Há quem sustente que o direito penal do inimigo seria uma teoria iniciada com Edmund Mezger, apressadas conclusões, talvez, por suas vinculações com o nazismo. Outros, que seria com Jesus-Maria Silva Sanches, o qual, como se sabe, é o formulador da teoria das velocidades do direito penal, mas que, no entanto, sequer mencionou a terceira velocidade.
Como bem sentenciado por Luís Greco em uma palestra acerca da teoria do domínio do fato no concurso de pessoas[2], a internet serve entre outras coisas para se comprar livros, e aí se parar com uma prática jurídica perniciosa: a doutrina do ouvir dizer.
Muitos achismos da rede mundial de computadores à parte, BÜRGERSTRAFRECHT UND FEINDSTRAFRECHT, é uma obra escrita e publicada pelo jurista alemão Günther Jakobs (esse j se pronuncia como i), da Universidade de Bonn, e que foi traduzida para o espanhol por Manuel Cancio Meliá (Derecho Penal del Enemigo), em 2003, o qual inclusive é autor de um dos seus três capítulos, especificamente, o terceiro.
No entanto, até a publicação da referenciada obra é necessário entender os seus antecedentes históricos. Pois bem, o ponto de partida foi um artigo escrito em 1985 na Revista de Ciência Penal (N.97, p.753 e seguintes), mas que não teve tanta repercussão.
O tema volta à tona em 1999 quando Jakobs faz novas incursões a respeito, porém, o campo fértil de que precisava para disseminar sua teoria vem à tona em 11/09/2001 com o ataque terrorista às torres gêmeas em Nova Iorque, EUA.
Superadas essas considerações históricas, imprescindível estabelecer a inspiração filosófica de Jakobs para a construção de sua teoria, e assim, em breves linhas apresenta-se uma base filosófica, e, de antemão, afirma-se que, ao contrário do maciçamente propalado por aí, não se sustenta em Rousseau.
Basta ler a tradução de Manuel Cancio Meliá ou versões disponíveis em português, sobretudo o primeiro capítulo, para se chegar à conclusão de que Jean-Jacques Rousseau, assim como Johann Gottlieb Fitchte, até são citados algumas vezes como depuradores dos seus argumentos, mas isso em absoluto significa que a teoria em questão teria embasamento direto nas obras desses autores.
Basicamente, é em Immanuel Kant, que entendia que não se poderia considerar pessoa quem ameaça o tempo todo, e Thomas Hobbes, conhecido teórico da segurança, e que afirmava que a perda do status de cidadão só ocorreria nos crimes de alta traição, quando teorizava acerca dos crimes contra o Estado, é que Jakobs parece ter erigido os pilares da sua teoria.
Dentro do passo a passo proposto, chega-se aqui a apresentar, em suma, a construção da teoria, e nesse contexto, indissociável a menção de dois nomes, o do sociólogo Niklas Lümann e do filósofo Georg Hegel.
Lümann, por meio da teoria funcionalista sistêmica, estudou os sistemas sociais, buscando premissas da biologia, mormente lastreado nos estudos dos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, os quais trabalham o conceito de autopoieses[3] para explicar a autorreprodução das espécies.
Dentro dessa interdisciplinaridade, teoriza que a sociedade é complexa, e para diminuir essa complexidade criam-se sistemas. Ora, o Direito é uma estrutura sistematizada que orienta a sociedade, e as normas seriam uma generalização dessas expectativas.
Mas o que seria expectativa? Simplificadamente, é aquilo que se espera que aconteça, e por isso, uma pessoa deposita confiança em outra por meio da expectativa criada. E é o que o Direito faz, cria mecanismos para que a sociedade continue acreditando nessas expectativas.
É necessário pontuar, contudo, que existem duas categorias de expectativas, uma que está ao nível cognitivo, que se revela em situações naturais do dia a dia, e que, contra elas há uma inevitabilidade, ou seja, não há o que se fazer.
Outra espécie de expectativa é a normativa, e nesse caso, é dizer, é o comportamento que se espera que esteja de acordo com a norma, isto é, o papel de cada um como cidadão.
Apresentadas as duas formas de se compreender essas expectativas, qual seria a solução para o caso de haver uma ruptura dessas expectativas, em outros termos, uma frustração (defraudação)? Bem, vai depender de qual expectativa se refere.
Se for a expectativa cognitiva deve-se tentar mudar o comportamento, mas se for a expectativa normativa, simplesmente mantém-se a expectativa da norma, e para isso, aplica-se uma pena para a manutenção da expectativa da norma, é o que se denomina de expectativa contrafática.
