PROCEDIMENTO FLEXÍVEL: A INSTRUMENTALIDADE COMO PRESSUPOSTO DA EFETIVIDADE PROCESSUAL

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01/11/2022 às 18:57
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A doutrina majoritária prega que a nulidade decorre porquanto não houve a observância de determinado preceito legal. Pode ser absoluta ou relativa, sendo a primeira verificada quando há ofensa à forma que possui o escopo de preservar a ordem pública, enquanto a relativa se refere a ofensa da forma que se refere ao interesse das partes. Já a irregularidade seria um tipo de inobservância que não gera qualquer consequência mais grave no âmbito do processo. Entretanto, o que seria ordem pública? As respostas são inconclusivas sob a ótica da objetividade, pois traduzem a ideia de se tratar de situação pela qual o Estado é diretamente interessado, o que resulta, novamente, em subjetivismo.

Nota-se, além disso, que não há certa clareza quanto a definição sobre o que acarretaria nulidade ou irregularidade, dado que, se a base inicial é subjetiva, logo as conclusões fatalmente o serão.

Porém, ao verificar a diferenciação de processo e procedimento, seria possível concluir que as nulidades são verificáveis quando há uma ofensa à norma processual, enquanto as irregularidades seriam verificáveis quando há uma ofensa à forma procedimental. Retornando ao exemplo da citação: caso a citação não seja realizada, isto acarretaria uma nulidade processual, não passível de correção, tendo em vista que houve ofensa ao comando, ou a norma, processual, que é o de dar ciência da ação à parte que está sendo demandada. Caso, por exemplo, a ação seja proposta perante a justiça do trabalho, mas, futuramente, seja declarado que a demanda é de competência da justiça comum; se verificada a citação por juiz incompetente, esta será plenamente válida, ou seja, trata-se de mera irregularidade quanto ao ato de citação[20], até porque há forma procedimental expressa neste sentido, de acordo com o art. 240 do Código de Processo Civil.

Fervorosa se torna a discussão quando inexiste forma procedimental prevista em lei para concretizar a questão a questão trazida pela norma processual, ou quando a forma procedimental acaba sendo interpretada de forma rígida e não flexível.

Qual seria a natureza jurídica, por exemplo, dos prazos processuais? Seria o prazo processual norma ou uma forma? Ora, se os prazos servem justamente para garantir a efetividade da norma processual, consistente implicitamente em concretizar um ato processual, logo, trata-se de forma de natureza procedimental, pois traduz o modo pelo qual o ato processual será cumprido, sendo passível, sob a linha de raciocínio deste trabalho, de flexibilização, que será mais bem fundamentado futuramente. A importância do prazo em ser caracterizado como forma não reduz a sua importância, eis que, caso não houvesse a sua estipulação, como garantir que a norma consistente na prática dos atos processuais fosse garantida? Entretanto, a forma não pode, sob o escopo deste trabalho, abolir ou restringir a norma, mas sim efetivá-la.

Sobre o conceito de norma defendido neste trabalho e citado anteriormente, é aquele que decorre do entendimento de Miguel Reale, que a caracteriza como uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória[21].

É perfeitamente possível, no âmbito do direito processual, identificar tipificações que possuam natureza normativa, conforme os exemplos trazidos anteriormente, até porque esta seara é um ramo autônomo e não dependente[22] do direito material. No exemplo da citação, a norma possui natureza de conduta, consistente em dar ciência à parte demandada, já no âmbito da competência, a norma seria de natureza organizacional, consistente em garantir a especialidade do juízo. Já a forma, ou o procedimento para a concretização dessas normas, serviria para conferir a possibilidade de serem externalizadas dentro do contexto fático.

Isto posto, e, para o decorrer deste trabalho, a premissa fática a ser utilizada será a de que a forma, ou o procedimento devem garantir a efetividade da norma ou do processo, até porque, conforme já explicado anteriormente, a efetividade do processo garante, igualmente, a efetividade da própria justiça e, consequentemente, da própria Constituição Federal.

2. Princípios elementares do processo

O sistema processual, sob a ótica defendida neste trabalho não deve sobrepujar toda a racionalidade de um sistema concatenado de atos organizados para o atingimento de sua finalidade, que é o pronunciamento acerca do direito material. Deve, por certo, respeitar os vetores elementares do sistema jurídico, para que não haja a disseminação de injustiças, ao premiar desproporcionalmente a participação de uma parte sobre a outra.

