches[1] leciona que o crime instantâneo é aquele que se consuma em momento determinado (consumação imediata), sem qualquer prolongação. Não significa que a consumação ocorre rapidamente, mas que, uma vez reunidos seus elementos, esta ocorre peremptoriamente. Ressalta que o conceito de crime instantâneo não se confunde com a obtenção do proveito pelo sujeito ativo. Se o agente rouba um veículo e com ele permanece, isso não torna o crime permanente, já que a consumação ocorreu no momento em que, empregada a violência, a grave ameaça ou outro meio capaz de reduzir a vítima à impossibilidade de resistência, deu-se a subtração.

Acrescentamos que a característica diferenciadora do crime instantâneo seria o fato de o autor do delito não permanecer no exercício do verbo nuclear do tipo penal. No caso do roubo, o ato de subtrair, mediante o emprego de violência, grave ameaça ou outro meio capaz de reduzir a vítima à impossibilidade de resistência, ocorreu no passado.

Segundo Luís Flávio Gomes e Alice Bianchini, os crimes instantâneos de efeitos permanentes são crimes instantâneos (não há continuidade temporal na conduta ofensiva). Porém, seus efeitos são duradouros, à vezes eternos. Cita-se como exemplo o homicídio consumado. Quanto ao efeito permanente, não há nenhuma interferência da conduta do agente[2], pois não está na esfera de decisão deste fazer cessar as consequências do crime. No homicídio, o criminoso não poderia fazer cessar a morte já ocorrida.

Retomando o entendimento de Sanches, tem-se que o crime permanente é aquele em que a execução se protrai no tempo, por determinação do sujeito ativo, e a ofensa ao bem jurídico se dá de maneira constante, podendo cessar de acordo com a vontade do agente[3]. Tal definição, que será de suma importância para este trabalho, é amplamente aceita pela doutrina, a qual adota conceitos substancialmente idênticos. Neste sentido, citamos Bittencourt[4], Mirabete[5], Masson[6], dentre outros.

Em suma, para diferenciar as três categorias, utilizam-se os critérios da continuidade ou não da prática da conduta nuclear, a continuidade ou não da lesão ao bem jurídico e a possibilidade ou não da manutenção da conduta e/ou das consequências do crime pela vontade do agente. No crime instantâneo, a execução não perdura no tempo. No crime instantâneo de efeitos permanentes, a execução não perdura no tempo, mas o agente não tem controle sobre a remoção dos efeitos do delito. Já no crime permanente, a execução se prolonga no tempo, assim como a situação de lesão ao bem jurídico tutelado, e o sujeito ativo detém o controle sobre o prolongamento da execução e da lesão.

Considerando a importância do estudo dos crimes permanentes para o presente trabalho, passamos aos ensinamentos de Damásio de Jesus[7]. O autor aponta que, segundo uma opinião muito difundida, o crime permanente apresenta duas fases. A primeira seria de natureza comissiva, envolvendo a realização do fato descrito pela lei. A segunda fase seria a manutenção do estado danoso ou perigoso e teria caráter omissivo.

Ocorre, porém, que há muitos crimes permanentes que consistem em pura omissão, pelo que não se pode falar em fase inicial comissiva. Ex.: deixar de pôr em liberdade um louco restabelecido. Por outro lado, a continuidade dessa situação pode dar-se através de ação, como, por exemplo, atos de vigilância no sentido de impedir a fuga da vítima, reiteração de ameaças etc[8].

O crime permanente divide-se ainda em "necessariamente permanente" e "eventualmente permanente". No primeiro, a continuidade do estado danoso ou perigoso é essencial à sua configuração (ex: sequestro). No segundo, a persistência da situação antijurídica não é indispensável e, se ela se verifica, não dá lugar a vários crimes, mas a uma só conduta punível. Ex.: usurpação de função pública (art. 328 do Código Penal).

No crime necessariamente permanente, o prolongamento da conduta está contido na norma como elemento do crime. No eventualmente permanente, o crime, tipicamente instantâneo, prolonga a sua consumação, como no exercício abusivo de profissão. O momento consumativo ocorre em dado instante, mas a situação criada pelo agente continua.

3. O CRIME DE DESERÇÃO

A modalidade básica do crime de deserção vem descrita no art. 187 do Código Penal Militar:

Art. 187. Ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos; se oficial, a pena é agravada.

Trata-se de crime recorrente no âmbito da Justiça Militar da União, e sua análise envolve diversas polêmicas. Considerando o objetivo deste trabalho (discutir a natureza permanente ou instantânea de efeitos permanentes do delito, assim como as consequências penais e processuais penais dessa definição), nos furtaremos a comentar exaustivamente o "crime militar por excelência".

Focaremos apenas nos caracteres que se mostram essenciais para a análise proposta.

