Pedido de Recuperação Judicial: Direito ou Obrigação?

29/10/2022 às 14:40

Resumo:

- A recuperação judicial é um instituto que visa preservar a empresa e evitar a falência, com base nos requisitos estabelecidos na Lei 11.101/2005.
- A legislação brasileira busca garantir a função social da empresa, priorizando a manutenção da atividade empresarial e a proteção dos empregos.
- Alterações recentes, como a introdução do DIP-financing pela Lei 14.112/2020, demonstram a evolução do direito falimentar brasileiro para possibilitar a recuperação e geração de rendimentos pelas empresas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

  1. CONCEITUAÇÃO E NATUREZA
  2. ORIGENS E EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL
    1. Chapter 11
    2. Insolvência Alemã- Schutzschirmverfahren
    3. Plano Especial de Revitalização (PER) em Portugal
  3. A EMPRESA COMO ENTENDEMOS HOJE
  4. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
    1. Função Social da Empresa
    2. Preservação da Empresa
    3. Preservação da Empresa: Art. 69-A e DIP-financing
  5. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO É DIREITO OU OBRIGAÇÃO?
  6. PROPOSTA DO TRABALHO
  7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
  8. REFERÊNCIAS

INTRODUÇÃO

A lei 11.101/2005 trouxe grandes alterações no tratamento da Recuperação Judicial, nesse âmbito, analisaremos aqui se de fato o requerimento da RJ trata-se de ato discricionário por parte do individuo ou se seria na verdade uma obrigação. Questionar acerca de tal disposição consiste em problematizar o papel da função social da empresa e sua preservação, ambos obietivos relevantes trazidos no bojo da Lei. Como forma de estruturar a análise, faremos inicialmente uma conceituação seguida da análise da origem do instituto, sendo fundamental, dessa maneira, discorrer sobre as experiências internacionais, sobretudo Estados Unidos. Escolhemos também trazer aqui algumas disposições de Portugal e Alemanha, devido às inovações legislativas nos citados países trazerem particularidades interessantes, além de que os marcos temporais que regulam a recuperação não se distanciam tanto do brasileiro.

Concluída a análise internacional, faremos uma breve exposição sobre o papel da empresa no mundo contemporâneo, para então entrar em traços mais específicos das disposições nacionais. Fazemos a ressalva aqui que não é o objetivo da pesquisa explanar o procedimento de Recuperação Judicial brasileiro, de forma que só tocaremos nos pontos sensíveis para promover a discussão do tema proposto. Finalizo então o trabalho com minhas conclusões, além de uma proposta com base na exposição realizada.

  1. CONCEITUAÇÃO E NATUREZA

Vamos iniciar o trabalho com uma breve conceituação de Falência, haja vista que é elemento importante para então compreender o que é a Recuperação Judicial. Ao longo da história, a falência passou por um estágio em que era considerada um delito, sendo esse punido de forma severa. A própria etimologia da palavra revela certa natureza pejorativa, do latim fallere, que significa falsear. Bancarotta era também uma expressão utilizada pelos franceses para se referir ao costume da quebra dos bancos em que os devedores exibiam sua mercadoria. Felizmente, essse caráter negativo não está mais presente no espírito da legislação, sem querer fazer nenhuma apologia ao Direito Natural.

A falência para Elisabete Vido [1]é categoria jurídica dotada de caráter procedimental (adjetivo) típica de um processo de execução que tem por finalidade liquidar o passivo (dívidas) a partir da venda do patrimônio da empresa, respeitando-se a par conditio creditorium, além de um caráter material (substantivo), já que gera efeitos na situação do falido e dos bens. Amador Paes de Almeida[2], assim como Vido, não se limita à execução somente como consequência imediata da falência, mas leva em consideração as repercussões do instituto e os princípios, direitos e deveres que vão reger as situações dos indivíduos afetados por ela, isto é, credores e devedor.

Acredito que a forma mais apropriada, com o respeito às diferentes conceituações doutrinárias, para abarcar a natureza complexa do instituto, seja definir como um procedimento executivo coletivo de forma a disciplinar os bens, interesses dos credores e possibilitar o retorno do empreendedor para o mercado de trabalho. A primeira parte da conceituação engloba a noção processual e a segunda parte o aspecto material. A finalidade do instituto irá se voltar para suprir o interesse público de retirar um empreendimento inviável do mercado sem prejudicar os diretamente envolvidos. Essa finalidade atende ao aspecto administrativo do instituto, sendo portanto a conceituação aqui sustentada uma tríade: adjetiva, material e administrativa.

A recuperação seria, dessa forma, instituto que visa preservar toda a cadeia produtiva relacionada à empresa desde que presentes os requisitos estabelecidos no Art. 47 da Lei n. 11.101/2005, ou seja, uma forma para evitar a falência. Almeida cita a dificuldade de alocar a natureza jurídica da Recuperação, tendo em vista sua multiplicidade. A Lei n. 11.101/05 estabeleceu, de acordo com o autor, um vínculo quase que contratual para tutelar as relações pessoais. De fato, quando são analisados os Art. 56 e 58, pode-se perceber que todas as hipóteses de concessão de recuperação pelo juiz estão condicionadas em algum nível a aprovação do plano pelos credores. Todavia, não se poderia segundo o doutrinador, estabelecer uma natureza predominante sobre as outras, pois apesar de constituir um processo de execução coletivo, existem os direitos e deveres do falido, direitos dos credores, entre outros. O autor, além disso, não só ressalta a constituição de uma nova situação jurídica, o que seria feito pela sentença, porém os pressupostos que levam à concessão. Dessa maneira, não só a parte procedimental, que talvez seja a mais óbvia de início, mas também a substantiva influi na natureza jurídica do instituto.

