4. STATUS NORMATIVO DO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ
Embora a aplicação do princípio da identidade física do juiz apresente óbvia colaboração para o incremento da qualidade da prestação jurisdicional, a sua aplicação desmedida geraria inconvenientes de igual estatura.
Nessa toada, resta evidente que cabe à legislação ordinária delinear os contornos da aplicação do princípio, ponderando as vantagens e desvantagens em cada cenário normativo.
Malgrado a violação ao princípio da identidade física do juiz possa ensejar desrepeito ao princípio do juiz natural - como bem evidenciado na decisão do AgRg nos EDcl nos EDcl no REsp n. 1.979.465/PR, pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, acima referida -, não há que se confundir os dois princípios.
O princípio do juiz natural tem status constitucional, enquanto o princípio da identidade física do juiz tem hierarquia tão somente legal, cabendo ao legislador ordinário sopesar os valores em colisão e definir o grau de concretização deste princípio em cada hipótese normativa.
Não fosse assim, ter-se-ia que reconhecer a inconstitucionalidade da redação originária do Código de Processo Penal comum, que vigeu por largo período sem qualquer menção expressa ao princípio, o que só veio a ocorrer com a edição da Lei n. 11.719/2008.
Ademais, o CPC/2015 também deveria ser reputado inconstitucional, por suprimir a previsão genérica do princípio.
Mesmo sendo pacífica a obrigatoriedade de aplicação do princípio no processo penal comum, a partir de 2008, não é menos certo que sua aplicação não é absoluta, sendo lícitas as diversas exceções espraiadas pelo ordenamento jurídico, inclusive aquelas previstas no já revogado art. 132 do CPC/1973.
Ante o exposto, conclui-se que o princípio da identidade física do juiz consubstancia norma de observância desejável, mas condicionada à devida implementação legal. Não se confunde, portanto, com o princípio do juiz natural.
Firmadas tais premissas, passa-se à análise da aplicabilidade do princípio ao processo penal militar.
5. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL MILITAR
O Código de Processo Penal Militar, diversamente do Código de Processo Penal comum pós-2008, não traz qualquer previsão expressa acerca da obrigatoriedade do proferimento da sentença pelo julgador que conduziu a instrução. Tampouco o faz a Lei Orgânica da Justiça Militar da União (Lei nº 8.457/1992).
Como já mencionado, o princípio da identidade física do juiz tem status legal, e não constitucional, devendo ser observado nos estritos limites da lei.
Devido à incidência constitucional do princípio do juiz natural ao processo penal militar, é certo que a competência para processar e julgar crimes militares deve ser definida por critérios objetivos, fixados em regras abstratas, impessoais e, em regra, estabelecidas previamente em relação aos fatos a serem analisados - com a exceção já comentada da alteração superveniente de critério de competência absoluta, como ocorreu com a Lei nº 13/491/2017.
No entanto, estas regras abstratas e impessoais não estão submetidas à observância incondicional do princípio da identidade física do juiz, cabendo ao legislador processual penal militar definir os contornos de sua aplicação, tendo em vista as particularidades do direito militar e do regular funcionamento das instituições militares.
Devido à ausência de previsão expressa, Célio Lobão chegava a afirmar categoricamente que a identidade física do Juiz não prevalece no processo penal militar[17].
Também é possível encontrar afirmações generalizantes a respeito da inaplicabilidade na jurisprudência do Superior Tribunal Militar: "Não vigora, na Justiça Militar da União, o princípio da identidade física do juiz" (STM, Apelação n.º 0000016-38.2013.7.12.0012, Relator Ministro Luis Carlos Gomes Mattos, julgado em 30/06/2015, publicado em de 20/08/2015).
Em que pese a ausência de expressa previsão legal no CPPM e na LOJMU, discordamos da generalização negativa acerca da aplicação do princípio.
Tendo em vista a estrita relação entre a oralidade, o contato direto do julgador com a prova e o sistema do livre convencimento motivado, preferimos entender que o princípio da identidade física do juiz, embora condicionado à implementação por lei, merece certa deferência do aplicador do direito quando da interpretação da lei.
A dimensão substancial do devido processo legal preconiza a busca por um processo justo, que atenda à razoabilidade e à proporcionalidade. Por conseguinte, deve ser privilegiada a interpretação que busque concretizar o princípio da identidade física do juiz, pelos seus positivos impactos na qualidade da decisão judicial.
Não se está a contradizer tudo que já foi afirmado nesse trabalho. O princípio da identidade física continua tendo status legal e condicionado à lei. Todavia, onde a interpretação da lei permitir, respeitando-se a separação de funções entre o legislador e o aplicador do direito (art. 2º da CF), é desejável que o princípio seja atendido.
Dessarte, quando não houver previsão expressa em sentido contrário no CPPM, e quando não houver prejuízo à indole do processo penal militar, será possível invocar a aplicação subsidiária do art. 399, §2º, do CPP, nos termos do art. 3º, a, do CPPM:
Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:
a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar.
Tal solução concilia a benéfica aplicação do princípio e a especialidade do direito militar.