O crime é de mera conduta ou simples atividade, pois o tipo penal se limita a descrever uma conduta, sem a previsão de qualquer resultado naturalístico. É também um crime a prazo, dado que sua consumação exige o decurso de um determinado período.

A prescrição, na deserção, tem regra especial:

Prescrição no caso de deserção

Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo da prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta.

Predomina que o art. 132 se aplica apenas ao caso do agente que permanece foragido (trânsfuga). Uma vez capturado ou tendo se apresentado voluntariamente, a situação passaria a ser regida pelo regramento geral do Código Penal Militar (arts. 124 a 129).

As demais considerações sobre estes dispositivos serão feitas no tópico seguinte.

4. DISCUSSÃO A RESPEITO DA NATUREZA JURÍDICA DO CRIME DE DESERÇÃO

Permanece viva a discussão a respeito da natureza jurídica do crime de deserção. Na doutrina, prevalece a corrente que sustenta a existência de crime permanente. Nesse sentido, podemos citar Cícero Coimbra[9], Jorge César de Assis[10], Jorge Alberto Romeiro[11], Enio Luiz Rosseto[12] e Guilherme Nucci[13]. Defendendo a configuração de crime instantâneo de efeitos permanentes, Cláudio Amin Miguel e Ione de Souza Cruz[14] e Adriano Alves-Marreiros[15].

Na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal alinha-se à doutrina majoritária[16]. No entanto, a questão ainda não está pacificada no Superior Tribunal Militar, havendo julgados recentes que adotaram a linha do crime instantâneo de efeitos permanentes. Nesse sentido: STM, Apelação nº 7000515-59.2019.7.00.0000, Relator do Acórdão Ministro José Barroso Filho, julgado em 28/05/2020, publicado em 30/06/2020 e STM, Embargos Infingentes e de Nulidade 7000552-86.2019.7.00.0000, Relatora Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, julgado em 03/02/2020, publicado em 17/02/2020.

Todavia, julgados posteriores seguiram a corrente que sustenta a permanência: STM, Recurso em Sentido Estrito nº 7000283-13.2020.7.00.0000, Relator Ministro Luis Carlos Gomes de Mattos, julgado em 03/09/2020, publicado em 03/02/2021; e STM, Habeas Corpus nº 7000403-56.2020.7.00.0000, Relator Odilon Sampaio Benzi, julgado em 03/09/2020, publicado em 15/09/2020.

Ainda que pareça haver um predomínio do entendimento pela existência de crime permanente, a polêmica permanece, haja vista a contundência de argumentos de ambas as correntes e as recentes oscilações no âmbito do Superior Tribunal Militar. Ademais, a alta frequência do crime de deserção entre militares das Forças Armadas e o seu impacto na regularidade das instituições militares mantêm a relevância da questão.

Sendo assim, compilamos os argumentos a favor e contra cada uma das correntes, os quais merecem análise pormenorizada.

4.1. Argumentos a favor da natureza de crime permanente

A seguir, serão indicados e analisados os argumentos que sustentam a corrente pela natureza permanente do crime de deserção. Como alguns dos argumentos, em verdade, consistem na resposta ao argumento invocado para sustentar a natureza de crime instantâneo de efeitos permanentes, estes serão comentados apenas no tópico seguinte, para evitar desnecessária repetição. Sigamos:

A) A prática do crime de deserção envolve uma conduta comissiva de ausentar-se do lugar em que se deve permanecer. Existe uma ação deliberada de não comparecer, que se estende no tempo.

Entendemos que a afirmação é parcialmente verdadeira. A conduta será comissiva na modalidade "ausentar-se", presente quando o militar está na unidade em que serve ou no lugar em que deve permanecer e, deliberadamente, deixa esse lugar, sem licença. Todavia, embora o núcleo do tipo penal se restrinja ao verbo "ausentar-se", é pacífico que o tipo objetivo abrange, além da conduta de sair da unidade em que serve ou do lugar em que deve permanecer, também a conduta de deliberamente não dirigir-se e não chegar àquele local.

Como exemplo, cite-se o caso do militar que, após o fim do serviço, deixa regularmente a organização militar, mas não se apresenta no dia seguinte para assumir o novo turno para o qual estava devidamente escalado. Nesse caso, não há conduta comissiva, e sim uma conduta omissiva de deixar de se apresentar no lugar devido.

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Todavia, cremos que a discussão a respeito da natureza comissiva ou omissiva do delito não guarda maior relevância para o objeto de estudo deste trabalho, haja vista não haver correlação necessária entre o referido caráter da conduta e a natureza permanente ou instantânea do respectivo delito. Outrossim, tanto na hipótese comissiva quanto na omissiva, a conduta se prolonga no tempo, o que nos leva aos argumentos seguintes.