Santa Cruz [3]não trata a respeito da natureza jurídica em sua obra, apenas conceitua como forma de preservar a empresa conciliada com o cumprimento de sua função social, e isso apenas quando os devedores se mostrarem em condições de se recuperar. O autor em nenhum momento destaca aspecto processual, levando a crer que preza pelo viés material-administrativo atrelado apenas à preservação da empresa e das relações dependentes de sua atuação. Fran Martins [4]destaca o aspecto meramente adjetivo ao estabelecer que é um procedimento que visa demonstrar a viabilidade do negócio, existindo uma série de medidas diversas de alcançar tal objetivo.

Mamede[5] não entra em uma classificação quanto a natureza jurídica, mas na análise de sua possibilidade estabelece se tratar de instituto, medida e procedimento que se defere apenas em favor de empresas. Percebe-se que o autor tanto considera o aspecto processual quanto os material. Em sua explanação, é mencionada, como outros acima já citados fizeram, a importância da fonte produtora para as relações de trabalho e interesse dos credores. Ou seja, o doutrinador segue a linha da maioria aqui já citada ao considerar as repercussões da recuperação como aspecto substantivo, além da linha procedimental mais aparente. A recuperação como forma de preservar o empreendimento atende ao interesse público, possuindo logo, traço administrativo.

No que tange a recuperação judicial, a conceituação aqui proposta é de que se trata de um procedimento que analisa a viabilidade de uma empresa se recuperar, desde que o plano estipulado para tal recuperação seja legitimado pelos credores. E tal instituto possui a finalidade de atender o interesse público de preservar a fonte produtiva, obedecer à função social e manter intactas as relações de trabalho. A primeira parte da definição diz respeito ao aspecto processual, enquanto que a segunda ao aspecto substantivo. Finalmente, a finalidade supre o terceiro braço da tríade que utilizo para estruturar tanto a falência anteriomente como a recuperação, possuindo esse terceiro braço característica marcadamente administrativa.

  1. ORIGENS E EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Trataremos agora do funcionamento da recuperação judicial em outros países, de forma a compreender suas finalidades e também as similaridades com o direito alienígena. As nações selecionadas foram: Estados Unidos, Alemanha e Portugal. A primeira escolha é óbvia tendo em vista que o legislador brasileiro bebeu bastante da fonte norte-americana na elaboração da Lei 11.101/2005. A segunda escolha se deu em razão da proximidade de tratamento e também temporal. Por último, abordamos Portugal pela similaridade linguística, o que facilita o estudo devido a amplitude de materiais encontrados; e também semelhança no que tange às disposições,

  • CHAPTER 11

No século XIX, ocorreu nos EUA uma grande expansão da construção de ferrovias. Eventualmente, muitas companhias prosperaram, e outras tantas entraram em maus lençóis. As companhias que enfrentaram problemas econômicos ainda eram, contudo, negócios viáveis, haja vista que já haviam realizado altos investimentos em equipamentos e instalação. Percebeu-se, assim, que sopesando entre alienação dos bens e recuperar a empresa, aquela opção era menos atrativa do que permitir que esses empreendimentos se reerguessem e pudessem continuar a atuar no mercado. Além disso, a venda isolada dos ativos trazia um ganho financeiro ínfimo.

Dessa forma, as companhias não iriam ser fechadas e os credores tornar-se-iam os novos acionistas. Foram várias as etapas de evolução legislativa para a conformação desse instrumento como o conhecemos hoje. Inicialmente foi criado o equity receivership, que consistia em nada mais do que uma negociação dos credores sobre o futuro da companhia acompanhada da nomeação de um administrador (receiver) para cuidar da reestruturação, valendo acrescentar que a nomeação de receiver imprescindia do consenso unânime entre credores. Posteriormente, foi criada a Section 77b como forma de extensão do instituto a outras empresas não pertencente ao ramo de ferrovias. Por último, o Chandler Act (1938) instituiu o Chapter XI, marcado pela não necessidade de participação de um trustee ou da Securities Exchange Comission para defender os interesses dos credores. O Chandler Act ficou em vigor durante 40 anos até a edição do atual Bankruptcy US Code.

Deve-se destacar que esse instrumento chamado reorganization (Chapter 11) nem sempre é viável, haja vista as mudanças que ocorreram no varejo nos últimos anos. Logo, para ser deferida a reestruturação, a continuidade da empresa tem que fazer sentido no contexto de sua atuação econômica, além de obedecer à legislação aplicável. Isso porque de nada adianta recuperar uma empresa cujo produto não desperta mais interesse nos clientes. Pode se citar como exemplo o caso de livrarias que fecham em decorrência do crescimento do comércio online de e-books em plataformas como Amazon. No Brasil, a própria Livraria Saraiva, outrora gigante na venda de livros, está agonizando em Recuperação Judicial a um bom tempo. Nos Estados Unidos, o Chapter 11 pode ser utilizado nem com a intenção de recuperar a empresa, mas de apenas ter controle sobre o processo de alienação dos bens; nesse sentido é muito comum que, no final de um Chapter 11, o que se tenha é a venda da propriedade intelectual para uma concorrente. Vale a menção a alguns casos de reorganization, tal como foi a situação da General Motors, sendo essa extremamente bem sucedida; além do pedido de Chapter 11 da Lehman Brothers Inc., caso emblemático da crise econômica que assolou o país em 2009.

