DA (IM) POSSIBILIDADE DE DELEGAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA A PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

10/10/2022 às 11:15
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O poder de polícia configura uma prerrogativa do Poder Público de ordenar, consentir e fiscalizar o particular nas suas atividades, e se for o caso, puni-lo quando houver descumprimento da ordem. Trata-se de um poder que decorre da supremacia do interesse público. Lado outro, a delegação é uma extensão de competência, temporária, em que o órgão titular concede a outro, hierarquicamente inferior ou de mesma hierarquia, a possibilidade de exercer determinadas atividades que, em tese, não é de sua competência originária. Em regra, por se tratar de uma atuação típica de Estado, o Poder de Polícia é exercido por pessoas jurídicas de direito público, seja diretamente ou por delegação. Ao revés, há um enorme debate tanto na jurisprudência quanto na doutrina acerca da possibilidade de delegação do Poder de Polícia a pessoas jurídicas de direito privado. Ademais, se todas elas podem receber essa incumbência ou somente àquelas integrantes da Administração Pública Indireta, e por fim, se todas as fases podem ser delegadas ou não. Portanto, o presente artigo tem por objetivo esclarecer se há ou não a possibilidade de delegação do poder de polícia a uma pessoa jurídica de direito de privado.

Palavras-chave: Poder de Polícia. Delegação. Pessoa Jurídica de direito privado

INTRODUÇÃO

O Poder de Polícia configura uma prerrogativa do Poder Público de ordenar, consentir e fiscalizar o particular nas suas atividades, e se for o caso, puni-lo quando houver descumprimento da ordem. Trata-se de um poder que decorre da Supremacia do Interesse Público.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro elenca:

Pelo conceito clássico, ligado à concepção liberal do século XVIII, o poder de polícia compreendia a atividade estatal que limitava o exercício dos direitos individuais em benefício da segurança. Pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público. (DI PIETRO, 2013, p.122-123)

A Delegação é uma transferência de competência, temporária, em que o órgão titular concede a outro, hierarquicamente inferior ou de mesma hierarquia, a possibilidade de exercer determinadas atividades que não é de sua competência originária, sempre quando for conveniente em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial.

O professor Alexandre Mazza esclarece:

A delegação é a transferência temporária de competência administrativa de seu titular a outro órgão ou agente público subordinado à autoridade delegante (delegação vertical) ou fora da linha hierárquica (delegação horizontal). Trata-se de transferência sempre provisória porque a delegação pode ser revogada a qualquer tempo pela autoridade delegante. (MAZZA, 2019, p.421)

Em regra, por se tratar de uma atuação típica de Estado, o Poder de Polícia é exercido por pessoas jurídicas de direito público, seja diretamente ou por delegação. A doutrina estabelece que o Poder de Polícia possui quatro ciclos: ordem de polícia, consentimento de polícia, fiscalização de polícia e sanção de polícia. Ao tratar de delegação essa divisão é muito importante, vez que, a ampliação de competência pode recair em um ou mais ciclos. Entretanto, há um enorme debate tanto na jurisprudência quanto na doutrina acerca da possibilidade de delegação do Poder de Polícia a pessoas jurídicas de direito privado. Ademais, se todas elas podem receber essa incumbência ou somente àquelas integrantes da Administração Pública Indireta, e por fim, se todas as fases podem ser delegadas ou não.

Portanto, o presente trabalho, sem a intenção de esgotar o assunto, tem por objetivo esclarecer se há a possibilidade de delegação do Poder de Polícia a pessoas jurídicas de direito privado, quais ciclos delegáveis, e se essa ampliação de competência pode ser estendida a não integrantes do primeiro setor da Administração Pública.

DESENVOLVIMENTO

O Poder de Polícia, como dito alhures, é uma prerrogativa do Poder Público de ordenar, consentir e fiscalizar o particular nas suas atividades, e se for o caso, puni-lo quando houver descumprimento da ordem. Ele possui dois sentidos diferentes: sentido amplo e sentido restrito. O amplo compreende toda e qualquer atuação estatal restritiva à liberdade e propriedade. Já o restrito está diretamente relacionado ao exercício da função administrativa, que pode ser desdobrado em preventivo, repressivo e fiscalizatório. O preventivo estabelece disposições genéricas e abstratas que disciplinam, por exemplo, horário de funcionamento de determinado estabelecimento, proíbe desmatar área de proteção ambiental, entre outros. O repressivo ocorre quando são praticados atos específicos, quando a ordem é violada, como aplicação de multa, interdição de estabelecimento, sempre com observância à lei. Por fim, o fiscalizatório busca evitar o repressivo, vez que, previne ou, pelo menos, tenta prevenir a não observância da ordem.