Em que pese ser fundamental a existência de um sistema processual que vise ao atingimento da finalidade material, a sua tramitação deverá estar baseada em princípios norteadores prévios para a atuação do magistrado e das partes.

Nas palavras de Luiz Regis Prado, dentro de uma ótica voltada ao direito penal, seria possível extrair valiosas lições acerca da conceituação sobre o que seriam princípios, aplicáveis em qualquer ramo do direito:

O pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à comunidade , norteada por princípios penais fundamentais.

Tais princípios, que se encontram em sua maioria albergados quase sempre, de forma explícita ou implícita, no texto constitucional, formam por assim dizer o núcleo gravitacional, o ser constitutivo do Direito Penal.

São eles derivados, em sua origem, dos valores ético-culturais e jurídicos vigentes em uma determinada comunidade social, numa certa época, e foram se impondo num processo histórico-político contínuo como basilares à sociedade democrática. Não resta nenhuma dúvida de que a Constituição (Estado democrático e

social de Direito) alberga princípios e valores jurídicos essenciais ao homem e à sociedade (direitos fundamentais/direitos individuais e sociais).

Constituem, portanto, o eixo da matéria penal, alicerçando o edifício conceitual do delito suas categorias , limitando o poder punitivo do Estado, salvaguardando as liberdades e os direitos fundamentais do indivíduo, orientando a política legislativa criminal, oferecendo pautas de interpretação e de aplicação da lei penal conforme a Constituição e as exigências próprias de um Estado democrático e social de Direito. Têm, portanto, função interpretativa, fundamentadora, supletória, além de serem diretamente aplicáveis, visto que dispõem de força normativa. Numa palavra: servem de fundamento e limite à responsabilidade penal.

Também, os valores constitucionais, como opções ético-sociais, disciplinam a convivência (política, econômica, jurídica e cultural) do homem na vida social, em uma triple dimensão: fundamentadora, orientadora e crítica.[23]

2.1. Contraditório e ampla defesa

Os princípios mais elementares do sistema processual são o contraditório e a ampla defesa.

A Constituição Federal é clara ao prever o referido princípio, em seu art. 5º, LV, que, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Em que pese uma das partes estar pleiteando a efetivação de um direito material, a outra deve sempre ter o direito de ciência das acusações que lhes estão sendo imputadas, para que possa exercer o seu direito subjetivo de trazer provas contrárias à pretensão do autor bem como respondê-las, ou para que concorde com os pedidos, ou para que celebre um acordo para pôr termo à lide, ou para que simplesmente não se manifeste e permita que o caso seja julgado à revelia.

Este é, justamente, o princípio do contraditório, que, nas palavras de Fredie Didier Jr:

O princípio do contraditório é reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório. O princípio do contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder.[24]

A ampla defesa, por sua vez, está umbilicalmente ligada ao princípio do contraditório, pois o processo, além de garantir às partes igual participação nos atos processuais, deve, por consequência, garantir paridade de armas entre ambas. Ou seja, as intervenções e recursos devem ser disponibilizados a ambas as partes de forma igualitária, não podendo ser aceitável que determinado sujeito tenha determinada prerrogativa em detrimento do outro.

A exceção deste princípio seriam as medidas judiciais determinadas em razão da urgência ou do dano à uma das partes. Em muitas situações é visível que a parte necessita de uma tutela jurisdicional imediata, sob pena de perecimento do próprio direito. É possível citar, por exemplo, a concessão imediata de determinado tratamento médico que seja necessário para preservar a vida do requerente. Neste caso, mesmo que a demanda seja futuramente tida como improcedente, é razoável conceder a medida, pois esta preservará um bem jurídico de maior importância (vida), em detrimento de outro cuja situação concreta seria classificada como de menor importância (patrimônio).