O processo de reorganization americano tem início com o oferecimento de petição que pode ser voluntária ou não. Voluntária, quando oferecida pelo próprio devedor; involuntária, quando proposta por credores que obedecem a uma série de requisitos estipulados em lei. Ademais, o devedor deverá informar a corte, a menos que decidido em sentido contrário, sua contabilidade, isto é, dados da sua receita, despesas, obrigações contratuais, entre outros. Existem na lei estado-unidense algumas vedações acerca de quem pode requerer a recuperação, mas este nível de detalhamento extrapola o objetivo do presente trabalho.

Uma vez oferecido o requerimento voluntário ou involuntário, o devedor assume a figura de devedor em posse (debitor in posesssion), já que ele continua no controle direto dos bens, agora pertencentes ao estate (property of estate) durante a reorganization, sem a necessidade de indicação de um administrador (trustee). O devedor permanecerá na função indicada até a aprovação do seu plano de recuperação; indeferimento do pedido/conversão em liquidação (Chapter 7); ou indicação de um administrador. O detalhe que chama atenção, como foi mencionado quando se tratou do Chandler Act, é o fato de que na maioria dos casos concretos a regra é a não indicação de um trustee. No espaço de tempo compreendido entre a distribuição do pedido e a aprovação do plano, forma-se uma massa de bens (estate) que responde pelas dívidas incorridas nesse ínterim, devendo essas dívidas serem sanadas como condição para aprovação do plano. Tal modelo difere bastante do brasileiro, tendo em vista que aqui a recuperação judicial é prolongada muito após essa aprovação.

Apesar da indicação de um trustee não ser a regra, teremos a figura do US trustee, responsável por fiscalizar a atuação do DIP, checar sua contabilidade, além de garantir que o devedor irá realizar o pagamento de uma taxa trimestral. Outro ator importante nesse processo é o Comitê de Credores que também analisa a atuação do devedor, e pode participar na formulação do plano de recuperação depois de passado o período de 120 dias de exclusividade do devedor. Os credores aqui são separados em grupos dependendo da similaridade de suas queixas (claims), as quais terão que ser individualizadas quando da apresentação do plano.

Importante também é o chamado automatic stay, período durante o qual qualquer ação por parte de credor para executar uma dívida anterior ao pedido de recuperação judicial é suspensa, de forma dar a empresa um tempo para respirar e tentar solucionar as respectivas controvérsias por meio de negociação.

Existe debate doutrinário acerca de qual seria o objetivo do processo de Recuperação Judicial. Quando do surgimento do instrumento tratado, estudiosos debruçaram-se sobre o dilema entre a suposta instrumentalidade da recuperação, como forma de maximizar o valor da empresa para pagamento efetivo dos credores, e a proteção de diversos outros interesses, tais como a continuidade da empresa, relações de trabalho, além, de claro, os credores.

Para os adeptos da primeira corrente, é essencial a gestão da empresa de forma adequada para garantir aos credores pelo menos o que eles receberiam caso fosse realizada a liquidação. Logo, a recuperação em si não seria o objetivo final. Já para os defensores da segunda corrente, seria preciso sopesar uma pluralidade de elementos O Chapter 11 parece ter se aproximado mais da segunda corrente, muito embora a legislação tenha um caráter bastante contábil.

  • INSOLVÊNCIA ALEMÃ - SCHUTZSCHIRMVERFAHREN

Longe de querer esgotar todo o tratamento internacional do instituto aqui trabalhado, fazemos a escolha de observar a legislação germânica, pois tanto a recuperação foi instituída em 2012, sendo uma alteração relativamente recente e não tão distante do marco temporal da lei brasileira em 2005; assim como existem inúmeras similaridades com o que o nosso legislador decidiu dispor no ordenamento. A recuperação (Schutzschirmverfahren) está localizada na Seção 270d do Código de Insolvência Alemão (Insolvenzordnung). Ponto interessante é que a recuperação germânica pode ser utilizada por: a) empresas que estão endividadas em demasia; b) por empresas que estão na beira de não poderem mais pagar suas dívidas, ou seja, aquelas em que é previsível que não poderão cumprir as suas obrigações. Uma vez que a empresa não pode mais arcar com seus débitos, não se aplica mais o instituto tratado, com a ressalva de a situação de insolvência acontecer no curso do processo.

O procedimento se inicia com o requerimento pelo devedor de Schutzschirmverfahren. Para requerer a recuperação deve, porém, juntar a análise de um profissional que avalie as perspectivas da empresa se reerguer economicamente. A corte geralmente não conduz as próprias investigações quanto a viabilidade econômica, se de fato a análise realizada tiver legitimidade por ter sido realizada por profissional reconhecidamente qualificado. A partir daí, o devedor terá um prazo, de no máximo 3 meses, para apresentar um plano de recuperação judicial, sendo que outras providências ainda podem ser tomadas pela corte no sentido de proteger a recuperanda da execução por parte de credores.