O conceito do Poder de Polícia está elencado no art.78, CTN, vejamos:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

O exercício do poder de polícia abarca quatro fases diferentes que se inserem no denominado ciclo de polícia:

Ordem de Polícia é a norma legal que estabelece as restrições e as condições para o exercício das atividades privadas; Consentimento de Polícia é a anuência do Estado para que o particular desenvolva determinada atividade ou utilize a propriedade particular. Se exterioriza por meio da expedição de licença ou autorização. A licença é o ato vinculado por meio do qual a Administração reconhece o direito do particular, como exemplo, temos a licença para dirigir veículo automotor. A autorização é o ato discricionário em que a Administração Pública, depois de analisar a conveniência e a oportunidade, faculta o exercício de determinada atividade particular, como exemplo, temos a autorização para portar arma de fogo. Já a Fiscalização de Polícia é a verificação de cumprimento, pelo particular, da ordem e do consentimento de polícia. A fiscalização de trânsito é um exemplo desse ciclo. Por fim, Sanção de Polícia é a medida coercitiva aplicada ao particular que descumpre a ordem ou os limites estabelecidos no consentimento de polícia. A multa de trânsito, a apreensão de mercadorias estragadas e a interdição de estabelecimento comercial irregular são alguns exemplos.

Lado outro, a delegação é a ampliação de competência, realizada pelo agente titular de determinada atribuição, que a transfere, temporariamente, para outro agente de mesma hierarquia ou de hierarquia inferior, sempre quando for conveniente e por motivo técnico, social, jurídico, territorial ou econômico.

Conforme a lição de Rafael Oliveira:

Delegação é a transferência precária, total ou parcial, do exercício de determinadas atribuições administrativas, incialmente conferidas ao delegante, para outro agente público. (OLIVEIRA, 2021, p. 262)

A delegação é ato discricionário e pode ser revogada a qualquer tempo pela autoridade delegante. Tanto o seu início quanto o seu término devem ser publicados no meio oficial. Vale ressaltar, porém, que há atribuições que não são suscetíveis de delegação, como exemplo, a edição de atos normativos, a decisão de recursos administrativos e as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade.

A norma legal que disciplina o tema é a lei 9.784/99, nos seus artigos 12 a 14, in verbis:

Art. 12. Um órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar parte da sua competência a outros órgãos ou titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados, quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se à delegação de competência dos órgãos colegiados aos respectivos presidentes.

Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:

I - a edição de atos de caráter normativo;

II - a decisão de recursos administrativos;

III - as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade.

Art. 14. O ato de delegação e sua revogação deverão ser publicados no meio oficial.

§ 1o O ato de delegação especificará as matérias e poderes transferidos, os limites da atuação do delegado, a duração e os objetivos da delegação e o recurso cabível, podendo conter ressalva de exercício da atribuição delegada.

§ 2o O ato de delegação é revogável a qualquer tempo pela autoridade delegante.

§ 3o As decisões adotadas por delegação devem mencionar explicitamente esta qualidade e considerar-se-ão editadas pelo delegado.

Sobre a matéria o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 510:

Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe o mandado de segurança ou a medida judicial.

O Poder de Polícia é considerado uma atuação típica de Estado que possui, na maioria dos seus ciclos, atributos como a coercibilidade e a autoexecutoriedade. Diante disso, parte da doutrina defende que o exercício deste poder por pessoas jurídicas de direito privado não pode ser pleno, sendo possível a delegação, apenas, para o ciclo de consentimento e de fiscalização. Ademais, a transferência dessa atribuição só pode ocorrer para integrantes da Administração Pública Indireta, ou seja, empresas públicas e sociedades de economia mista, não havendo, portanto, possibilidade de ser concedida a empresas 100% (cento por cento) privadas.