Já em se falando de medidas cautelares no âmbito do processo penal, verifica-se que a legislação traz um certo teor inquisitivo para a sua decretação por parte do magistrado. No §3º do art. 282 do Código de Processo Penal, há a menção de que as medidas cautelares (prisões e outras medidas restritivas de locomoção ou de direitos) devem ser acompanhadas de manifestação do acusado/indiciado/investigado, ressalvados os casos de urgência, ocasiões estas em que bastará a fundamentação do juízo para justificar a medida excepcional. Neste caso, o que se verifica é um embate entre os princípios do contraditório e ampla defesa, bem como o da liberdade de locomoção do indivíduo, em um aparente contraste com a manutenção da ordem ou da paz social. Ora, qual seria o óbice em escutar a parte contrária antes do deferimento, inaudita altera pars, da segregação do sujeito? Pois, de um lado, tem-se uma medida que cerceará a liberdade de um indivíduo, e, de outro, uma previsão de um possível e incerto evento que poderia ser praticado futuramente por este sujeito caso não haja o cerceamento de sua liberdade, ou seja, de um lado, existe o que houve de concreto, e, de outro, uma previsão futura e incerta do que viria acontecer. Defende-se, desta forma, que, em ponderação aos princípios supramencionados, não haveria qualquer tipo de óbice para que o sujeito, na iminência de ter deferida contra si uma medida restritiva de sua liberdade de locomoção, possa se manifestar previamente à concretização deste ato, até para que o judiciário concretize uma medida gravíssima oportunizando um ato de humanidade contra o sujeito. É por isto que institutos como os da audiência de custódia, aplicados àqueles que são detidos em flagrante, revestem-se de caráter humanitário e possuem aval dos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos: por, justamente, garantirem o contraditório e a ampla defesa ao indivíduo antes do deferimento de uma medida que, por mais evidente que seja a sua aplicação no caso concreto, ainda pôde ser impugnada pela parte prejudicada.

Desta feita, observa-se que a exceção a ser verificada mediante a análise de determinado princípio seria, justamente, a concreta aplicação de outro princípio reflexo, o que será melhor abordado futuramente.

2.2. Devido processo legal

A primeira aparição positivada do princípio do devido processo legal foi vista na Magna Carta, assinada pelo Rei João, da Inglaterra, em 15 de julho de 1215. A referida petição garantia uma série de direitos e de garantias individuais aos cidadãos, contudo, esta somente teve existência após uma forte oposição que o rei enfrentou após ser derrotado na Batalha de Bouvines, em 27 de julho de 1214, ocasião em que o rei francês Filipe II conseguiu, mediante a vitória contra a empreitada inglesa, a confirmação da posse do terreno inglês onde se localizava o Ducado da Normandia.

Com o fracasso desta batalha, o Rei João tentou aumentar a tributação contra a população, com o intuito de financiar mais batalhas para reaver o território perdido. Contudo, tal ato não foi aceito pelos barões e pelos nobres. Somando-se ao descontentamento junto ao procedimento de investidura de clérigos junto a Igreja Católica, houve o surgimento de uma oposição, vindo por parte da própria nobreza e do clero inglês, ao reinado de João. Desta forma, com o intuito de estabelecer um acordo entre o rei com essas castas, o Rei João assinou a Magna Carta, documento este que restringia algumas de suas prerrogativas e proporcionava alguns direitos e garantias individuais que existem até os dias atuais nos mais variados ordenamentos jurídicos (incluindo o brasileiro) e que servem de fundamentação para a própria criação e interpretação de normas relacionadas aos direitos humanos internacionais.

Adentrando-se mais especificamente ao tópico em questão, a Magna Carta previu, em seu artigo 39, a base para o princípio do devido processo legal:

39 Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra.[25]

A Constituição Federal Brasileira previu este princípio no inciso LIV de seu art. 5º, determinando que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

A referida cláusula prevê a necessidade de se estabelecer condições mínimas de atuação jurisdicional por intermédio do processo, que, conforme dito anteriormente, trata-se de um sistema concatenado de atos com o intuito de se atingir a pretensão material trazida pela parte ao poder judiciário. Observa-se que o referido princípio está contido dentro do rol de direitos e deveres individuais e coletivos, e, desta forma, trata-se de uma disposição que serve para evitar o abuso do poder do Estado contra o particular, seja no âmbito judicial, seja no âmbito administrativo.

Conforme visto anteriormente, a evolução metodológica do processo faz com que haja a necessidade de aplicá-lo, atualmente, de acordo com a ótica neoprocessual, ou seja, não se deve interpretar o referido princípio para criar um formalismo exacerbado para proteger o próprio processo, mas para, frise-se: garantir a efetiva participação das partes no sistema processual, visando a efetivação de uma pretendida medida jurisdicional, até porque, o referido princípio está contido, frise-se, no rol de direitos e deveres individuais e coletivos.

É o que defende o professor Renato Montans de Sá:

A garantia do devido processo legal surgiu, num primeiro momento, para tutelar exclusivamente o processo, mas com o passar do tempo a doutrina começou a analisar sob a ótica material, o que passou a admitir a cláusula do devido processo legal substancial (substantive due process of law). Assim, além de um processo adequado, as leis (de direito material) também devem ser razoáveis para atender com exatidão as necessidades da sociedade.