B) A execução do delito se prolonga no tempo, por vontade do agente, o qual pode interromper a conduta típica.

Concordamos integralmente com o argumento. A conduta de "ausentar-se" prolonga-se no tempo e, enquanto o agente não se apresentar na unidade em que serve ou no local em que deve permanecer, persistirá a atualidade da conduta típica. Além disso, a continuidade da prática (que não se confunde com o crime continuado) dependerá integralmente da vontade do agente, o qual poderá interromper a execução do crime ao apresentar-se no local devido.

A invocação da hipótese de que o sujeito pode estar impedido de apresentar-se no local devido, por circunstância alheia à sua vontade, não é suficiente para transformar o delito permanente em delito instantâneo. Se a conduta de ausentar-se não é voluntária, restará ausente o elemento volitivo do dolo, excluindo-se o elemento subjetivo do delito e, assim, a própria tipicidade. O caso será de inexistência de crime caso este ainda não tenha se consumado no momento em que surgiu a circunstância alheia à vontade do agente e impeditiva do seu comparecimento ao local devido ou então de cessação da permanência e fim da prática do delito, na hipótese de a citada circunstância surgir após a consumação do delito e durante o seu estado de permanência.

Nessa toada, este argumento é válido para a caracterização do crime de deserção como permanente.

C) o prejuízo causado ao sujeito passivo (instituição militar) pela ausência do militar se prolonga no tempo.

O argumento é válido e estaria apto a ensejar a caracterização do crime de deserção como permanente.

O art. 142 da Constituição Federal qualifica as Forças Armadas como instituições regulares e permanentes, cabendo-lhes a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

A imposição de regularidade exige que tais instituições disponham de todos os recursos humanos e materiais necessários para sua prontidão ininterrupta. Torna-se evidente, portanto, que a regularidade da instituição militar exige a completa disposição do militar integrante de seus quadros nos limites de suas atribuições legais, é claro , o qual sempre estará desempenhando um determinado papel no esquema organizacional da Força. Nessa toada, a ausência de um dos militares da organização militar tem potencial para impedir a devida implementação do plano de atividades e atribuições delineados pelo Comando, criando transtornos e prejuízo à realização da missão institucional de estatura constitucional, frise-se da instituição militar.

Considerando que a instituição não terá meios de suprir, de imediato, aquela falta dado que a admissão de pessoal na Administração Pública deve obedecer a requisitos e procedimentos específicos , o transtorno causado pela ausência do militar prolongar-se-á no tempo, tornando contínua a lesão ao bem jurídico-penal tutelado, qual seja, a regularidade da instituição militar.

D) o art. 132 do Código Penal Militar não se aplica ao sujeito capturado ou que se apresentou voluntariamente, justamente porque cessou a permanência, incidindo o art. 125, §2º, c, do CPM.

De fato, é o entendimento majoritário. Inclusive, não temos notícia de qualquer polêmica no âmbito do Superior Tribunal Militar sobre esse ponto.

Enquanto o sujeito ativo mantém a condição de trânsfuga (foragido), o regime prescricional será regido pelo art. 132 do CPM. Entretanto, uma vez ocorrida a apresentação voluntária do militar ou a sua captura, a prescrição passará a ser regida pelo regramento geral dos arts. 124 a 129 do CPM, cuja incidência seria deflagrada pelo art. 125, §2º, c, do Código, segundo o qual a prescrição da pretensão punitiva começa a correr, nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência.

4.2. Argumentos a favor da natureza de crime instantâneo de efeitos permanentes

Passemos agora à análise dos argumentos a favor da natureza de crime instantâneo de efeitos permanentes:

A) no caso de praças sem estabilidade e praças especiais, a consumação da deserção, à zero hora do nono dia da contagem, implica a exclusão do militar, de modo que este passaria a ser civil. A deserção é um crime próprio, que exige a qualidade de militar para a sua prática. Logo, após a exclusão administrativa do sujeito, este deixaria de ser militar, não sendo mais possível a continuidade da prática do crime de deserção.

De início, aponta-se que não se pode confundir a classificação dos crimes em "próprios" ou "comuns" com a classificação em "permanentes", "instantâneos" e "instantâneos de efeitos permanentes". São critérios distintos e não necessariamente relacionados.

O argumento se refere à caracterização da deserção como crime próprio, e isso é amplamente aceito. O delito exige qualidade especial do sujeito ativo, qual seja, o status de militar do serviço ativo. Mas isso nada quer dizer a respeito da forma como ocorre a consumação do crime e seus efeitos.

Prossigamos por partes.

Quanto à caracterização do crime como próprio, entendemos que o argumento está correto.

