Direito de defesa: seu contorno constitucional e sua hipertrofia limitadora de uma tutela célere, efetiva e adequada

Resumo:


  • A Constituição Federal de 1988 garante o acesso à justiça como um direito fundamental no Brasil.

  • O direito de defesa é amplamente assegurado na CF/88, incluindo o contraditório e a assistência de advogado.

  • A hipertrofia do direito de defesa, aliada à opacidade das normas, pode prejudicar a celeridade na tutela jurisdicional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

OS CONTORNOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO DE DEFESA

A Constituição Federal de 1988 teve grande repercussão no que diz respeito à demanda do judiciário (ENFAM, 2016), pois a Carta Magna ampliou grandemente o acesso à justiça no país[1].Desta maneira, temos que, segundo o art.5°, inc. XXXV da CF/88, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Sendo assim, fica consagrado como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro o acesso à justiça.

Portanto, é de se esperar que, de 1988 para os dias atuais, o número de processos tenha aumentado de sobremaneira, o que consequentemente causa uma sobrecarga no Judiciário. Esse ponto é de extrema importância para a compreensão do tema em análise.

Além de garantir o livre acesso à justiça, principalmente aos hipossuficientes, a Constituição também garante um direito amplo de defesa. Em seu art.5°, LV, afirma que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Ainda é possível perceber alguns reforços desse preceito em outros cantos da Constituição, como no inc.LXIII do referido artigo, que diz que o preso será informado de seus direitos, inclusive o de permanecer calado, e lhe serão prestadas a assistência da família e a defesa de um advogado.

É perceptível o apreço que o legislador constitucional teve com o corolário da ampla defesa ao frisá-lo bem na Constituição. Inegável o papel histórico que teve o regime da ditadura militar, como forma de exemplo negativo, afetando o processo decisório da Assembléia Nacional Constituinte (SOUZA, 2003). Tal enredo pode ser percebido nas próprias palavras do Constituinte que era Presidente da ANC, Ulysses Guimarães: A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo[2]

Além disso, o termo ampla defesa, além do encaixe constitucional na área dos direitos fundamentais, aparece no texto constitucional mais 10 (dez) vezes, sempre reforçando que em determinados procedimentos, o direito à defesa de modo amplo é garantido/assegurado.

Não obstante o caráter vinculante da Constituição Federal como norma hierarquicamente superior que dá sentido à todo ordenamento jurídico, bem como ao fato de que o princípio da ampla defesa faz parte do superprincípio do devido processo legal, temos que, como demonstra Felipe Bizinoto Soares de Pádua (2020), a inflação do Direito material leva à uma complexidade exacerbada, ocasionando dificuldades para que o próprio jurista compreenda o direito e aplique-o. A esse fenômeno é que damos o nome de hipertrofia.

A hipertrofia do direito de defesa, aliada a outro fenômeno lecionado por Pádua, mencionando Carlos María Cárcova (PÁDUA; 2020, apud CÁRCOVA; 1998), o da opacidade, gera impasses para se obter uma maior celeridade na tutela jurisdicional.

Esse distanciamento do mundo dos fatos para o mundo jurídico (opacidade das normas) faz com que as prerrogativas oferecidas em excesso prejudiquem os indivíduos, que tentam, por vezes, obter suas demandas em tempo hábil.

Dada essa ênfase ao direito de defesa no ordenamento jurídico brasileiro, deve-se refletir sobre como esse direito é aplicado à realidade e como ele se comporta frente a outros direitos e princípios. Haja vista que os direitos fundamentais possuem restrições (FARIAS, 2000), fica em aberto, todavia, qual seria esse limiar que separa o direito de defesa dos que são acusados do direito a um processo célere e efetivo de quem pleiteia em juízo.


2. COLISÃO DE PRINCÍPIOS

Haverá colisão entre os próprios direitos fundamentais, segundo Canotilho (1999, p. 1191) quando

o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos diante de um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas perante um choque, um autêntico conflito de direitos

MARINONI (2003) vê a preocupação exagerada com o direito de defesa como um resquício do liberalismo clássico, onde tal direito era uma garantia do cidadão perante o Estado. Entretanto, como o aclamado jurista denota em seu estudo, no liberalismo os corolários da ampla defesa e do contraditório seguiam um rígido contorno, no entanto, no Estado contemporâneo, todavia, esses corolários ganham uma elasticidade.

Como já expressado aqui, o legislador realmente deu um apreço especial ao direito de defesa, colocando-o como direito fundamental no art.5° da CF/88, entretanto, no mesmo artigo encontramos outro princípio de extrema importância dentro do processo, o princípio da duração razoável do processo: Art.5°,inc.LXXVIII, in verbis : a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Tal princípio é passível de entrar em conflito com o corolário da ampla defesa.