Interessante princípio existente no Direito Alemão diz respeito à necessidade de que o plano prove ser um ônus menor para os credores do que simplesmente optar pela liquidação. Ademais, ponto de destaque da nova lei alemã é o fato de permitir que o controle da empresa permaneça com o empresário, tendo em vista que administradores podem cobras taxas altas pelo seu trabalho, além de apresentar interesses conflitantes com alguns credores, muito embora seja obrigatório a presença de um examinador (Sachwalter).

O plano terá então que ser aprovado por um comitê de credores, os quais serão divididos em grupos. A aprovação de cada grupo é necessária, muito embora credores discordantes possam ser vencidos graças à regra do cram-down uma vez provado que o plano é no melhor interesse dos credores. Outrossim, para adquirir legitimidade terá que ser o referido instituto aprovado pela Corte. Bastante similar, portanto, ao modelo norte-americano.

  • PLANO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO (PER) EM PORTUGAL

Coincidentemente, o país tratado anteriormente realizou modificações no que tange à RJ em 2012, o mesmo caso se repete para Portugal. O Plano Especial de Revitalização (PER) foi introduzido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), trazendo uma alternativa autônoma e anterior à insolvência para recuperar extrajudicialmente as empresas.

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No Direito Português, a insolvência abrange diversas normas, haja vista que envolve não só o CIRE, mas também o Código Penal, Código de Processo Penal, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais, Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, Código de Registro Comercial, etc. O CIRE surgiu para substituir o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, dando a possibilidade de recuperar a empresa em alternativa à insolvência, processo judicial mais grave.

O instituto pode ser encontrado nos Art. 17-A a 17 I da CIRE, possibilitando que o devedor que está em situação de crise ou na iminência da insolvência possa reerguer seu negócio, desde que possua condições para realizar tal feito. Perceba aqui a similaridade casuística na admissibilidade da recuperação para o ordenamento germânico. A hipótese de iminência é a situação em que já se tem noção de que em breve não poderá mais o devedor arcar com suas obrigações. As dívidas são então vincendas, caso hajam dívidas vencidas, tratar-se-á de processo de insolvência.

Artigo 17.º-A 1. O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

O processo pode se dar tanto por um acordo judicial como extrajudicial, focaremos aqui, contudo, no judicial. Segundo a CIRE, o devedor é o sujeito legítimo para declarar que apresenta as condições necessárias para a recuperação, devendo ser feito de forma escrita, além de ser subscrita por contabilista certificado ou revisor oficial de contas. Tendo em vista a celeridade do processo, uma vez que a própria lei o caracteriza como urgente no Art. 17.º-A 3, a veracidade das informações será aferida no curso do procedimento. É importante destacar, contudo, a ausência de sanções previstas pelo legislador nos casos em que a presença das condições alegadas pelo devedor se mostrar incorreta.

De acordo com o 17.º-C 4, o juiz depois de receber o requerimento irá nomear um administrador judicial provisório, ficando, dessa forma, proibido o devedor de praticar atos de relevo sem autorização do administrador. Importante acrescentar também que uma vez que o administrador for nomeado, é impossível instaurar qualquer ação de cobrança, sendo uma espécie de stay period; tais ações serão extintas quando da aprovação do plano. Já quanto as ações que estavam em curso quando do início do processo, serão essas suspensas.

Para finalizar o processo, temos então a aprovação e homologação do plano, por unanimidade ou maioria. Os créditos serão classificados hierarquicamente, diferenciando-se sobretudo aqueles credores que contribuíram para a continuidade das atividades pelo devedor. Os credores que financiaram o devedor no decurso do processo terão preferência creditória, privilegiada inclusive em relação aos trabalhadores; espécie de incentivo ao financiamento que será abordado em tópico posterior no trabalho com o enfoque no Brasil.

Vale dizer também que os credores podem simplesmente não concordar com o plano, ou o devedor pode pôr fim aos acordos, casos em que o administrador ouvirá credores e devedores, e elaborará um relatório comunicando a situação; fazendo com que o PER seja convertido em Processo de Insolvência. Uma outra forma de finalizar o processo seria a homologação de um acordo extrajudicial.

  1. A EMPRESA COMO ENTENDEMOS HOJE

Konder Comparado[6] elabora que a evolução das grandes empresas passou por três passos, dentre os quais apenas o primeiro está superado: a) estrutura unitária com divisão interna em departamentos; b) grupo societário; c) rede empresarial. No século XX, a globalização da economia popularizou os grupos multinacionais, formados por uma sociedade controladora e suas controladas. Nesses casos, a empresa controladora geralmente se localiza em um país desenvolvido, o qual concentra as atividades criativas e de controle, enquanto que o trabalho manual é distribuído pelo globo, em uma espécie de pulverização da cadeia produtiva, conforme os incentivos existentes: leis ambientais favoráveis, matérias-primas, mão-de-obra barata, entre outros.

Os grupos empresariais cresceram de forma desenfreada com o passar dos anos, e aqui destacamos que das 100 maiores entidades globais, 69 delas são empresas, de forma que a autonomia privada precisa ter seu papel repensado, tendo em vista as concepções políticas e estruturais das nações.