O tipo penal do art. 187 do CPM utiliza o elemento normativo "militar", cuja definição é dada pelo direito administrativo militar. O status de militar se refere a uma qualidade do sujeito atribuída pelo direito administrativo militar e, portanto, sensível à incidência de suas normas.

O art. 456, §4º, do Código de Processo Penal Militar determina a exclusão do serviço ativo da praça não estável ou da praça especial. Em que pese esteja inserido em um corpo normativo precipuamente processual, tem natureza de norma de direito administrativo militar. Norma heterotópica, portanto. O dispositivo é complementado por outros da Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares):

Art. 128 (...)

§ 2º A praça sem estabilidade assegurada será automaticamente excluída após oficialmente declarada desertora.

Art. 94. A exclusão do serviço ativo das Forças Armadas e o conseqüente desligamento da organização a que estiver vinculado o militar decorrem dos seguintes motivos: (...)

IX - deserção; (...)

§ 1º O militar excluído do serviço ativo e desligado da organização a que estiver vinculado passará a integrar a reserva das Forças Armadas, exceto se incidir em qualquer dos itens II, IV, VI, VIII, IX, X e XI deste artigo ou for licenciado, ex officio , a bem da disciplina.

Nota-se que o excluído nos termos do art. 94, IX, do Estatuto dos Militares sequer será incluído na reserva. Ademais, a definição de "militar" é dada pelo art. 3º do Estatuto dos Militares, o qual não contempla estes excluídos. Dessarte, é patente que tal indivíduo passará a ser civil.

No julgamento dos Embargos Infringentes e de Nulidade nº 7000552-86.2019.7.00.000[17], o Ministro Artur Vidigal de Oliveira, defendendo a natureza de crime permanente, asseverou que, mesmo diante da exclusão da praça sem estabilidade, não haveria que se falar propriamente na condição de civil. Afinal, o desertor seria procurado para que, atendidas as exigências, este sujeito cumprisse o restante do tempo de serviço militar inicial a que estaria obrigado por força da Constituição Federal e da Lei do Serviço Militar. A exclusão representaria apenas uma etapa burocrática administrativa para evitar que o militar continue recebendo o soldo, bem como os benefícios inerentes à atividade e ao serviço. Ressalte-se que o Ministro, a todo tempo se refere a este excluído como "militar", como se mantivesse essa qualidade durante todo o período entre a exclusão e a reinclusão.

Embora a finalidade de interromper o pagamento do soldo e a concessão de benefícios inerentes ao serviço seja plenamente justificável na hipótese, normas jurídicas são cogentes e devem ser obedecidas. Embora a lei devesse apenas determinar a interrupção dos pagamentos e benefícios, não é isso que ela prescreve. Como visto acima, determina-se a exclusão do serviço ativo, sem nem mesmo haver inclusão na reserva. Considerar que o excluído é militar significa simplesmente desconsiderar a lei. E, como pretendemos realizar aqui uma análise puramente dogmática, ignorar uma prescrição legal não é uma opção.

Finda a análise quanto à caracterização do crime de deserção como crime próprio, retomamos o comentário sobre a impossibilidade de se confundir a classificação dos crimes em "próprios" ou "comuns" com a classificação em "permanentes", "instantâneos" e "instantâneos de efeitos permanentes".

Pois bem. O fato de o excluído perder a qualidade de militar nada tem que ver, em tese, com os critérios diferenciadores do crime permanente e do crime instantâneo de efeitos permanentes.

Todavia, no caso específico da deserção de praças especiais e de praças não estáveis, há uma peculiaridade. É que a consumação do crime ensejará a exclusão do militar, que passará a ser civil e não mais poderá praticar a deserção por ser crime próprio. Esse caso, embora a conduta de ausentar-se se prolongue no tempo, e a lesão à instituição militar perdure durante toda a situação de ausência, o requisito de cessação da conduta delitiva pela vontade do agente não estará atendido, dado que a conduta típica terá cessado imediatamente após a exclusão do militar, com a perda da qualidade exigida pelo tipo penal.

Em suma, apesar de a estrutura do crime de deserção ser apta a caracterizá-lo como crime permanente, quando o sujeito ativo for praça não estável ou praça especial, esta permanência durará apenas até a exclusão do serviço ativo. A exclusão fará cessar imediatamente a permanência, devido à perda da qualidade de militar, que é elementar do tipo penal de deserção.

Finda essa análise, ressaltamos que a particularidade da exclusão do serviço ativo apenas se aplica a praças especiais e praças não estáveis. Em caso de deserção praticada por praça estável ou oficial, não haverá exclusão, e sim mera agregação. Assim, o argumento da perda da qualidade de "militar" não se aplicará, desfazendo-se o óbice à persistência do estado de permanência do delito[18].