Preconiza o professor Rafael Oliveira:

Entendemos ser possível a delegação de determinadas parcelas do poder de polícia às entidades privadas, desde que respeitadas alguns parâmetros, tais como: 1) Exercida preponderantemente por entidades de direito público e, excepcionalmente, por entidades de direito privado. 2) Princípio da legalidade (juridicidade): a delegação deve ser por norma constitucional ou legal, que deve fixar o exercício e limites para a função delegada; 3) Conteúdo da delegação: apenas podem ser delegadas atividades instrumentais ou técnicas, sendo vedada a transferência regular das atividades punitivas ou vinculadas à soberania; 4) Obediência à razoabilidade e proporcionalidade; 5) Respeitar direitos e garantias dos administrados. (OLIVEIRA, 2021, p.249)

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Já Celso Antônio Bandeira de Melo assevera:

A Restrição à atribuição de atos de polícia a particulares estaria alicerçada no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade. Isso porque, caso contrário, haveria um desequilíbrio entre os particulares, ao passo que o ordenamento definiria que certos entes privados teriam supremacia sobre outros. Portanto, não há delegação de ato jurídico de polícia a particular e nem a possibilidade de que este o exerça a título contratual. (MELLO, 2015, p.863-865)

Por derradeiro, José dos Santos Carvalho Filho afirma:

(...) A respeito do tema, suscitou-se grande polêmica relacionada à Guarda Municipal, quando o Município do Rio de Janeiro a instituiu sob a forma de empresa pública. Com o argumento de que se tratava de pessoa jurídica de direito privado, bem como pela circunstância de que seus servidores se subordinavam ao regime trabalhista, o que não lhes poderia conferir estabilidade, alguns passaram a defender a anulação das multas de trânsito por eles aplicadas em consequência da impossibilidade jurídica de ser exercido poder de polícia pela entidade. A nosso ver, tal entendimento reflete flagrante desvio de perspectiva. Inexiste qualquer vedação constitucional para que pessoas administrativas de direito privado possam exercer o poder de polícia em sua modalidade fiscalizatória. Não lhes cabe é lógico o poder de criação das normas restritivas de polícia, mas, uma vez já criadas, como é o caso das normas de trânsito, nada impede que fiscalizem o cumprimento das restrições. (CARVALHO FILHO, 2019, p.175)

O Superior Tribunal de Justiça entende que as atividades de ordem e sanção de polícia derivam de indiscutível poder coercitivo estatal, e por isso, não podem ser delegadas a pessoas jurídicas de direito privado. Lado outro, as atividades de consentimento e fiscalização de polícia são passíveis de delegação (frisa-se, para integrantes da Administração Indireta).

ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e 24), na medida em que estes artigos tratam da competência dos órgãos de trânsito. O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por conseqüência o cumprimento do requisito do prequestionamento. 2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista). 3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção. 4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção). 5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público. 6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação. 7. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 817534 MG 2006/0025288-1, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 10/11/2009, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/12/2009).

Lado outro, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 633782, com repercussão geral reconhecida, entendeu de forma diferente, além de convergir no que se refere aos ciclos de consentimento e fiscalização, admitiu que a pessoa jurídica de direito privado pode exercer o ciclo sanção de polícia, desde que preencha alguns requisitos: deve ser integrante da Administração Pública Indireta, possuir capital social majoritariamente público, prestar exclusivamente serviço público de atuação do Estado e em caráter não concorrencial e a delegação deve ser por meio de lei.

Importante destacar que a corte ao elencar os requisitos foi redundante ao estabelecer que a pessoa jurídica de direito privado deve ser integrante da Administração Pública Indireta e possuir majoritariamente capital social público, haja vista que, as entidades do primeiro setor de personalidade jurídica de direito privado possuem, necessariamente, o capital social majoritariamente público, a empresa pública na sua integralidade e a sociedade de economia mista na sua maioria.