Figura 1: 100 maiores entidades, posição 1 a 33

Fonte: Global Justice

Figura 2: 100 maiores economias, posição 34 a 71

Fonte: Global Justice

Figura 3: 100 maiores economias, posição 71 a 100

Fonte: Global Justice

  1. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Realizada uma análise do aspecto histórico da lei americana de falências, grande influenciadora do tratamento brasileiro para o tema da Recuperação; bem como uma breve síntese dos tratamentos germânico e lusitano, cabe agora analisar o que legislador nacional trouxe acerca do assunto. Por motivos de recorte da temática proposta no trabalho, não irei descrever os pormenores do processo de recuperação nacional, que está suficientemente explicado na Lei 11.101/2005. Focarei portanto nos aspectos selecionados para que a reflexão a que me proponho como tema seja colocada em discussão.

  • FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

No início do século XX, floresceu o ambiente propício para a tentativa de unir a funcionalidade dos interesses privados com os valores sociais. Não era mais viável que o liberalismo desenfreado pudesse barrar os interesses coletivos em uma perspectiva visivelmente egoísta. Foi na Constituição de Weimar em 1919 que foram submetidos pela primeira vez os usos da propriedade à coletividade. Na Carta Italiana de 1947, Art. 42, segunda alínea, existe também uma restrição ao uso dos bens, cabendo ao legislador definir os limites de tais restrições.

Na década de 1960, ocorreram pressões no sentido de que as produtoras de armamento, no contexto da Guerra do Vietnã, respeitassem o meio ambiente e o homem. Enquanto isso, na década de 1970, as empresas publicavam seus indicadores sociais. No Brasil de 1990, a adoção do neoliberalismo resultou em inúmeros problemas sociais, fazendo com que a iniciativa privada fosse convocada a atuar junto ao Estado para combater tal cenário. Nesse ínterim, surgem as transnacionais como decorrência direta da globalização, chamando atenção para a importância dessa atividade econômica no meio social, haja vista que muitas delas detinham mais poderio econômico que muitos estados, conforme já abordamos anteriormente.

Ao abordar a aptidão conferida pelo ordenamento jurídico brasileiro para as sociedades empresariais titularizarem direitos e contraírem obrigações, Pompeu e Santiago fazem uma interessante reflexão:

Na exposição dessa titularidade, quer-se ressaltar que as empresas possuem capacidade para responder por seus atos, e estes devem dotar-se de prerrogativas principiológicas que determinam um agir ético e em conformidade com o ordenamento pátrio.

Quando o Estado atribuiu personalidade jurídica às empresas, além de direitos, ele outorgou deveres inerentes a sua atuação no seio social, e tais deveres expressam-se por meio do instituto da função social empresarial (POMPEU e SANTIAGO, 2019)

A lei de Sociedade por Ações dispunha em seu Art. 154 que atuação do administrador iria ocorrer no sentido de realizar a função social. Além disso, conforme está positivado no Art. 47 da Lei 11.101/2005, um dos objetivos da recuperação judicial é a garantia do cumprimento da função social da empresa. É inegável que, com a globalização e interferência das relações mercantis no próprio funcionamento do Estado, as empresas desempenham importante papel no cotidiano das pessoas pela movimento da economia. Conforme entendeu a Ministra Nancy Andrighi no Conflito de Competência 118.183:

Não se pode perder de vista o objetivo maior, de preservação da empresa, que orientou a introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, da regra do artigo 60, parágrafo único, da Lei 11.101/05. O que buscou o legislador, com tal regra, foi implementar a ideia de que a flexibilização de algumas garantias de determinados credores, conquanto possa implicar aparente perda individual, numa análise imediata e de curto prazo, pode significar ganhos sociais mais efetivos, numa análise econômica mais ampla, à medida que a manutenção do empreendimento pode implicar significativa manutenção de empregos, geração de novos postos de trabalho, movimentação da economia, manutenção da saúde financeira de fornecedores, entre inúmeros outros ganhos. (CC n. 118.183/MG julgado em 9/11/2011)

Dessa maneira, muito além de perseguir o lucro, qualquer empreendimento econômico deve em ter vista o seu impacto direto no meio social. Deve ser destacado que não encontramos o princípio tratado expressamente na Constituição, mas podemos extrai-lo da leitura da função social da propriedade. A grande problemática existente é, portanto, a positivação do princípio, mas sem uma diretriz clara de como uma instituição que primariamente busca o lucro pode colaborar para o desenvolvimento nacional.

É imperioso reconhecer, por conseguinte, a incongruência em se falar em uma função social das empresas. No regime capitalista, o que se espera é exige delas é, apenas, a eficiência lucrativa, admitindo-se que, em busca do lucro, o sistema empresarial como um todo exerça a tarefa necessária de produzir ou distribuir bens e de prestar serviços no espaço de um mercado concorrencial. Mas é uma perigosa ilusão imaginar-se que, no desempenho dessa atividade econômica, o sistema empresarial, livre de todo o controle dos Poderes Públicos, suprirá naturalmente as carências sociais e evitará os abusos; em suma, promoverá a justiça social (COMPARADO[7], 1996)

Comparado fala da inviabilidade de se esperar tal comportamento por parte do empresário, e com o devido respeito ao estudioso, discordamos. Não se pode defender que o mercado faça digestão de um Estado soberano por uma lógica simplista de atuação do sujeito particular condicionada à consecução ou não do seu objetivo individual, fosse assim nem necessidade de Estado haveria. Logo, não devemos nos apoiar na indeterminação da função social da empresa para desconsiderar sua aplicação, e sim aproveitar de sua abstração para análise de cada caso concreto, afinal sabemos que mesmo com um esforço hercúleo seria impossível contemplar todas as hipóteses em que há colisão do particular com coletivo.