B) O art. 243 prevê que qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou quem seja encontrado em flagrante. Há uma distinção entre o desertor, o insubmisso e a flagrância. Se a deserção fosse crime permanente, bastaria mencionar a flagrância, pois esta já abarcaria o caso do desertor.

Partindo-se da premissa de que a lei não contém palavras inúteis, o argumento seria válido. Contudo, a interpretação literal, por vezes, pode não ser a melhor opção para o intérprete, porque, não raro, o legislador se mostra displicente quanto às regras da língua portuguesa ou quanto ao bom uso dos termos jurídicos. Por exemplo, a lei se refere ao "insubmisso" e ao "desertor". Ora, insubmisso é quem pratica o crime de insubmissão, e desertor é aquele que pratica o crime de deserção. Tais termos referem-se, portanto, a criminosos.

A Constituição Federal determina que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII). Assim, o "insubmisso" e o "desertor" seriam apenas aqueles já condenados, com trânsito em julgado, por insubmissão e deserção, respectivamente. Sendo assim, os casos do "desertor" e do "insubmisso", no art. 243 do CPPM, não estariam inseridos no contexto da flagrância.

Não estamos aqui a defender a impossibilidade de prisão em flagrante do indivíduo apontado como autor dos crimes de deserção ou insubmissão. Trata-se apenas de uma demonstração de como o argumento acima pode ser refutado. Dessarte, embora o argumento tenha alguma força persuasiva, entendemos que não tem solidez suficiente para decidir a questão em estudo.

C) o tipo penal usa o verbo ausentar-se, e não a expressão permanecer ausente.

O argumento não se sustenta. Crimes que utilizam os verbos sequestrar, manter, guardar também são pacificamente categorizados como crimes permanentes, mesmo que o tipo objetivo desses crimes não utilize o verbo permanecer.

D) O art. 451 do CPPM impõe que o Termo de Deserção seja lavrado imediatamente após a consumação do crime. Se a consumação fosse protraída no tempo, a autoridade não estaria obrigada a lavrar o termo de plano, podendo fazê-lo após cessada a permanência, com a captura ou apresentação voluntária.

Entendemos que o argumento não é convincente. A tutela da regularidade da instituição militar, imposta por norma constitucional, exige a atuação imediata e tempestiva de todas as autoridades, militares, ministeriais e judiciárias, para apurar o ocorrido e, eventualmente, punir o faltoso, concretizando as finalidades preventivas (geral e especial, positiva e negativa) da pena e restaurando a norma jurídica violada.

Logo, é perfeitamente compreensível que a lei imponha o imediato início na persecução penal, ao mínimo indício de ocorrência de crime.

E) O art. 452 do CPPM afirma que o Termo de Deserção tem o caráter de instrução provisória e destina-se a fornecer os elementos necessários à propositura da ação penal, sujeitando, desde logo, o desertor à prisão. Nessa toada, se a deserção fosse crime permanente, a lei não precisaria afirmar expressamente que o Termo de Deserção permitirá a prisão do desertor, pois o estado de flagrância já permitiria a prisão.

Entendemos que o argumento não se sustenta.

O Termo de Deserção serve para atestar que a consumação da deserção foi devidamente avaliada no âmbito administrativo, estando apta a deflagrar seus efeitos característicos por exemplo, a exclusão do serviço ativo para praças especiais e não estáveis e a agregação para praças estáveis e oficiais.

No âmbito processual penal, a lavratura do Termo serve como uma declaração oficial de natureza administrativa, mas oficial de que houve a consumação do delito e de que resta configurado o estado de flagrância, demandando a atuação da polícia judiciária militar. Logo, a declaração de submissão do suspeito à prisão tem cunho meramente declaratório, e não constitutivo.

Em função dos diversos efeitos da consumação da deserção, de natureza administrativa, penal e processual penal, a devida apuração no seio da organização militar, atestada pelo Termo de Deserção, confere o mínimo de segurança jurídica aos atos que se seguirão, os quais podem ter elevada carga restritiva a direitos fundamentais, a exemplo da prisão.

F) Se o crime fosse permanente, o art. 132 do Código Penal Militar seria desnecessário, pois o prazo prescricional sequer teria começado a correr.

O argumento não procede. O art. 132 do CPM é necessário justamente devido à natureza permanente do crime. Explicamos.

No crime permanente, a prescrição não correrá até a cessação da permanência (art. 125, §2º, c, do CPM). Dessarte, se o trânsfuga permanecesse foragido por décadas, a punibilidade do delito permaneceria incólume, indefinidamente. O art. 132 do CPM é uma garantia do réu, por mitigar essa indefinição, sendo favorável ao acusado.