Esse princípio apareceu pela primeira vez, de forma mais veemente e em um contexto político mais favorável[3], no ordenamento jurídico brasileiro, em 06-11-1992, por meio do Decreto n° 678, que incorporou o Pacto de São José da Costa Rica da Convenção Americana de Direitos Humanos. Apesar do caráter pragmaticamente dualista dos juristas brasileiros, de acordo com a primazia do direito internacional[4] os tratados internacionais já produzem efeitos jurídicos desde a sua assinatura pelo Chefe de Estado. O mesmo tratado foi alvo de discussões, haja vista que o mesmo vedava qualquer prisão por dívida, exceto a do devedor de alimentos, já a Constituição, previa, além do devedor de alimentos, a prisão do depositário infiel. Tal assunto foi resolvido pelo julgamento do RE 466.343, que lhe deu o status de legislação supralegal.

Por sorte, no combo da Emenda Constitucional nº 45, o princípio foi expressamente inserido no rol de direitos fundamentais. Todavia, é curioso observar a Exposição de Motivos legislativos que antecederam a implementação da Emenda nº 45. Vejamos algumas transcrições de partes da Exposição de Motivos:

O DIAGNÓSTICO DA JUSTIÇA

Afinal, o Supremo Tribunal ofereceu, em junho de 1975, um alentado relatório ao Presidente da República, que qualificou de "diagnóstico". [...] O "diagnóstico" assinalou o óbvio: a Justiça brasileira é cara, morosa e eivada de senões que são obstáculos a que os jurisdicionados recebam a prestação que um Estado democrático lhe deve. Tais falhas vieram bem acentuadas em alguns setores; e de maneira mais discreta em outros. Faltou, de maneira geral, uma configuração mais exata da crise; a situação presente decorre da defasagem entre o conservadorismo tão típico das classes jurídicas e o ímpeto desenvolvimentista que se espalhou pela resto da vida do país desde a revolução de 1964. (grifos acrescidos)

Além desse recorte histórico, o próprio CPC/2015 ratificou esse princípio no seu art.4°, deixando claro que ele também se aplica na fase executiva (DIDDIER JR.,2017).Ou seja, o próprio Código de Processo Civil, que regula o andamento processual pátrio, regulamentou o Direito Fundamental previsto na Constituição. Todavia, mesmo em nível constitucional e infraconstitucional, os limites de interpretação ainda é muito amplo, não deixando para trás o caráter abstrato das normas do tipo princípio, inerente ao próprio termo razoável. Mas, não teria, sequer, alguma diretriz/parâmetro a ser seguido?

Para fins de determinar se a duração do processo é razoável, levando em conta as circunstâncias de cada caso, a título de exemplo, a CEDH (Corte Europeia dos Direitos do Homem) estabeleceu entendimento sobre três critérios que devem ser observados: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento das partes; c) a atuação do órgão jurisdicional. Segundo DIDDIER JR. (2017), no Brasil, podemos acrescentar mais um critério, a saber, a análise da estrutura do órgão judiciário. Para fins hermenêuticos, cabe dizer que tais critérios devem ser levados em conta como um conjunto.

Em relação ao segundo critério, impossível deixar de citar o art. 80 do CPC. O referido artigo exemplifica quais seriam as condutas do litigante que atua de má-fé. Dentre elas, o inciso I diz que seria conduta de má-fé I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso. Notadamente, os termos são, novamente, muito abertos à interpretação.

A esta altura fica bem claro que os dois direitos podem colidir. Mas quem seria o prejudicado? Ou ainda: quem seria o responsável? Para a primeira pergunta, pode-se responder o seguinte: todos os indivíduos que compõem o processo, dentro e fora dele, salvo, aquele que, por circunstâncias próprias ou alheias, pode acabar se beneficiando.

Não se pode identificar sem antes mergulhar a fundo nas questões de fato e de direito, qual seria a parte prejudicada, já que a autoria do processo não garante a razão a quem pleiteia. Na hipótese em que o réu tem razão e existe, por exemplo, uma liminar deferida em seu desfavor, a demora do processo prejudica a esse indivíduo hipotético. Mas, levando em consideração que o processo jurídico possui implicações que podem causar ônus a quem pleiteia [5], a melhor estratégia, em tese, é que o autor demande em juízo quando souber que tem direito a receber a efetiva tutela. Nesse caso, a demora é maléfica para o autor.

Porém, não só os envolvidos diretamente no processo são prejudicados, mas todos que tenham uma conexão com as partes ou com o julgador. Podemos citar os familiares das partes e do julgador, os próprios servidores do órgão julgador a até mesmo toda a população abrangida por aquele determinado sistema ou órgão judiciário.

O Poder Judiciário é custoso para o país. Segundo o relatório do Justiça em Números 2022, disponibilizado pelo CNJ, no ano de 2021, o Poder Judiciário teve despesas totais que somaram R$ 103,9 bilhões[6]. O mesmo relatório individualiza o gasto por habitante do país, o que é em 2021 custou R$ 489,91 (quatrocentos e oitenta e nove reais e noventa e um centavos), algo em torno de 44,5% do salário do mesmo período.

Como um dos meios de tentar equilibrar essa balança, podemos citar o mecanismo da antecipação da tutela fundada na evidência, isto é, sem que seja necessária a demonstração de perigo (art: 311 CPC/2015).