A empresa é, assim, uma instituição social, conforme fica claro a partir do caput do Art. 170 da Constituição: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (...)".

A função social da empresa constitui o poder-dever de o empresário e os administradores da empresa harmonizarem as atividades da empresa, segundo o interesse da sociedade, mediante a obediência de determinados deveres, positivos e negativos (FILHO, 2003, p. 40)

  • PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

Não existe mais a noção binomial típica dos primórdios da desenvolvimento da ideia de falência, ou seja, as crises econômico-financeiras são vistas como acontecimentos normais dentro da atividade empresarial. Sacramone[8] em sua obra comenta sobre como até o Decreto-Lei 7.661/45, a legislação falimentar focava principalmente na liquidação. Em certas horas havia uma maior participação do credor, em outras do devedor, como se fosse possível balancear essas posições aparentemente antagônicas. No regime anterior, existia uma concordata preventiva, que era requerida pelo devedor de boa-fé até a citação para a execução falimentar; e uma concordata suspensiva, que permitia o comerciante recuperar seu negócio mesmo depois da decretação da falência, mas antes da liquidação dos ativos.

Não surpreende o fato de o Decreto-Lei 7.661/45 ter sido tão ineficiente em certo nível, um vez que as concordatas possuíam aspecto de favor legal, além de que os credores, sujeitos diretamente interessados no processo, só podiam opor embargos com base em: a) inexatidão de informações; b) fraudes ou má-fé; c) prejuízo maior com a concordata comparada a falência; d) impossibilidade de ser cumprida a concordata. Logo, a concordata desempenhava papel de postergar a inevitável falência. Até mesmo no nome o instituto apresentava controvérsia, pois de acordo nada tinha. O mestre Rubens Requião[9], ao abordar a crise do direito falimentar brasileiro, criticava:

O erro fundamental do sistema da concordata preventiva, e mesmo da concordata suspensiva, em nossa Lei de Falências, é permitir que sejam atendidos, apenas, alguns pressupostos formais. Não se cogita de saber as verdadeiras causas da insolvência do devedor, não se cogita sequer de indagar se ele tem um plano viável para a reorganização de sua empresa; não se indaga se ele foi inepto ou incompetente. Atendidos os pressupostos legais e formais, os juízes geralmente complacentes estão dispostos a fazer vista grossa sobre os desmandos econômicos e financeiros evidentes, para conceder logo a concordata. A falência constitui uma solução tão ruinosa para os credores, que nas mais das vezes esses optam pela esperança, raramente realizada, de receber migalhas de seu crédito.

Com a Lei 11.101/2005, Mamede[10] citando Tiago Fantini diz que os objetivos da recuperação foram estabelecidos no Art. 47 da Lei 11.101/2005 em ordem crescente de grandeza e prioridade, estando em primeira lugar a recuperação da empresa, seguida da proteção dos empregos e interesses dos credores. O autor ainda estatui que os fins perseguidos pelo empresário não devem ser confundidos com os interesses da empresa, de forma que o que a lei se preocupa em realizar é a reabilitação da atividade e não do indivíduo que a exercita. Sendo assim, a empresa pode muito bem continuar sem o empresário em questão. E nesse contexto, faz bem destacar o que se entende por empresa: circulação de bens e serviços em estrutura organizada para a obtenção de resultados lucrativos (Art. 966, Código Civil).

É fundamental destacar que a preservação da empresa não pode ser utilizada como forma de burlar a análise da viabilidade econômica ou o que foi estabelecido em lei. A função social, tratada em tópico anterior, só será cumprida se houver a geração de empregos e circulação de bens e/ou prestação de serviços. Ademais, os requisitos presentes na lei são imprescindíveis, uma vez que a legalidade é o escudo do mais fraco entre os interessados na recuperação, o credor.

O tema tratado aqui possui relevância especial no Brasil, pois a manutenção de corpos que nada acrescentam em economias periféricas como a nossa provocam agravamento da criminalidade e consequências sociais generalizadas de acordo com Fran Martins[11]. Nesse âmbito, estatísticas mostram que o índice de empresas que entram em Recuperação Judicial e de fato conseguem se reerguer ainda é, infelizmente, muito baixo. Nesse sentido, é muito bem vinda a iniciativa trazida pela Lei 14.112/2020 que alterou a Lei 11.101/2005 com a introdução do DIP-financing.

  • PRESERVAÇÃO DA EMPRESA: ART. 69-A e DIP-financing

As alterações trazidas pela Lei 14.112/2020 surgem para efetivar o financiamento das empresas em crise na Recuperação Judicial. O regramento existente até então não trazia segurança jurídica aos investidores em um contexto especialmente delicado, haja vista que se fosse convolada a Recuperação em Falência, os créditos dos financiadores iriam ser classificados como extraconcursais, existindo porém outros preferenciais com relação a ele. Ademais, os créditos obtidos no curso do processo recuperacional não apresentavam nenhuma vantagem. Deve-se acrescentar também que, de acordo com a Resolução 2.682/1999, a operação é classificada como rating H, o mais alto nível de risco junto ao BACEN, exigindo-se o provisionamento de 100% do crédito solicitado. Tal resolução impõe às instituições financeiras a necessidade de categorizar em nível crescente as operações de concessão de crédito, baseando-se no risco de inadimplemento.