É o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

"1. A norma específica do Código Penal Militar não estabelece imprescritibilidade para o crime de deserção; ao revés, dada a permanência da infração, enquanto não houver a apresentação ou a captura do desertor, não há se falar no início da fluência do lapso prescricional. Contudo, diante das especificidades das atividades na caserna, exatamente porque, após determinada idade, não mais há aproveitamento do desertor para a vida militar, é que o CPM estabelece regra diferenciada para o cômputo da prescrição. 2. Ordem denegada."

(STF, Primeira Turma, HC 112.005, Relator Ministro Dias Toffoli, julgado em 10/02/2015, publicado em 10/04/2015)

F) O art. 132 do CPM utiliza a expressão "decorrido o prazo de prescrição". Se o crime fosse permanente, o prazo sequer teria começado a correr, sendo impossível que, durante o período de ausência, tivesse "decorrido o prazo de prescrição".

O argumento tem poder persuasivo. De fato, a literalidade do art. 132 do CPM parece indicar que o prazo de prescrição poderia se iniciar e inclusive chegar a seu termo final ainda durante o período de ausência.

O máximo que podemos afirmar, sem descurar da boa técnica, é que o legislador teria sido impreciso nos seus termos, de sorte que a expressão "decorrido o prazo de prescrição", em verdade, significaria "decorrido o lapso temporal que, em tese, resultaria na prescrição de um crime com a quantidade de pena cominada ao crime de deserção". Esclarecemos: o crime de deserção praticado por praça tem pena máxima cominada de dois anos. Segundo o art. 125, VI, do CPM, um crime com a pena máxima de dois anos prescreveria em quatro anos. Logo, ainda que "decorrido o prazo de quatro anos" (ou lapso maior, a depender do caso concreto), não haverá a consumação da prescrição.

G) O art. 189, I, do CPM estabelece uma causa de diminuição de pena para o desertor que se apresenta voluntariamente "após oito dias da consumação", indicando que a consumação ocorreu em um momento específico, característica do crime instantâneo.

O argumento não tem solidez. Como já exposto em tópico anterior, o crime permanente pode ser "necessariamente permanente" ou "eventualmente permanente". No primeiro, a continuidade do estado danoso ou perigoso é essencial à sua configuração (ex: sequestro). No segundo, a persistência da situação antijurídica não é indispensável e, se ela se verifica, não dá lugar a vários crimes, mas a uma só conduta punível. Ex.: usurpação de função pública (art. 328 do Código Penal).

Entendemos que a deserção mescla ambas as classificações. A continuidade do estado danoso, pelo prazo prescrito no art. 187 (oito dias), é necessária para a consumação da deserção, o que indicaria se tratar de crime "necessariamente permanente". Contudo, a persistência da situação antijurídica não é indispensável afinal, à zero hora do nono dia após o início da contagem, haverá a consumação, ainda que o agente seja capturado minutos depois. E, se essa persistência ocorrer, não haverá pluralidade de crimes, mas apenas uma conduta punível, o que atende à classificação do crime "eventualmente permanente".

Enfim, o fato é que, nos termos do art. 30, I, do CPM, diz-se o crime consumado quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Isso também se aplica à deserção. Quando atentidas todas as elementares do crime o que ocorrerá, sempre, em um momento específico , ele estará consumado.

A questão é que a consumação do crime, a partir desse momento específico, permanecerá ocorrendo. Assim, não é incorreto afirmar que a deserção se consuma em um determinado momento, mas esta afirmação se referirá ao momento em que são reunidos todos os elementos da definição legal do delito.

Ante o exposto, o art. 189, I, do CPM se refere ao momento específico em que a deserção se consuma e inicia seu estado de permanência, não havendo incompatibilidade com o caráter permanente do delito.

4.3. Síntese

Analisados os argumentos acima, chegamos ao momento de fazer uma síntese de todas as considerações.

Entendemos que a estrutura do tipo objetivo da deserção se adequa com perfeição ao conceito doutrinário de crime permanente, pois o agente deliberadamente prolonga a execução do delito e a situação de lesão ao bem jurídico tutelado. A execução e seus efeitos podem cessar por vontade do agente.

Não obstante, a exclusão de praças não estáveis e especiais atinge diretamente a qualidade de militar, criando sério óbice à persistência do estado de permanência do delito, haja vista ser a deserção um crime próprio, que exige a qualidade de militar do sujeito ativo.

Ressaltamos que não se pode confundir os dois planos de análise: crime próprio ou crime comum, e crime permanente ou instantâneo (de efeitos permanentes ou não).

Por conseguinte, o fato de o crime de deserção ser próprio não impede que o crime seja permanente, mesmo no caso de praças especiais ou não estáveis. Contudo, essa permanência apenas duraria até o momento da exclusão, que é posterior à consumação do delito.

No que toca a praças estáveis e oficiais, este óbice não subsiste, pois estes militares não seriam excluídos do serviço ativo e manteriam a qualidade de militar.