O devido processo substancial tem sua incidência de forma mais destacada com a nova forma de pensar do Estado na criação e (consequentemente) na interpretação do direito. Ele decorre da nova abertura hermenêutica que permite maior participação do órgão julgador na aplicação da norma.

Estas aberturas são as técnicas para solução do caso concreto, denominadas cláusulas gerais e normas de conceito vago e indeterminado.

A garantia do due process não pode ser meramente formal (possibilidade de se constituir um advogado e fazer valer seus direitos em juízo), mas de acesso ao Judiciário de forma efetiva e plena, independentemente dos empecilhos econômicos, sociais e políticos.

Assim, a garantia do acesso à justiça deve se municiar de elementos tendentes a permitir que as partes tenham ampla e irrestrita contraprestação estatal por meio de processo justo (équo).[26].

2.3. Instrumentalidade das formas, fungibilidade recursal e duplo grau de jurisdição

De acordo com o art. 5º, XXXV da Constituição Federal, tem-se que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. O referido dispositivo traz o princípio da inafastabilidade da jurisdição, garantindo, no escopo dos direitos e deveres individuais e coletivos, a possibilidade de o cidadão ter a prerrogativa de utilizar-se do Poder Judiciário para a solução de determinado conflito, seja este indivíduo de alto poder aquisitivo, seja este de baixa renda, ocasião esta em que lhe será deferido o benefício da justiça gratuita, bem como o da assistência judiciária gratuita, se o caso.

Com o franqueamento do acesso à justiça aos cidadãos, observa-se que além de o Poder Judiciário estar obrigado à prestação desses serviços aos jurisdicionados, esse deve promover uma atuação efetiva para a solução do conflito, ou seja, deve pronunciar-se de forma objetiva sobre os casos concretos que lhes submetem, devendo sempre fundamentar a sua decisão de forma material, e não abstrata (citando preceitos jurídicos vagos, por exemplo), conforme preconiza o inciso IX, do art. 93 da Constituição Federal, nos dizeres em que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.

É nesta toada que se extraem os princípios da instrumentalidade das formas, fungibilidade recursal e duplo grau de jurisdição. Ora, o referido princípio se desnaturaria caso existisse um mero acesso formal à justiça, permitindo que os particulares subscrevam as suas petições por intermédio de um procurador com poderes postulatórios, sem que o ordenamento jurídico-processual operasse de forma a atingir a finalidade material pretendida pela parte.

Como citado anteriormente, o pronunciamento judicial deve ser concreto e efetivo, e o magistrado pode encontrar situações que efetivamente não se amoldem perfeitamente na situação processual pré-indicada pelo legislador. Nesses casos, deveria o juízo ter condições de adaptar o procedimento para melhor atender aos interesses dos jurisdicionados, até porque, conforme estudado anteriormente, a finalidade do processo não se restringe tão somente ao cumprimento de meras formalidades, mas sim ao atingimento da pretensão material aduzida pela parte interessada.

A flexibilidade do procedimento às exigências da causa é, no entanto, fundamental para a melhor consecução dos seus fins, em uma perspectiva instrumentalista do processo. CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA sugere, para uma reforma legislativa, o estabelecimento do princípio da adaptabilidade (que ele denomina de princípio da adequação formal) como princípio geral do processo, "facultando ao juiz, obtido o acordo das partes, e sempre que a tramitação processual prevista na lei não se adapte perfeitamente às exigências da demanda aforada, a possibilidade de amoldar o procedimento à especificidade da causa, por meio da prática de atos que melhor se prestem à apuração da verdade e acerto da decisão, prescindindo dos que se revelem inidôneos para o fim do processo."

Em síntese: adeqüa-se o processo ao seu objeto tanto no plano pré-jurídico, legislativo, abstrato, com a construção de procedimentos compatíveis com o direito material, como no plano do caso concreto, processual, permitindo-se ao magistrado, dês que previamente (em homenagem ao princípio da tipicidade), alterar o procedimento conforme às exigências da causa.[27]

Com fundamento no art. 5º, XXXV da Constituição Federal, o princípio da instrumentalidade das formas traz a ideia de que o ato processual defeituoso deve ser válido, caso este atinja a sua finalidade. As petições iniciais, por exemplo, possuem muitos pré-requisitos procedimentais, e, desta forma, não raras vezes é observável que a parte interessada acaba não cumprindo todos eles, e praticando um ato processual defeituoso. Nesta hipótese, o juízo, ao identificar o erro, deve intimar a parte para que corrija aos vícios, e não simplesmente indeferir a petição inicial e ceifar o acesso à justiça ao requerente.

