A competência tributária facultativa: Crítica ao pensamento de obrigatoriedade a partir do art. 11 da Lei Completar nº 101, de 2.000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e análise da ADI 2238

24/10/2022 às 17:05
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SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Características gerais da competência tributária. 3. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): objetivos e princípios norteadores. 4. A análise do art. 11 da LRF: análise como mecanismo de responsabilidade na gestão pública e do imperativo lógico de federalismo cooperativo. 5. Conclusão.

1. Introdução

Classicamente, os estudiosos do Direito Tributário qualificavam a competência tributária para a instituição de tributos como facultativa, de maneira que, ao ter Constituição da República de 1.988 disciplinado quais seriam os motivos fáticos a levar a instituição de tributo, não imporia aos Entes Federados a obrigação constitucional de constituí-los pelas legislações ordinárias ou complementares.

Dito de outro modo, como a Constituição, pelo pensamento remansoso da doutrina, não constitui nenhuma espécie tributária, caberia ao Ente Federado avaliar qual seria o melhor momento econômico, político e fático para instituir o tributo previsto constitucional por meio lei ordinária ou complementar, a depender do caso.

Esta seria a conclusão decorrente do próprio princípio da legalidade disposto no art. 150, inc. I, da Constituição da República, bem como do pensamento outrora assente que não há prazo para o legislador exercer o munus constitucional que lhe incumbe: a função de legislar[1].

Porém, a posição que outrora era assente passa a se tornar discutível entre os juristas a partir do momento em que o art. 11, caput, da Lei Complementar nº 101, de 2.000 (Lei de Responsabilidade Fiscal LRF), estipula que constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.

E, no parágrafo único, do aludido dispositivo, impõe como sanção, pela não instituição de todos os impostos de competência constitucional do Ente Federado, a impossibilidade de receber transferências voluntárias.

Com a previsão de tal sanção, passou-se a se discutir se, deveras, a competência constitucional deixou de ser facultativa para se tornar obrigatória. Ou, se o art. 11, parágrafo único, da LRF seria inconstitucional, uma vez que viola a sistemática da facultatividade da competência tributária imposta pela Constituição.

No transcorrer do presente estudo, veremos que a noção de federalismo cooperativo, corporificada na sistemática constitucional da repartição de receitas tributárias (art. 157 a 162 da Constituição da República de 1.988), parece afastar a noção de facultatividade no exercício da competência, ao menos, de instituição de impostos, sem que isso leve à inconstitucionalidade do aludido dispositivo legal.

2. Características gerais da competência tributária

A competência tributária, ultrapassada a análise da discussão se facultativa ou obrigatória, é privativa no sentido de que somente o Ente Federado informado pelo texto constitucional como apto a instituição do tributo é que poderá, com exclusividade, exercê-la.

Por esse motivo, é que a competência tributária é indelegável e irrenunciável, razão pela qual inviável a investidura de outro Ente Federado ou de determinada pessoa jurídica pertencente à Administração Pública Indireta instituir determinada espécie tributária[2].

Além disso, a competência tributária é incaducável e intransferível, termo a ser compreendido na acepção de que deixar de exercer a competência tributária não leva à consideração da perda do mencionado poder político, nem mesmo a possibilidade de outro assim o fazer, como determina o art. 8º do Código Tributário Nacional.

Como se percebe, toda a sistematização das características da competência tributária leva a crer que ela somente pode ser exercida por aquele Ente Federativo incumbido de tal poder pela Constituição da República, reputando qualquer pensamento de delegabilidade ou transferibilidade a pessoa diversa como contrário ao texto constitucional.

A competência tributária não estaria nem mesmo sujeita ao fator tempo, um dos grandes causadores da perda do direito pelo não exercício, na forma do antigo jargão: o direito não socorre aos que dormem.

Não parece ser esta, portanto, a intenção do legislador complementar ao prever o art. 8º do Código Tributário Nacional (CTN).

3. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF): objetivos e princípios norteadores

Desde os primórdios da Constituição, havia preocupação de existir equilíbrio nas contas públicas no sentido de que a totalidade das receitas e das despesas não fossem discrepantes, sobretudo a fim de evitar déficits públicos elevados que causem instabilidade econômica no país.

Instabilidade econômica faz com que os investimentos particulares sejam menos constantes e diminutos, pela própria insegurança se os valores aplicados darão retorno financeiro aos investidores.

A consequência prática disto é que a economia começa a declinar em larga escala, acarretando diversos problemas sociais, como, por exemplo, o desemprego em massa e inflação de preços descontrolada.

Pelos momentos pouco tempo vividos antes do advento da Constituição, é que sempre se teve em mente a preocupação de equilíbrio das contas públicas.

Esse mesmo objetivo é que imbuiu diversas reformas constitucionais, sobretudo a delineada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1.998, que, segundo a doutrina administrativa, instituiu a concepção gerencial de Administração Pública em substituição à burocrática.

O dispositivo constitucional, modificado pela aludida Emenda, que patentemente denota a preocupação com o déficit público é o art. 169 da Constituição da República de 1.988[3].

Nesse cenário, foi editada a Lei Complementar nº 101, de 2.000 (Lei de Responsabilidade Fiscal LRF), cuja preocupação central sistemática é estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com o intuito, repise-se, de prevenir o endividamento público descompensado e sem nenhum tipo de planejamento.

É esse o espírito da lei, cuja descrição se encontra no art. 1º, §1º, da LRF:

Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.

§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

O objetivo, portanto, da LRF é buscar o equilíbrio das contas públicas, prevendo, para tal desiderato, instrumentos de organização, de planejamento e de execução de projetos de políticas públicas que pressupõem a arrecadação (receitas) e os gastos (despesas).

Com isso, é nítido que o caráter é de Lei nacional aplicável indistintamente a todos os Entes Federativos. Nem poderia ser outro. Contudo, a fim de evitar argumentos dotados de, no mínimo, conteúdos espúrios, o art. 1º, §2º, da LRF afirmou o caráter de nacionalidade.

Da configuração legislativa acima, podemos extrair um princípio fundamental: o da responsabilidade.

O princípio da responsabilidade não deve ser compreendido apenas na etimologia da palavra responsabilidade a conotar o sentido de responsabilizar o agente público pelo descumprimento do fim de equilíbrio das contas públicas.

Ao contrário, o referido princípio tem por escopo alcançar o momento anterior à penalização, qual seja, a prática de condutas que importem sempre na tentativa de êxito do equilíbrio do déficit estatal.

Por isso, é que a LRF dispõe de variados instrumentos para o alcance de tal finalidade, como, por exemplo, a demonstração da avaliação do impacto de renúncia de receita ou de geração de despesas nas contas do orçamento, como se extrai dos arts. 14, 15 e 16 da citada Lei.

4. A análise do art. 11 da LRF: análise como mecanismo de responsabilidade na gestão pública e do imperativo lógico de federalismo cooperativo

Como anteriormente dito, o princípio da responsabilidade é aquele extraível pela mera sistematização dos dispositivos constantes da LRF.

Dentro desse cenário, imprescindível é a análise do art. 11 da LRF:

Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.

Parágrafo único. É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos.

Além das despesas, a previsão e a arrecadação de receitas são instrumentos verdadeiramente importantes para viabilizar que os governantes legitimamente eleitos busquem a plenitude dos interesses e das necessidades da sociedade.

O suprimento das mencionadas necessidades inexoravelmente gera despesas, principalmente de caráter continuado ou seja, que ultrapassa dois exercícios financeiros (art. 17 da LRF) , razão pela qual, mais do que nunca, se impõe a existência de previsão arrecadatória plena, sobretudo considerando que a arrecadação estatal está ligada fortemente à cobrança dos tributos, espécie de receita originária (arts. 9º e 11, §1º, da Lei nº 4.320, de 1.964).