Com a novel legislação, a garantia agora adquire estabilidade depois da consumação do negócio ou recebimento dos recursos por parte do devedor, desde que o financiador esteja de boa-fé e a outorga tenha sido autorizada pelo juiz ou tenha sido prevista no plano de recuperação. A garantia fiduciária, que já possuía aspecto extraconcursal por sua própria natureza (Art. 84), passa a ter tratamento preferencial se realizada mediante o financiamento aqui tratado. Outrossim, como a autorização do DIP depende da aprovação do Comitê de Credores e Juiz, a proposta apresentada muito provavelmente será mais detalhada em nível suficiente para que se justifique os benefícios do financiamento.

Nesse ponto, muitas controvérsias foram levantadas antes das alterações da Lei 14.112/2020 sobre o instituto no Brasil; falava-se em hipóteses curiosas de simulação de transferência de bens como ponto de oposição ao DIP. Assim, a submissão do referido instituto a aprovação possa talvez quebrar, aos poucos, os preconceitos que revelam a insipiência do pensamento acerca da Recuperação. Cabe chamar atenção também para a manutenção das garantias para o credor de boa-fé mesmo com a alteração em nível recursal da decisão que autorizou o financiamento; e a possibilidade de até mesmo o devedor garantir o financiamento com alienação ou oneração de bens.

Algumas críticas são feitas quanto à adoção do termo DIP-financing em nosso país, já que não possuímos a figura temporária do devedor em posse como ocorre nos EUA. Longe de querer colocar um ponto final em tais argumentos, esses se mostram não relevantes para a efetividade do instituto, com o devido respeito a opiniões contrárias, e, por essa razão, não dedicarei muito espaço para tais críticas no corpo da pesquisa.

Percebe-se, assim, que a legislação brasileira caminha para cada vez permitir que as empresas possam se recuperar e gerar rendimentos. Tais mudanças vão ao encontro da tendência mundial, conforme foi visto na primeira parte do trabalho. É essencial mais do que nunca abandonar o sentimento de desconfiança como forma de estimular o empresariado nacional, haja vista que o corpo social só tem a ganhar. E o DIP - financing devidamente tratado pela Lei 14.112/2020 é evidência clara dessa mudança de pensamento.

  1. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO É DIREITO OU OBRIGAÇÃO ?

A lei brasileira atribui ao próprio empresário/sociedade empresária a legitimidade para requerer o pedido de Recuperação Judicial e uma série de outros indivíduos. Uma vez analisada toda a origem do instituto, bem como suas repercussões no âmbito do direito alienígena, vamos propor uma reflexão acerca da natureza de direito ou obrigação do dito requerimento. Cabe acrescentar, porém, que o termo obrigação não é aqui utilizado como sinônimo de realizar uma conduta (fazer, não fazer, dar, tolerar) em decorrência de prestação pecuniária, conforme estudamos no Direito Civil, mas meramente como ato desprovido de discricionaridade por parte do agente.

Ponto inicial para essa discussão é estabelecer um cenário em que ela será de fato prática. Possuindo o empresário condições de se recuperar, é aí que vamos questionar se sua opção de simplesmente encerrar a empresa por meio da falência ou de propor um plano de recuperação constitui de fato uma escolha.

A atividade empresarial é sem dúvidas de risco, além de imprevisível, dessa forma, ao adentrar no mercado, deve o sujeito, em meu pensamento, estar ciente dos impactos globais que suas ações terão. Logo, não faz sentido defender que havendo indicativos suficientes de recuperabilidade nós possamos admitir que o empresário poderá optar simplesmente pela liquidação. Na sistemática presente, seria um direito pela literalidade, haja vista que adentra o âmbito de faculdade do indivíduo (devedor, seus herdeiros, cônjuge sobrevivente, inventariante ou sócio remanescente) , conforme se percebe pela letra do Art. 48, caput e §1. Porém, se confrontar-mos tal dispositivo com o conjunto de princípios e disposições que o cercam, chegaremos à conclusão de que no âmbito do dever ser, a situação se apresenta de outra forma.

Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: (...) § 1º A recuperação judicial também poderá ser requerida pelo cônjuge sobrevivente, herdeiros do devedor, inventariante ou sócio remanescente.

Como já foi bem tratado ao longo do trabalho, a recuperação é um instituto social, pois após tantos anos de falhas tentativas de manutenção do funcionamento de negócios, o que conseguimos foi apenas retardar a eventual falência. Temos agora um instrumento prático para possibilitar a defesa do interesse coletivo, interesse que foi recentemente reforçado pelas alterações recentes relativas ao DIP-financing. E conforme a própria lei dispõe, o objetivo da recuperação é a manutenção da atividade empresarial, e não do empresário em si. Estando esse devidamente em condições de atuar no mercado, sua atuação será mais que bem vinda para manter o ciclo de empregos, oportunidades e bens/serviços em circulação.

É importante a ressalva que em nenhum dos países analisados mostrou-se posição da lei no sentido de conferir status de obrigação do requerimento de recuperação, de tal sorte que a crítica feita não se restringe à nossa lei especificamente. Contudo, nosso legislador escolheu expressar a função social da Recuperacao como objetivo de sua existência no texto legal. E, pelo exposto, pode -se perceber claramente que o instituto é algo que transborda a figura do empresário. Fez mal, portanto, o legislador a condicionar esse requerimento a iniciativa dos sujeitos do Art. 48, pois trata-se de verdadeiro paradoxo frente a preservação da empresa.