E tal correção de eventuais vícios no âmbito fático dos processos é possível de acordo com o princípio da instrumentalidade das formas, amparado no princípio do acesso à justiça elencado na Constituição Federal (art. 5º, XXXV).

Idêntica ideia se extrai para a interpretação dos princípios da fungibilidade recursal e do duplo grau de jurisdição.

A interpretação do princípio da fungibilidade recursal traz o pressuposto de que o judiciário reconheça o recurso interposto pela parte como se fosse outro, caso este esteja eivado de algum tipo de vício.

8.3.2.2. Princípio da fungibilidade dos recursos

É aquele pelo qual se permite a conversão de um recurso em outro, no caso de equívoco da parte, desde que não houvesse erro grosseiro ou não tenha precluído o prazo para a interposição. Trata-se de aplicação específica do princípio da instrumentalidade das formas.

O CPC-1939 possuía norma expressa neste sentido (art. 810).

O princípio da fungibilidade recursal decorre dos princípios da boa-fé processual, da primazia da decisão de mérito e da instrumentalidade das formas.

De um modo geral, deve aceitar-se um recurso pelo outro sempre que não houver má-fé ou outro comportamento contrário à boa-fé objetiva. Seguindo a tradição do direito brasileiro, a doutrina apresenta dois parâmetros para a avaliação do comportamento do recorrente que errou no manejo do recurso.

Em primeiro lugar, é preciso que haja uma dúvida objetiva quanto ao cabimento do recurso. Não obstante a expressão questionável e um pouco equívoca, pois dúvida é sempre subjetiva, essa diretriz impõe a necessidade de existir uma dúvida razoavelmente aceita, a partir de elementos objetivos, como a equivocidade de texto da lei, divergências doutrinárias ou jurisprudenciais. (...)

Em segundo lugar, é preciso que não haja erro grosseiro. Fala-se em erro grosseiro quando nada justificaria a troca de um recurso pelo outro, pois não há qualquer controvérsia sobre o tema (ou seja, não será grosseiro o erro quando houver dúvida razoável sobre o cabimento do recurso).[28]

A doutrina supramencionada traz uma visão processualista acerca do princípio da fungibilidade recursal. Conforme fora discutido anteriormente, a visão adotada por este trabalho é, justamente, a neoprocessualista, ou seja, aquela em que o processo, entendido como ciência autônoma, não deve se isolar em si mesmo, com princípios e regras próprias destoadas de qualquer efeito no âmbito do direito material, mas para, efetivamente, reconhecer a força normativa da Constituição Federal e estabelecer uma cooperação fática entre o Poder Judiciário e os jurisdicionados, até porque, a essência do processo, conforme fora defendido anteriormente, é a de munir os cidadãos de uma ferramenta para viabilizar o acesso à justiça, visando a efetivação de sua pretensão material de forma concreta, e não somente formal.

O que seria uma dúvida razoavelmente aceita, que parte de elementos objetivos, como a equivocidade de texto de lei, divergências doutrinárias ou jurisprudenciais, para se analisar a efetivação do princípio da fungibilidade recursal? Ademais, como verificar, na prática, a ocorrência de um erro grosseiro, sendo que este se fundamenta, conforme dita a doutrina acima exposta, justamente na dúvida razoável? Percebe-se, desta feita, que a visão processualista possui o intuito de cercear a aplicabilidade do princípio da fungibilidade recursal com critérios subjetivos e internos do intérprete, pois quem decidirá o que seria um erro grosseiro ou uma dúvida razoavelmente aceita, será o magistrado.