5.1. Conselhos Permanentes de Justiça
A LOJMU, em seu art. 24, prevê que o Conselho Permanente de Justiça atuará por três meses consecutivos, coincidindo com os trimestres do ano civil, podendo tal período de atuação ser prorrogado nos casos em lei.
A única hipótese legal de prorrogação temporal da jurisdição do CPJ encontra-se no art. 436, parágrafo único, do CPPM:
Interrupção da sessão na fase pública
Art. 436. A sessão de julgamento será permanente. Poderá, porém, ser interrompida na fase pública por tempo razoável, para descanso ou alimentação dos juízes, auxiliares da Justiça e partes. Na fase secreta não se interromperá por motivo estranho ao processo, salvo moléstia de algum dos juízes, caso em que será transferida para dia designado na ocasião.
Conselho Permanente. Prorrogação de jurisdição
Parágrafo único. Prorrogar-se á a jurisdição do Conselho Permanente de Justiça, se o nôvo dia designado estiver incluído no trimestre seguinte àquele em que findar a sua jurisdição, fazendo-se constar o fato de ata.
Frisa-se que a referência à "fase secreta" deve ser interpretada como a fase de deliberação ou votação, que não mais pode ser secreta, à luz do art. 93, IX, da Constituição.
Ante a expressa previsão legal, tem-se que a aplicação do princípio da identidade física do juiz apresenta uma exceção peculiar no processo penal militar, qual seja, o término do trimestre de atuação do CPJ, salvo a hipótese do art. 436, p. ún., do CPPM.
Não se trata de afastar categoricamente o princípio da identidade física do juiz do processo penal militar, mas sim de conhecer os seus contornos específicos, delineados após a devida ponderação legal.
O limite temporal de atuação dos juízes militares é constitucionalmente amparado pelo art. 142 da Constituição, que descreve as Forças Armadas como "instituições nacionais permanentes e regulares". Consequentemente, tais instituições deverão dispor dos recursos humanos e materiais aptos a possibilitar sua prontidão ininterrupta, sob pena de violação do preceito constitucional.
Sendo assim, a disponibilização de oficiais militares para atuarem como juízes militares afeta os recursos humanos das instituições militares, provocando transtornos à operacionalidade das Forças. Por conseguinte, mostra-se proporcional a limitação temporal de sua atuação nos Conselhos Permanentes de Justiça.
De tais considerações, depreende-se que o Conselho Permanente receberá o processo no estado em que se encontrar, sendo possível que o receba já para julgamento, sem que os novos juízes militares tenham participado da instrução.
Apesar de tal dinâmica gerar algum prejuízo à oralidade, ao contato direto do julgador com a prova e ao sistema do livre convencimento motivado, este prejuízo é compensado pela proteção da regularidade das instituições militares, atendendo-se ao comando da Carta Magna.
Isto posto, conquanto o STM afirme, em diversos julgados, que o princípio da identidade física do juiz não se aplica aos Conselhos Permanentes de Justiça, entendemos que é inadequada tal generalização, pois a flexibilização do princípio apenas será admitida nas hipóteses legais, privilegiando-se, tanto quanto possível, a sua concretização.
Não será lícita, portanto, a decisão do Comandante Militar de substituir, sem amparo legal, determinado juiz militar atuante no Conselho.
A LOJMU prevê ainda outras hipóteses de substituição de juízes militares, em seu artigo 31:
Art. 31. Os juízes militares são substituídos em suas licenças, faltas e impedimentos, bem como nos afastamentos de sede por movimentação que decorram de requisito de carreira, ou por outro motivo justificado e reconhecido pelo juízo como de relevante interesse para a administração militar. (Redação dada pela Lei nº 13.774, de 2018)
Já o art. 21, parágrafo único, da LOJMU, prevê que será sorteado para o CPJ um juiz militar suplente, que substituirá o oficial ausente.
Considerando que tais regras são abstratas, impessoais e utilizam critérios objetivos para a definição do órgão julgador, não há que se cogitar de violação ao princípio constitucional do juiz natural.
Em clara tentativa de concretização da oralidade e do contato direto com a prova, o art. 390, 5º, do CPPM prevê, a contrario sensu, que o interrogatório do acusado, a acareação e a inquirição de testemunhas deverão ser realizadas na sede da Auditoria, perante o Conselho de Justiça, e não somente perante o juiz togado:
Art. 390 (...)
§ 5º Salvo o interrogatório do acusado, a acareação nos têrmos do art. 365 e a inquirição de testemunhas, na sede da Auditoria, todos os demais atos da instrução criminal poderão ser procedidos perante o auditor, com ciência do advogado, ou curador, do acusado e do representante do Ministério Público.
Especificamente em relação ao magistrado civil integrante do CPJ, nos alinhamos ao entendimento de Cícero Coimbra, que sustenta ser possível a aplicação do princípio da identidade física do juiz:
"Nesse contexto, há apenas uma solução, qual seja, sustentar que o princípio da identidadefísica do juiz, em nome de uma isonomia com o jurisdicionado da Justiça Comum, como acima defendemos (supra, 1.3), deve ser aplicado nos Conselhos Permanentes de Justiça somente em relação ao juiz de direito do juízo militar ou ao juiz-auditor"[18].