3. ABUSO DO DIREITO DE DEFESA

Outro ponto controverso que integra a semântica do assunto aqui discutido é o abuso do direito de defesa. Veja que o abuso é o jeito doloso pelo qual o réu protela a lide e infringe o direito do autor de ter uma duração razoável do processo.O abuso de direito é um ato ilícito, que pode ser definido, segundo a maioria da doutrina brasileira, exercício do direito de modo a contrariar e contradizer o valor que o mesmo procura tutelar (FERREIRA,2013). Como especifica o art.187 do Código Civil de 2002, também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

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Estava bastante lúcido e consciente o legislador que ao redigir o novo CPC, colocou em seu art.311, inc. I, que a tutela de evidência seria concedida quando ficasse caracterizado o abuso do direito de defesa.

Todavia, apesar de termos tais conceitos, o que gera controvérsias é a imprecisão dos contornos jurídicos.Dessa forma, sendo a ampla defesa um direito subjetivo ela também é relativa.Não há como se ignorar o fato da relativização de direitos, até mesmo os direitos fundamentais, e fica claro que isso ocorre, pois, o próprio legislador quando relativiza um direito fundamental, o faz expressamente, vide o direito de propriedade.Ou seja, apesar de termos a noção da existência de tais limites, ficamos confusos quanto a como caracterizar tais e quando eles ocorrem.Tais fatores prejudicam a celeridade, efetividade e adequação da tutela jurisdicional.

Para tentar explicar melhor esse paradigma, irei mostrar a seguir alguns exemplos e situações reais que cristalizam essa confusão.


4. CASOS CONCRETOS

Caso Lula

Caso interessante para ser abordado aqui é o referente a Ação Penal 5063130-17.2016.4.04.7000, que diz respeito ao caso Lula, onde o ex-presidente é acusado de receber propina da empresa Odebrecht. No caso, a defesa de Lula arrolou 87 testemunhas para depor.

Diante desta situação, o Juiz Sérgio Moro fez se exigir que, para cada uma das 87 oitivas, o ex-Presidente se fizesse presente.Como uma maneira de negociar o número de testemunhas o Juiz disse que estava disposto a mudar sua decisão se a defesa também estivesse disposta a mudar a sua. A questão que fica é: foi essa uma decisão justa ou até mesmo legal?

Segundo a análise dos juristas Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa, em artigo lançado na revista Consultor Jurídico, a decisão é ilegal pois não encontra respaldo no CPP nem nos Tribunais.

Quanto ao número elevado de testemunhas, os juristas explicam: O número de testemunhas assusta porque o Ministério Público Federal deu essa possibilidade ao cumular diversas imputações. Logo, não houve invenção nem abuso do acusado. Está na regra do CPP: artigo 401.O artigo em questão fala que poderão ser inquiridas até 8 testemunhas arroladas pela acusação e até 8 pela defesa. Como a ação penal tinha 11 réus, o número estava dentro da margem.

Indígena

Outra situação muito recorrente e que diz respeito ao tema se dá quanto aos processos que envolvem povos indígenas.Nesses processos, devido a natureza dos povos indígenas e a sua tutela especial no nosso ordenamento jurídico brasileiro, se vê uma necessidade de citar todos o membros indígenas envolvidos. No TRF-4, esse tema já foi motivo de discussão no julgamento de um caso sobre demarcação de terras. O fato faz relembrar algo que foi dito no começo deste trabalho: a situação do sobrecarregamento do judiciário.


5. CONCLUSÕES

Podemos aferir a partir do estudo aqui apresentado que o direito de defesa encontra sim limites no nosso ordenamento jurídico, sendo estes limites determinados quando o direito de defesa do réu é abusivo dolosamente, ou quando esse direito colide com o direito do autor de ter uma duração razoável o processo, sendo essa última discussão ainda de caráter dialético.

Pode-se também concluir que apesar de certos parâmetros que guiam o direito de defesa, a imprecisão de alguns conceitos impede que se saiba quando ocorre o abuso ou até mesmo que situações são justas ou não.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Aldoney Queiroz de. O DIREITO À AMPLA DEFESA E O ABUSO DO DIREITO DA DEFESA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito) - UFPE, Recife, Apresentação

STJ. A aplicação do Pacto de San José da Costa Rica em julgados do STJ. Notícias, [S. l.], p. 1-1, 24 nov. 2019. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/A-aplicacao-do-Pacto-de-San-Jose-da-Costa-Rica-em-julgados-do-STJ.aspx. Acesso em: 25 set. 2022.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo ; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. TEORIA GERAL DO PROCESSO. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

DIDDIER JR., Fredie. CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL. Salvador: Jus Podivm, 2017.

MARINONI, LUIZ GUILHERME ; ARENHART, SÉRGIO CRUZ; MITIDIERO, DANIEL. NOVO CURSO DE PROCESSO CIVIL. São Paulo: Revista do Tribunais, 2015.

REDAÇÃO. Juristas explicam por que Moro errou ao querer Lula em 87 oitivas de testemunhas. Fórum, [S. l.], 22 abr. 2017. Disponível em: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo ; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. TEORIA GERAL DO PROCESSO. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. Acesso em: 22 jun. 2019.

Sobre o autor
Gabriel Francisco Marinho da Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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