A competência tributária possui, então, ligação intrínseca e umbilical com a busca do equilíbrio das contas públicas, escopo este visado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Assim, ao asseverar o caput, do art. 11, da LRF constituir requisito essencial da responsabilidade na gestão fiscal a instituição de todos os tributos da competência do Ente Federado respectivo, o objetivo do legislador não foi outro senão o de deferir ao governante a possibilidade de alcançar os reclamos da sociedade, de forma satisfatória.

O não exercício da competência tributária se revela como medida desastrosa para a busca propriamente de melhorias das condições sociais e na prestação de serviços públicos mais eficientes.

O alcance de sociedade mais igualitária e o fornecimento de serviços eficientes não dependem exclusivamente da arrecadação tributária. Não se está a dizer isso.

No entanto, a maior arrecadação tributária é medida, de fato, relevante para a ampliação da satisfação de necessidades outras que vão surgindo ao passar dos tempos.

Cabe rememorar que a Constituição da República de 1.988 impôs inúmeros objetivos a serem alcançados pela Federação Brasileira, principalmente a de promoção de sociedade mais justa, solidária e igualitária, na forma do art. 3º, inc. I, da Lei Magna.

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Para a consecução de tais finalidades, como qualquer particular, o Estado (lato sensu) necessita de dinheiro em caixa ou previsão de que terá determinada quantidade em caixa, seja pela exploração de bens próprios (receitas derivadas e de capital) como, por exemplo, com alugueis, arrendamentos e etc , seja pela efetiva arrecadação tributária.

Dessa maneira, colocar a competência tributária como se fosse poder puramente discricionário na mão dos Entes Federados (como verdadeira carta na manga contra sabe-se lá quem) é o mesmo que fechar os olhos e deixar no esquecimento um dos objetivos primordiais da República: a busca de sociedade mais justa e igualitária.

Para isto, relembre-se o Estado (lato sensu) deve deter capital e este estatisticamente provém, na grande maioria, de um único instrumento jurídico: o tributo.

Ser responsável com o equilíbrio das contas públicas e com a busca do referido objetivo fundamental da Federação brasileira é, sim, instituir todos os tributos de titularidade própria do Ente[4].

Nessa linha de pensamento, parece-nos que a vedação constante do parágrafo único, do art. 11, da LRF, ao proibir a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos, é constitucional.

Percebamos que o parágrafo único restringiu a proibição somente àquele Ente Federado que não institua todos os impostos, e não tributos.

A restrição tem um motivo: os impostos são as espécies tributárias que não possuem finalidade vinculada e podem ser criadas sem haver motivo específico, motivo pelo qual são os maiores instrumentos viabilizadores do equilíbrio nas contas públicas e da ampliação dos serviços públicos a serem prestados à população.

As demais espécies tributárias (contribuições de melhoria, contribuições de intervenção sobre o domínio econômico, contribuições sociais e empréstimos compulsórios) possuem destinação específica para determinada finalidade ou somente podem ser instituídos em razão da prestação de determinado serviço público ou exercício de poder de polícia.

Com efeito, o legislador, ao obstar a transferência voluntária de valores ao Ente Federado que não institua todos os impostos da competência que lhe é afeta, foi aquém do que o caput, do art. 11, da LRF exigia para a essencialidade da responsabilidade na gestão fiscal, já que este se refere aos tributos (gênero).

De mais a mais, cumpre destacar que a vedação é de transferência voluntária, cujo conceito está disciplinado no art. 25 da LRF:

Art. 25. Para efeito desta Lei Complementar, entende-se por transferência voluntária a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.

Pela leitura, denota-se que as transferências são voluntárias, porque são exercidas para a concretização do modelo federalismo cooperativo, modalidade esta extraída do art. 241 da Constituição da República.

O federalismo cooperativo pressupõe o auxílio dos Entes Federados para a consecução de finalidades públicas, mormente para a realização dos objetivos inscritos no art. 3º da Lei Magna.