De fato, não há previsão legal, ou mesmo fundamento material, para se permitir a livre substituição do magistrado civil, o que poderia ensejar a escolha do julgador para o processo e, assim, lesar o princípio do juiz natural.
Acrescentamos, contudo, que devem ser admitidas as hipóteses de flexibilização previstas no art. 132 do CPC/73, ainda que já revogado, nos exatos termos já consagrados pela jurisprudência relativa ao processo penal comum. Não obstante as particularidades do direito militar, não se observa, neste particular, qualquer motivo para a diferenciação entre os sistemas militar e comum. Tampouco se observa lesão à índole do processo penal militar.
Ante o exposto, se o art. 399, §2º, do CPP não tem aplicação absoluta na seara processual penal comum, sua aplicação subsidiária ao processo penal militar também não o terá.
5.2. Conselhos Especiais de Justiça
Aplicando as ideias defendidas neste trabalho, entendemos que, assim como no Conselho Permanente de Justiça, a interpretação das normas referentes ao Conselho Especial deve privilegiar a aplicação do princípio da identidade física do juiz.
Também é aplicável ao Conselho Especial o art. 31 da LOJMU, comentado no tópico anterior.
Especificamente sobre o CEJ, o art. 23, §4º, da LOJMU determina que, no caso de impedimento de algum dos juízes militares, será sorteado outro para substituí-lo, não havendo previamente o sorteio de um juiz militar suplente.
Fora dessas hipóteses legais, tem-se que a substituição de juízes militares diminuirá indevidamente a incidência do princípio da identidade física do juiz, violando o art. 399, §2º, do PP (este aplicável devido ao art. 3º, a, do CPPM). Será possível ainda a ofensa ao princípio do juiz natural, caso a substituição enseje a possibilidade de escolha do julgador.
Ressalte-se que o art. 390, §5º, do CPPM, que privilegia o contato imediato do julgador com a prova, igualmente se aplica ao Conselho Especial de Justiça.
Para Cícero Coimbra, as regras atinentes ao Conselho Especial de Justiça parecem atender ao princípio da identidade física do juiz:
"Considerando que o Conselho Especial de Justiça, por normas específicas, é composto por cinco integrantes, a saber, o juiz de direito do juízo militar (Justiças Militares dos Estados ou do Distrito Federal) ou o juiz-auditor (Justiça Militar da União) e outros quatro oficiais sorteados que acompanharão o processo, em regra (exceção: passagem para a reserva, morte etc. dos juizes militares), até seu termo, parece também respeitado o princípio da identidade física do juiz.[19]"
O autor inclusive menciona precedente do STM em que se afirmou a aplicabilidade do princípio: Excetuando os juízes militares dos conselhos especiais da justiça, não prepondera na Justiça Militar da União o princípio da identidade física do juiz (STM, Habeas Corpus nº 2009.01.034634-1, Relator Ministro José Américo dos Santos, julgado em 05/05/2009, publicado em 29/05/2009).
Quanto ao magistrado civil integrante do CEJ, reiteram-se as observações já feitas quando da análise dos Conselhos Permanentes.
5.3. Juiz Federal da Justiça Militar e Juiz Federal Substituto da Justiça Militar
Considerando a inexistência de norma expressa no CPPM e na LOJMU que limitem a incidência do princípio da identidade física do juiz ao juízos monocrático, instaurado na Justiça Militar da União pela Lei n. 13.774/18, entendemos perfeitamente possível a aplicação subsidiária do art. 399, §2º, do CPP, com as limitações já consagradas na seara do processo penal comum, conforme exposto nos itens anteriores.
6. CONCLUSÃO
A partir da análise da legislação processual civil e penal comum, assim como da jurisprudência dos tribunais superiores, constata-se o princípio da identidade física do juiz é norma de observância desejável, mas não imprescindível.
Trata-se de princípio que não se insere necessariamente no âmbito do princípio do juiz natural, embora haja pontos de contato entre ambos. Enquanto o princípio do juiz natural tem estatura constitucional, o princípio da identidade física do juiz tem status meramente legal, devendo ser observado conforme sua implementação por lei, a qual deverá soperar as vantagens e desvantagens de sua concretização.
Não obstante, a interpretação das normas processuais deve sempre privilegiar a aplicabilidade deste princípio, devido à sua serventia para o incremento da qualidade da prestação jurisidicional.
Assim sendo, deve-se rejeitar afirmações categóricas de inaplicabilidade do princípio no direito processual penal militar, haja vista a possibilidade de aplicação subsidiária do art. 399, §2º, do CPP, nos termos do art. 3º, a, do CPPM.
Ante o exposto, não há qualquer irregularidade com as previsões legais do DPPM que não privilegiam o princípio, pois estas apenas realizam a devida ponderação entre as vantagens do contato direto do juiz sentenciante com a prova e outros valores constitucionais - a exemplo da regularidade das instituições militares.
REFERÊNCIAS
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