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 532. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PRELIMINARES DE VIOLAÇÃO DO DIREITO À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL ADEQUADA E DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AFASTADAS. PODER DE POLÍCIA. TEORIA DO CICLO DE POLÍCIA. DELEGAÇÃO A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO INTEGRANTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO DE ATUAÇÃO PRÓPRIA DO ESTADO. CAPITAL MAJORITARIAMENTE PÚBLICO. REGIME NÃO CONCORRENCIAL. CONSTITUCIONALIDADE. NECESSIDADE DE LEI FORMAL ESPECÍFICA PARA DELEGAÇÃO. CONTROLE DE ABUSOS E DESVIOS POR MEIO DO DEVIDO PROCESSO. CONTROLE JUDICIAL DO EXERCÍCIO IRREGULAR. INDELEGABILIDADE DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. 1. O Plenário deste Supremo Tribunal reconheceu repercussão geral ao thema decidendum, veiculado nos autos destes recursos extraordinários, referente à definição da compatibilidade constitucional da delegação do poder de polícia administrativa a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta prestadoras de serviço público. 2. O poder de polícia significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Em sentido estrito, poder de polícia caracteriza uma atividade administrativa, que consubstancia verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de delimitar a liberdade e a propriedade. 3. A teoria do ciclo de polícia demonstra que o poder de polícia se desenvolve em quatro fases, cada uma correspondendo a um modo de atuação estatal: (i) a ordem de polícia, (ii) o consentimento de polícia, (iii) a fiscalização de polícia e (iv) a sanção de polícia. 4. A extensão de regras do regime de direito público a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta, desde que prestem serviços públicos de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial é admissível pela jurisprudência da Corte. (Precedentes: RE 225.011, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. p/ o acórdão Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 16/11/2000, DJ 19/12/2002; RE 393.032-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 18/12/2009; RE 852.527-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 13/2/2015). 5. A constituição de uma pessoa jurídica integrante da Administração Pública indireta sob o regime de direito privado não a impede de ocasionalmente ter o seu regime aproximado daquele da Fazenda Pública, desde que não atue em regime concorrencial. 6. Consectariamente, a Constituição, ao autorizar a criação de empresas públicas e sociedades de economia mista que tenham por objeto exclusivo a prestação de serviços públicos de atuação típica do Estado e em regime não concorrencial, autoriza, consequentemente, a delegação dos meios necessários à realização do serviço público delegado. Deveras: a) A admissão de empregados públicos deve ser precedida de concurso público, característica que não se coaduna com a despedida imotivada; b) o RE 589.998, esta Corte reconheceu que a ECT, que presta um serviço público em regime de monopólio, deve motivar a dispensa de seus empregados, assegurando-se, assim, que os princípios observados no momento da admissão sejam, também, respeitados por ocasião do desligamento; c) Os empregados públicos se submetem, ainda, aos princípios constitucionais de atuação da Administração Pública constantes do artigo 37 da Carta Política. Assim, eventuais interferências indevidas em sua atuação podem ser objeto de impugnação administrativa ou judicial; d) Ausente, portanto, qualquer incompatibilidade entre o regime celetista existente nas estatais prestadoras de serviço público em regime de monopólio e o exercício de atividade de polícia administrativa pelos seus empregados. 7. As estatais prestadoras de serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial podem atuar na companhia do atributo da coercibilidade inerente ao exercício do poder de polícia, mormente diante da atração do regime fazendário. 8. In casu, a Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte BHTRANS pode ser delegatária do poder de polícia de trânsito, inclusive quanto à aplicação de multas, porquanto se trata de estatal municipal de capital majoritariamente público, que presta exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial, consistente no policiamento do trânsito da cidade de Belo Horizonte. Preliminares: 9. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o princípio da fundamentação das decisões não obriga o órgão julgador a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, mas somente aqueles que sejam suficientes para motivar o seu convencimento. Preliminar de violação do direito à prestação jurisdicional adequada afastada. 10. A alínea d, inciso III, artigo 102, da Constituição exige, para atração da competência do Supremo Tribunal Federal, declaração expressa da validade de lei local contestada em face de lei federal, o que, in casu, não se verifica. Preliminar de usurpação de competência afastada. 11. Os recursos extraordinários interpostos pela Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte BHTRANS e pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais devem ser conhecidos em razão do preenchimento de todos os requisitos de admissibilidade, notadamente o da tempestividade, prequestionamento, legitimidade e o do interesse recursal, além da repercussão geral da matéria reconhecida pelo Plenário Virtual desta Corte. 12. Ex positis, voto no sentido de (i) CONHECER e DAR PROVIMENTO ao recurso extraordinário interposto pela Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte BHTRANS e (ii) de CONHECER e NEGAR PROVIMENTO ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, para reconhecer a compatibilidade constitucional da delegação da atividade de policiamento de trânsito à Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte BHTRANS, nos limites da tese jurídica objetivamente fixada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal. 13. Repercussão geral constitucional que assenta a seguinte tese objetiva: É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.
(RE 633782, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-279 DIVULG 24-11-2020 PUBLIC 25-11-2020).