Contudo, somente deve ocorrer o auxílio, por meio de transferência de capital de um Ente Federado para o outro, em situação excepcional cabalmente demonstrada pela insuficiência arrecadatória.

A transferência cega, a torto e a direito, de valores entre Entes Federados, sem haver a comprovação de insuficiência arrecadatória não desejada, vai contra a nacionalidade na gestão fiscal que imbuiu a edição da LRF.

Não é só a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios que deve ser responsável pelas contas, mas sim todos os Entes Federados, porquanto a economia macroeconomicamente visualizada é do Brasil (país), e não de determinados Entes.

Por isso, o auxílio financeiro entre eles (Entes da Federação) somente deve ocorrer quando houver demonstração de que não possui mais meios de prever e de arrecadar receitas para o suprimento das necessidades básicas da sociedade.

Como permitir que um Ente Federado, que tenha exercido plenamente a competência tributária, auxilie outro Ente Federativo que sequer teve o cuidado de instituir todos os impostos de titularidade dele?

Primeiro, por óbvio, como no mundo privado, deve-se esgotar todos os meios de prever e de arrecadar as receitas que estão ao próprio dispor para que depois possamos cogitar em solicitar auxílio de terceiro.

Não poderia ser diferente em relação aos Entes Federativos.

O Ente Federado deve primordialmente esgotar todas as formas de arrecadação de imposto, tributo essencialmente não vinculado e que independe de hipótese fática para a instituição, para assim receber voluntariamente de terceiro ajuda de capital.

Cabe ressaltar um ponto: a LRF não vedou a transferência de receitas obrigatórias imposta nos arts. 157 a 162 da Constituição da República de 1.988. Até mesmo porque, se assim o fizesse, padeceria de evidente inconstitucionalidade, sobretudo porque a repartição de receitas tributárias é estritamente vinculada à ideia de federalismo cooperativo.

A LRF apenas impôs vedação à transferência voluntária. Nada mais.

A leitura do art. 11, parágrafo único, da LRF deve ser vista como medida coercitiva indireta para que o Ente Federado exerça plenamente a competência tributária referente aos impostos.

Isto não desnatura o caráter tradicional da facultatividade da competência tributária, porquanto esta permanecerá com esta qualificação.

O problema prático que poderá se apresentar é apenas a impossibilidade de o Ente Federado se socorrer de apoio financeiro de outro Ente, pois, como já dito, nem mesmo tentou buscar a solução do desequilíbrio das contas públicas por meio próprio, qual seja, a instituição dos impostos próprios.

Sobre o tema, o Plenário do STF ao julgar a ADI 2238/DF[5] entendeu que a previsão do art. 11, §1º goza de constitucionalidade formal e material, pelos fundamentos aqui expostos.

Para o Ministro Relator, Alexandre De Moraes, esse dispositivo instiga (incentiva) que os entes locais (Estados, DF e Municípios) exerçam plenamente suas competências fiscais tributárias, sob pena de não receberem transferências voluntárias.

Tal previsão não conflita com a Constituição Federal. Na verdade, é congruente (compatível) com o princípio federativo, e desincentiva a dependência de transferências voluntárias. Não é saudável para a Federação que determinadas entidades federativas não exerçam suas competências constitucionais tributárias, aguardando compensações não obrigatórias da União.

5. Conclusão

Pelas razões acima, claramente há de se concluir que o art. 11, parágrafo único, da Lei Complementar nº 101, de 2.000, é medida coercitiva indireta constitucional para que o Ente Federado possa instituir plenamente os impostos que são de competência própria, a fim de alcançar o desejado equilíbrio do déficit público e a ampliação de meios financeiros para o suprimento das necessidades básicas da sociedade.

Sobre a autora
NATHALIA OLIVEIRA AMADO

Advogada. Especialista em Direito Público Especialista em Direito Processual Civil Especial em Direitos Humanos

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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