A equivocada tentativa de comparação da Lei Sanção com o crime de maus tratos

11/10/2022 às 15:29
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Desde a edição da Lei nº 14.064, de 29 de setembro de 2020 (lei Sanção) surgiu debate em torno da validade da regra que promove alteração na pena de maus tratos contra cães e gatos, tendo em conta o princípio da proporcionalidade em matéria penal.

A modificação promovida pela Lei Sanção foi incidente na lei de crimes ambientais, especificamente, no caput do artigo 32, o qual passou a estabelecer a pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda, quando a ação de maus tratos for dirigida contra cães e gatos.

Um dos debates importantes, em conta do princípio da proporcionalidade penal, estabelece comparativo do crime de maus tratos contra cães e gatos com o crime de maus tratos disciplinado pelo artigo 136 do Código Penal, em especial na modalidade do crime praticado contra menores de 14 (catorze) anos.

As hipóteses, porém, não comportam análise comparativa linear, em especial para verificação do atendimento ao princípio da proporcionalidade penal, isso porque, afora a semelhança do nomen iures, a conduta do artigo 136 do Código Penal, pelas suas características especializadores, não guarda relação com a conduta tipificada no artigo 32 da lei de crimes ambientais.

Melhor explicando, ao definir os maus tratos contra animais, a legislação optou por uma descrição ampla da conduta, considerando todas as modalidades de atos agressivos possíveis, tanto que não há qualquer aumento de pena, tendo em consideração a gravidade da lesão produzida, a qual pode ser até mesmo a mutilação. O único aumento de pena é fixado no §2º do artigo 32, quando houver a morte do animal.

Assim, correto afirma que salvo a derradeira hipótese da morte, todas as formas de violência e agressão contra animais estão inseridas em um único dispositivo.

Por outro lado, o artigo 136 do Código Penal trata de modalidade especial de ação delitiva, pois, necessariamente o conteúdo subjetivo deve ser canalizado para educação, ensino, tratamento ou custódia da vítima, em outras palavras, se o método agressivo é utilizado para gerar sofrimento ou para satisfação outro sentimento do agente, por exemplo, já não há enquadramento na hipótese dos maus tratos; o mesmo podendo se dizer quando o objetivo for um experimento científico, didático, ou ainda, dominar a pessoa ou exercer autoridade sobre ela, situações todas estas que, em relação aos animais, estão tipificada em um único dispositivo legal.

Acresce verificar que a caracterização dos maus tratos do artigo 136 do Código Penal demanda conduta inserida em uma das seguintes hipóteses: a) privação de alimentação; b) privação dos cuidados indispensáveis; c) sujeição a trabalhos excessivos; d) sujeição a trabalhos inadequados; e) abuso dos meios de correção ou disciplina.

O somatório da especificidade da conduta a ser adotada com a finalidade especial distanciam o delito descrito no artigo 136 do Código Penal dos maus tratos a animais, no qual qualquer ação agressiva, praticada por qualquer modalidade de conduta e independente da finalidade pode ser enquadrada.

Assim sendo, apesar da similitude do nomen iures dos delitos, em verdade, os crimes em análise não permitem análise comparativa linear, sob a ótica do princípio da proporcionalidade penal, por dizerem respeito a diferentes modalidades de conduta, quando conta o ordenamento jurídico com condutas mais assemelhadas entre si, como a do artigo 32 da lei 9605/1998 (maus tratos a animais) e a do artigo 1º, inciso II, da lei 9455/1997 (tortura).

Igualmente, a modalidade de maus tratos praticadas contra menor de 14 (catorze) anos deve ser lida com ressalvas no aspecto comparativo do princípio da proporcionalidade penal, pois, a Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014 (lei da palmada) estabelece especial nível de proteção, permissivo da intervenção estatal sobre os responsáveis pela criança ou adolescente, a partir de qualquer tratamento agressivo que a criança venha a sofrer.

Assim sendo, a promoção de análise sistemática da estrutura legislativa, deixa bastante evidente que a comparação linear entre o delito de maus tratos a animais e o de maus tratos, do Código Penal, inclusive contra menores é absolutamente falha, pois o âmbito da violência tipificado no artigo 32, §2º, da Lei de Crimes Ambientais é muito mais expressivo que os limites específicos do artigo 136 do Código Penal, com distintas possibilidades interventivas previstas pelo ordenamento jurídico, como, por exemplo, a lei da palmada, a qual traz clara mensagem da importância da integridade dos menores no sistema jurídico brasileiro.

Nessa toada, a pretensa comparação linear entre os delitos de maus tratos a cães e gatos e o de maus tratos à pessoas, inclusive menores é claramente miope, pois, deixa à margem toda estrutura sistemática, igualmente, ignorado as especificidades da conduta descrita no artigo 136 do Código Penal, bem como, os níveis extremos de violência que os maus tratos contra animais podem assumir.

Eventuais ajustes, tendo em conta a conduta concretamente praticada e o grau de ofensa perpetrada, no crime de maus tratos contra cães e gatos, serão aquilatados pelo juiz no caso concreto, quando realizar o processo de individualização judicial de pena, tornando, ainda, mais evidente o acerto legislativo, ao definir os limites punitivos possíveis, na medida em que, os mais variados níveis de agressão e os mais diversos dados motivacionais do agente estão inseridos em um único tipo penal.

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Nessa toada, não há dúvidas que afirmadas ofensas ao princípio da proporcionalidade pela Lei Sanção, desde a comparação de seus termos com o crime de maus tratos do artigo 136 do Código Penal são precipitadas e insustentáveis, não subsistindo à análise sistemática do tratamento jurídico dado ao bem jurídico ofendido em uma ou outra hipótese.

Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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