Portanto, foi firmada a seguinte tese pelo STF:

É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.

CONCLUSÃO

Diante de tudo ora exposto, é possível afirmar que a delegação do poder de polícia para pessoas jurídicas de direito privado é um tema complexo e palco de algumas divergências. De um lado a doutrina majoritária e parte da jurisprudência (leia-se STJ) entende que a delegação é possível, desde que seja para o exercício de fiscalização e consentimento de polícia e que a entidade seja integrante da Administração Pública Indireta, ou seja, empresa pública e sociedade de economia mista. Entretanto, por ser uma atuação coercitiva, a sanção de polícia não pode ser transferida para nenhuma entidade privada, ademais, a ordem de polícia, por se tratar de matéria legislativa, também, não pode ser delegada a essas instituições.

Divergindo parcialmente, do outro lado, o Supremo Tribunal Federal em recente julgado, com repercussão geral, estabeleceu a possibilidade de delegação, além do consentimento e fiscalização, do ciclo de sanção de polícia. Ou seja, para a corte é possível que uma entidade de direito privado atue na aplicação de sanções ao particular, desde que seja por meio de lei, integrante da Administração Pública Indireta, preste serviço de atuação típica de Estado, em caráter não concorrencial. Na verdade, o STF ao utilizar esses requisitos equipara as estatais, que se enquadram nesse modelo, às autarquias, vez que, em outros julgados, já garantiu para aquelas entidades prerrogativas processuais e fiscais que são benefícios típicos de entes com personalidade jurídica de direito público, como exemplo, o regime de precatórios e a imunidade recíproca.

Conclui-se, portanto, que a delegação do poder de polícia a entidades de direito privado exige, de forma unânime, ser esta integrante da Administração Pública Indireta, a transferência da competência consistir nos ciclos de consentimento e fiscalização, sendo o ciclo de ordem indelegável. De forma não unânime, mas é o entendimento aplicável atualmente, ser o ciclo de sanção de polícia, também, delegável às estatais que se enquadram no modelo, alhures mencionado, estabelecido pelo STF.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Congresso Nacional. Código Tributário Nacional: promulgado em 01 de janeiro de 1967.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei 9.784 - Processo Administrativo: promulgada em 29 de janeiro de 1999.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33ª ed São Paulo: Atlas, 2019.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26ª ed São Paulo: Atlas, 2013.

MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 817534 MG 2006/0025288-1. Relator Ministro Mauro Campbell Marques. Brasília, 10 de dezembro de 2009. Lex: jurisprudência do STJ, T2 - SEGUNDA TURMA, data de julgamento: 10/11/2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 633782. Relator Luiz Fux, Tribunal Pleno. Brasília, 25 de novembro de 2020. Lex: jurisprudência do STF, processo eletrônico repercussão geral, data de julgamento: 26/10/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 510. In: ___. Súmulas. DJ de 10/12/1969, p. 5932; DJ de 11/12/1969, p. 5948; DJ de 12/12/1969, p. 5996.Disponível em:<https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2671>. Acesso em: 07 de maio de 2022.

Sobre o autor
Henrique Costa

Advogado. Orador. Autor de artigos e textos jurídicos. Especialista em Licitações Públicas e Contratos Administrativos. Atua como Treinador, Consultor e Assessor Jurídico. Participante do Projeto Implantação da Nova Lei de Licitações com ênfase nos Órgãos e Entidades Públicas. Participante do Curso Desmistificando as Obras e Serviços de Engenharia - Os Novos Desafios da Lei 14.133/21 e as Velhas Questões; Congressista no VI Congresso Brasileiro de Licitações e Contratos. Congressista no I Congresso do Instituto Nacional de Contratações Públicas (INCP). Congressista no III Congresso Jurídico Internacional da Fundação Pres. Antônio Carlos. Participante da XXIV Conferência Nacional da Advocacia Brasileira. Pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo. Pós-Graduado em Direito Trabalhista e Previdenciário. Pós-Graduado em Direito e Processo Civil. Pós-graduado em Ciências Penais e Segurança Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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