É verdade que alguns dispositivos no CPM parecem indicar que o prazo prescricional da deserção se inicia no momento da sua consumação (art. 132 do CPM) e que a deserção seria um caso distinto da flagrância (art. 243 do CPPM). Todavia, diante dos diversos exemplos de má redação do legislador de 1969 (como nomear o suspeito do crime de deserção de "desertor", ou mesmo a total imprecisão do termo "agravante" na Parte Geral do CPM, que por vezes significa realmente uma agravante e, em outras, significa uma causa de aumento de pena), somado à inexistência de declaração legal expressa de que a deserção é um crime instantâneo, preferimos, por interpretação sistemática, considerá-lo como crime permanente.

5. REFLEXOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS DA NATUREZA JURÍDICA DO CRIME DE DESERÇÃO

Vencidas a exposição e a análise dos argumentos a favor de cada uma das correntes, resta averiguar quais as consequências jurídicas da adoção de um ou de outra.

5.1. Irrelevância para a aplicação do art. 132 do Código Penal Militar

Embora a doutrina, ao comentar a polêmica da natureza permanente ou instantânea de efeitos permanentes do crime de deserção, costume mencionar o tema da prescrição, tem-se que a opção por qualquer das correntes será, a priori, irrelevante para a definição do momento consumativo da prescrição, enquanto disciplinada pelo art. 132 do CPM.

A grande diferença entre as correntes seria o termo inicial da prescrição da pretensão punitiva, regida pelo art. 125, §2º, do CPM. Se o crime for instantâneo de efeitos permanentes, o prazo prescricional começará a correr a partir do dia em que o crime se consumou (alínea a). Se a natureza for permanente, o termo inicial seria o dia em que cessou a permanência (alínea c).

A importância da definição do termo inicial é a definição do momento consumativo da prescrição, haja vista que os incisos do caput do art. 125 do CPM fixam diferentes lapsos temporais conforme a quantidade de pena cominada aos crimes.

Todavia, o art. 132 define, por si só, o momento da extinção da punibilidade pela prescrição, qual seja, o momento em que o sujeito ativo atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta, pouco importando que o prazo prescrito pelos incisos do art. 125 do CPM já tenha se exaurido (no caso de crime instantâneo) ou que sequer tenha se iniciado (no caso de crime permanente)[19].

5.2. Cálculo da prescrição no caso de agente menor de 21 anos

A existência ou não de crime permanente irá influenciar sobremaneira o cálculo do prazo prescricional no caso em que o agente pratica a deserção com menos de 21 anos e permanece foragido após completar essa idade.

Nos termos do art. 129 do CPM, os prazos da prescrição são reduzidos de metade quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de vinte e um anos ou maior de setenta.

A respeito do crime permanente, foi visto que a execução do delito se prolonga no tempo. Se o delito tiver essa natureza, o agente terá praticado o delito já com idade superior a 21 anos, perdendo o direito à redução do prazo prescricional.

Embora o crime também tenha sido praticado com idade inferior a 21 anos, aplica-se o raciocínio cristalizado na súmula nº 711 do STF, segundo a qual a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência. Assim, a incidência da norma mais gravosa (no caso, o regime geral de contagem do prazo, sem a redução do art. 129 do CPM) incidirá sobre toda a conduta, a qual, inclusive, consiste em um único crime. Nesse sentido: STM, Recurso em Sentido Estrito nº 7000283-13.2020.7.00.0000, Relator Ministro Luís Carlos Gomes Mattos, julgado em 03/09/2020, publicado em 02/02/2021.

Não obstante, em se tratando de praça especial ou praça não estável, há o óbice já mencionado de que a exclusão do serviço ativo provocaria imediatamente a cessação da permanência. Sendo assim, se o agente permanecer foragido após completar 21 anos, mas houver sido excluído ainda com idade inferior, tecnicamente, ainda teria direito à redução do prazo prescricional.

Se o crime for instantâneo de efeitos permanentes, a consumação teria ocorrido especificamente e apenas ao ser superado o prazo de 8 dias exigido pelo art. 187 do CPM. Assim, o fato de, após este momento, o agente permanecer foragido ao completar 21 anos seria irrelevante para a contagem do prazo prescricional, persistindo o direito à regra do art. 129 do CPM.

5.3. Reincidência no caso deserções sucessivas

Um exemplo poderá ilustrar bem esta consequência. Imagine-se que o sujeito desertou no dia 1. Foi capturado, considerado apto para o serviço militar e reincluído no dia 30, tendo sido regularmente iniciada a ação penal militar. Contudo, no dia 50, o agente pratica nova deserção. O processo referente à primeira deserção segue normalmente, conforme entendimento do Superior Tribunal Militar acerca da inexistência de condição de prosseguibilidade no processo especial de deserção de praças. Há condenação, e o trânsito em julgado ocorre no dia 70. No dia 90, o agente é capturado novamente. É considerado apto, reincluído e processado pela segunda deserção.