Para a compressão dessa expectativa contrafática basta pensar na teoria da prevenção da pena, a qual, via de regra, pode ser uma prevenção geral (dirigida a todos indistintamente) e prevenção especial (em relação a um indivíduo particularizado). Em seguida, lançando-se mão da prevenção geral, contextualizar a prevenção geral em suas duas dimensões: positiva e negativa.
Em seguida, entendendo-se que a prevenção geral negativa funciona como uma espécie de coação psicológica, nos passos de Feurbach, resta estabelecer a prevenção geral positiva, que significa exatamente a reafirmação da norma, a sua validade, a confiança que todos precisam ter na norma para higidez no próprio sistema.
Adiante, em uma perspectiva prevalente da principal função do Direito Penal, que é a de proteger bens jurídicos, estruturando-se para tanto, um tipo penal incriminador com um preceito primário, que traz a descrição da conduta materializado o princípio da legalidade ou da reserva legal e do seu reforço o princípio intervenção mínima; e um preceito secundário em que se comina uma pena, contrapõe-se Jakobs.
Para Jakobs o bem jurídico não é representado como um objeto físico ou com uma existência concreta, mas sim como uma expectativa garantida.
Esse delineamento é buscado em Hegel, para quem o Estado é fundado em um conjunto de normas que representa a vontade geral. Assim, a prática de uma infração penal se afigura na contradição entre a vontade geral e a vontade individual.
Desse modo, com a prática de uma infração penal há uma negação do ordenamento jurídico. Ademais, a vontade individual negaria a vontade geral, e bem assim, a aplicação da pena é a negação da vontade individual para restabelecer a vontade geral. Logo, a pena é negação da negação.
A consequência dessa lógica de Jakobs é a confirmação do Direito, reafirmando-se a vigência da norma. Portanto, não é a causação de uma morte, por exemplo, que configura a lesão ao bem jurídico, mas a desobediência normativa contida no fato típico de homicídio.
O arremate do contraponto de que a função de proteção de bens jurídico teria falhas, residiria na tentativa branca e nos atos preparatórios, por exemplo, pois embora os bens jurídicos permaneçam incólumes, ainda assim, de acordo com suas formulações, houve a frustração de uma expectativa, ou seja, a defraudação dessa expectativa.
Com essas considerações, possível agora definir dogmaticamente, segundo Jakobs, a conduta circunscrita ao conceito analítico de infração penal: conduta é a provocação de um resultado evitável, violador do sistema, que frustra as expectativas normativas.
Vencidos os pontos em nível mais teóricos, apresentam-se a seguir algumas características da proposta de Jakobs que demonstram uma aparente dicotomia: inimigo x cidadão, pessoa x indivíduo, periculosidade x culpabilidade, medida de segurança x pena, direito penal do autor x direito penal do fato.
Seriam condicionantes, em tese, para gerar a qualificação de inimigo: a reincidência, a habitualidade, a delinquência profissional, bem como a integração em organizações delitivas estruturadas.
Cabe explicitar que não existem dois ordenamentos jurídicos, mas para esse inimigo, suprimem-se as garantias, exemplo, rebaixamento do devido processo legal, do contraditório, permitindo-se quebra de sigilos e a incomunicabilidade.
Ainda, há uma ampliação dos poderes da polícia, como a desnecessidade de autorização judicial para os atos de investigação. Há um retorno do protagonismo da confissão como o meio de prova, o que traz à tona a tortura como principal meio de obtenção de prova, sob o fundamento da proporcionalidade.
Nesse contexto, sempre vem à baila duas questões: o ato patriótico dos EUA e a teoria do cenário da bomba relógio, permeados por outros pontos polêmicos como a existência dos crimes de perigo, punição de atos preparatórios igual ao dos crimes consumados etc.
Por fim, é importante dizer que, ao contrário do que muitos críticos que só ouviram dizer alguma coisa sobre a teoria afirmam, o direito penal do inimigo nada tem a ver com disseminação de ideias nazistas ou coisa do gênero, por exemplo. Basta citar que Hitler, segundo Jakobs, deve ser tratado como inimigo.
E será que essa teoria poderia ser abrigada em nosso Direito? Sucintamente, há que se destacar o art. 1.º da CRFB que enumera os fundamentos da República Federativa do Brasil, o art. 5.º caput da CRFB explicita o princípio da isonomia, sem contar o art. 5.º III da CRFB que veda a tortura e tratamento desumano e degradante, sem contar o art. 5.º inciso LIV e LV da CRFB que consagra o devido processo legal, e bem assim os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Referências:
CANCIO MELIÁ, Manuel, JAKOBS, Gunther, Derecho penal del enemigo, Madrid, Civitas, 2003.