Nesse sentido, cabe menção a uma interessante reflexão de Tomazette ao tratar sobre o direito falimentar, ou, como o próprio prefere chamar, direito da empresa em crise. Segundo o referido autor, o objetivo desse ramo seria: a) prevenção de crises; b) recuperar as empresas recuperáveis; c) liquidar as empresas irrecuperáveis; d) punir os responsáveis.

Tais objetivos denotam que não se trata de um direito que regula apenas a falência ou outros concursos de credores. O moderno direito das empresas em crise preocupa­se essencialmente com o valor da empresa em funcionamento, isto é, com a manutenção da atividade, ao invés de dar primazia aos interesses dos credores. Não há mais uma visão liquidatária nesse ramo do Direito, buscando­ se, sempre que possível, a manutenção da atividade. (TOMAZETTE, 2017)

  • PROPOSTA DO TRABALHO

Sem intuito de mostrar uma solução perfeita e acabada, o que exigiria uma reflexão mais profunda, faremos aqui uma hipótese de melhoria legislativa com base nos estudos realizados pelo autor do trabalho sobre o tema, com a devida vênia a diferentes pontos de vista. O que propomos é a análise da viabilidade de recuperação como passo obrigatório anterior a falência, em que caso positivo, poder-se-ia suprir a ausência do pedido de recuperação dos sujeitos pelo magistrado. Tal análise teria como embasamento uma declaração de viabilidade do indivíduo que teve uma ação de falência proposta contra si ou a propôs por conta própria, sendo a verificação da veracidade desses documentos feita posteriormente a exemplo do modelo lusitano por questões de celeridade processual.

Seria então a declaração um documento exigível do próprio processo de insolvência, elaborado por profissional habilitado conforme o ordenamento germânico. Não procuramos aqui com tal proposta sancionar o empresário que deseja seguir na liquidação em decorrência de um pedido de eventual credor ou no caso da autofalência, mas buscamos simplesmente compatibilizar a função social da empresa com o momento em que ela é mais necessária, pois de nada adianta positivar tal princípio em lei e simplesmente conferir ares de discricionaridade para o requerimento do empresário/sociedade empresária ou demais sujeitos legitimados.

Em tal cenário de suprimento da omissão de pedido pelo juíz, eventuais questionamentos acerca da imparcialidade do polo julgador podem ser levantados, mas, salvo melhor entendimento, estaria apenas sendo perseguido o bem-estar coletivo com a possibilidade de pagamento aos credores. Estes não seriam prejudicados, haja vista que a aprovação de um plano ainda passaria por seu crivo. Logicamente, em nossa proposta, tais credores não poderiam ser vencidos pela regra do cram-down, pois apesar da importância da função social, caso relativizássemos completamente a posição dos detentores do créditos, iríamos desestimular a atuação desses indivíduos, e como bem sabemos o direito não é um jogo de xadrez, mas sim uma relação de concessões recíprocas.

Ademais, a atuação do devedor na execução do plano de recuperação já não é imprescindível, uma vez que a própria Lei 11.101 prevê no seu Art. 64 hipóteses em que esse será afastado da administração da empresa e substituído por um gestor judicial apontado pela Assembleia de Credores (Art. 65). Nesse mesmo sentido, podemos destacar também a mudança no controle societário como uma das formas admitidas de Recuperação Judicial, expressamente prevista no Art. 50, III.

Art. 65. Quando do afastamento do devedor, nas hipóteses previstas no art. 64 desta Lei, o juiz convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o nome do gestor judicial que assumirá a administração das atividades do devedor, aplicando-se-lhe, no que couber, todas as normas sobre deveres, impedimentos e remuneração do administrador judicial.

Acreditamos, assim, que seria possível defender a função social, dando ao mínimo uma chance de análise da potencial recuperação da empresa ao instituir a documentação mencionada como pressuposto da falência, haja vista que esta, como foi mencionado no início do trabalho, não tem mais uma natureza simplesmente liquidatária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A recuperação judicial, conforme importada do ordenamento norte-americano, possui a finalidade de conferir as empresas recuperáveis uma nova chance de atuarem no mercado. Após muitos anos de falhas tentativas para efetivar o instituto da concordata, a Lei 11.101/2005 trouxe disposições mais completas para possibilitar a reestruturação. Muito além disso, inseriu em suas disposições o interesse explícito em garantir o cumprimento da função social da empresa. Nesse ínterim, tentamos no corpo da pesquisa questionar a natureza do processo de RJ.

Muito embora a letra fria conforme positivada pelo legislador sugira um caminho específico, o conjunto de nuances presentes no instituto tratado parece indicar outro. Alterações como as trazidas pela Lei 14.112/2020 com o financiamento apontam que a preservação da empresa, e não do empresário em si, é o caminho em que o país está se posicionando quando há viabilidade de condições; bem assim o é na Alemanha e Portugal em que só é cabida a RJ em caso de endividamento ou limiar da insolvência. Logo, se estão presentes os requisitos para reerguer o empreendimento nada mais lógico que seja dada no mínimo a chance de que os credores se posicionem pela recuperação, haja vista a manutenção da empresa, independente da vontade do empresário. Essa, pela sistemática atual, nem imprescindível é. Sendo assim, fazemos a proposta de alteração legislativa, apontando a uma possível alternativa, dentre muitas outras viáveis, como forma de cada vez mais propiciar a concretude dos objetivos elaborados pelo legislador.

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