Sendo o crime de deserção de natureza permanente, no julgamento da segunda deserção, o agente será considerado reincidente. Afinal, entre os dias 70 e 90, terá praticado a segunda deserção após o trânsito em julgado da condenação pela primeira deserção.

Todavia, novamente lembramos que, no caso de praça especial ou praça não estável, a exclusão do serviço ativo provocaria imediatamente a cessação da permanência. Logo, se a exclusão ocorresse entre os dias 50 e 70, o agente não mais estaria praticando deserção após ter sido condenado com trânsito em julgado, obstando o reconhecimento da reincidência.

Considerando-se a deserção como delito instantâneo de efeitos permanentes, não haveria reincidência, pois a prática da segunda deserção teria ocorrido apenas no dia 50, quando o agente ainda era primário, dado que o trânsito em julgado da condenação pela primeira deserção apenas ocorreria 20 dias depois, no dia 70. Nesse sentido: STM, Apelação nº 7000515-59.2019.7.00.0000, Relator do Acórdão Ministro José Barroso Filho, julgado em 28/05/2020, publicado em 30/06/2020.

5.4. Possibilidade de ingresso na casa do agente para realização da prisão

No crime permanente, tendo em conta que a execução prolonga-se no tempo, o agente estará em situação de flagrância enquanto não cessar a permanência[20]. Logo, será possível a sua prisão em flagrante, independentemente de prévia autorização judicial, nos termos do art. 5º, LXI, da Constituição.

Ademais, a CF/88 estabelece que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial (art. 5º, XI). Assim, a norma constitucional é clara ao flexibilizar a inviolabilidade do domicílio no caso de flagrante delito, sendo desnecessária a autorização judicial para que a autoridade policial ingresse na casa do agente e realize a prisão em flagrante, mesmo à noite.

Mais uma vez, lembramos que, em se tratando de praça especial ou praça não estável, a exclusão do serviço ativo provocaria imediatamente a cessação da permanência. Dessarte, após a exclusão, cessaria também o estado de flagrância, desautorizando o ingresso, a qualquer tempo e sem autorização judicial, na casa do suspeito.

Por outro lado, se o crime de deserção for considerado instantâneo de efeitos permanentes, não haverá a situação permanente de flagrância. O ingresso no domicílio do agente dependerá de prévia autorização judicial e apenas podendo ser realizado durante o dia.

6. CONCLUSÃO

A partir de uma análise estritamente dogmática, entendemos que o crime de deserção deve ser considerado um delito de natureza permanente.

Em tese, esta conclusão possibilitaria a perda do direito à redução do prazo prescricional (art. 129 do CPM), no caso em que o agente inicia a prática da deserção com menos de 21 anos e continua foragido após esta idade. Ademais, seria possível a configuração de reincidência no caso de deserções sucessivas, e estaria autorizado o ingresso no domicílio do agente, a qualquer momento e sem autorização judicial, devido ao estado de flagrância.

Todavia, pontuamos que, se o agente for praça especial ou praça não estável, esses efeitos podem ser obstados pela cessação da permanência provocada pela perda da qualidade de militar, resultante da exclusão do serviço ativo prevista no art. 456, §4º, do Código de Processo Penal Militar.

REFERÊNCIAS

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ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar - Parte Geral: Artigos 1º a 135 - Parte Especial: Artigos 136 a 410. 11ª ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2022.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2010.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1° ao 120). 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2020.

FRANCO, Alberto Silva. Crime permanente, um conceito errante à procura de seu significado. CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-04/silva-franco-crime-permanente-conceito-procura-significado#_ftn2. Acesso em: 11/07/2022.

JESUS, Damásio de. Direito penal, volume 1: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2020.

MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) - v. 1. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense;

São Paulo: Método, 2020.

MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de Direito Penal Parte Geral. 27.ed. São Paulo: Atlas, 2011.

GOMES, Luís Flávio; Bianchini, Alice. Curso de direito penal: parte geral (arts. 1º a 120). Salvador: Juspodivm, 2015.

MIGUEL, Cláudio Amin; CRUZ, Ione de Souza. Elementos de direito penal militar: parte especial. Rio de Janeiro: Forente; São Paulo: Método, 2013.

NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. ISBN Digital: 9788502217263. E-book.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. 4. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de direito penal militar: parte geral. São Paulo, Saraiva, 1994.

ROSSETO, Enio Luiz. Código Penal Militar comentado. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

Sobre o autor
Leonardo Jucá Pires de Sá

Analista do Ministério Público da União.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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