A restrição da amplitude do princípio supramencionado traz um prejuízo às partes, pois, por conta de uma questão formal e burocrática, poderão ter os seus recursos rejeitados e as suas demandas não analisadas pelas instâncias superiores, até porque, na prática, qual seria o efeito processual devastador caso a parte interponha um recurso de forma equivocada? Se em uma exceção de pré-executividade que discute a prescrição de um débito tributário o juiz acolhe os fundamentos e extingue a execução, qual seria o recurso cabível? Agravo de Instrumento ou Recurso de Apelação? Ora, é certo que a jurisprudência entende que o instrumento cabível seria o Recurso de Apelação, contudo, qual seria o dano processual real caso a parte prejudicada interpusesse o recurso com o nomen iuris denominado Agravo de Instrumento, por entender que a referida decisão possuiria uma natureza de decisão interlocutória? Não estaria a parte prejudicada fundamentando o seu recurso nos mesmos termos de um Recurso de Apelação? Qual seria o tão grave prejuízo deste equívoco formal a ponto de inadmitir a discussão da pretensão material da parte perante um magistrado de instância superior?

Desta forma, defende-se que haja a ampliação da efetividade do princípio da fungibilidade recursal, até porque, na grande maioria dos casos o recurso é rejeitado tão somente porque a parte se equivocou quanto ao nomen iuris que é prestigiado pela doutrina e pela jurisprudência, trazendo para si a sensação de injustiça por não ter a sua pretensão analisada pela instância ad quem em razão de um preciocismo formal sobre a efetiva análise do direito material pretendida pela parte.

Nesta mesma essência, de trazer maior instrumentalidade ao processo, bem como aos recursos, seria possível pensar no princípio do duplo grau de jurisdição, que, embora não expresso diretamente na Constituição Federal, é por ela validado, bem como referendado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), cujo qual o Brasil é signatário.

Este princípio traduz a ideia de recorribilidade das decisões judiciais, permitindo ao indivíduo a possibilidade de ter o seu caso reanalisado por uma outra instância, ou por um outro julgador. O princípio busca aferir maior legitimidade aos pronunciamentos judiciais, bem como de promover até mesmo uma espécie de paz psicológica, ao permitir a sensação de que o jurisdicionado efetivamente tentou buscar, em todas as instâncias possíveis, pela concretização de seu direito.

Nos termos do inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal, tem-se que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Este é, justamente, o comando processual normativo. A Constituição Federal também prevê a possibilidade de que o particular interponha recursos junto ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça, bem como aos Tribunais Regionais Federais e Eleitorais, bem como dispõe que a legislação disporá sobre o funcionamento dos Tribunais de competência militar e estadual, guardados os princípios elencados na Constituição.

Em que pese parte da doutrina entender que o princípio do duplo grau de jurisdição ser um princípio que não encontra amparo absoluto no ordenamento jurídico pátrio, a defesa firme deste princípio encontra amparo na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou seja, a defesa intransigente deste princípio implica, necessariamente, na defesa intransigente de uma prerrogativa que é alçada a um legítimo direito humano, reconhecido internacionalmente, do indivíduo.

Nos termos do artigo 8, item 2, alínea h do referido Pacto, tem-se que toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o Processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantais mínimas: direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

E antes que se diga que o referido dispositivo seria aplicado tão somente ao âmbito do processo penal, procedimento este que visa a condenação de um indivíduo, é forçoso reconhecer que o artigo 25 do referido Pacto abrange a referida ideia para que seja possível a sua aplicabilidade em todo e qualquer ramo do direito.

ARTIGO 25

Proteção Judicial

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízos ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercícios de suas funções oficiais.

2. Os Estados-Partes comprometem-se:

a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competente, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, no âmbito de suas relações internacionais é, de acordo com o art. 4º, II da Constituição Federal, justamente a prevalência dos direitos humanos, ou seja: o Estado brasileiro tem o dever jurídico de respeitar e efetivar as normas de direitos humanos cujas quais for signatário.

Ora, se está claramente expresso em uma norma internacional que versa sobre direitos humanos a possibilidade de a parte interpor recursos para que estes sejam analisados por outros julgadores, bem como a possibilidade, ainda que não expressa, no bojo da própria Constituição Federal, cumulado com o fato de que este mesmo instrumento normativo máximo prevê que irá defender os direitos humanos, como se cogitar em um entendimento doutrinário de que o princípio do duplo grau de jurisdição encontra limitações no âmbito do ordenamento jurídico pátrio?

Aparentemente, a reforma no âmbito do poder judiciário, trazida pela EC 45/2004, que trouxe em seu texto a previsão do princípio da duração razoável do processo, contende, de forma direta ou indireta, com o princípio do duplo grau de jurisdição. Em um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzido pela revista Conjur, o autor da matéria sistema processual é refém da chicana advocatícia expõe claramente que[29]:

Qualquer sistema processual, entre outras coisas, deve efetivar um componente elementar do constitucionalismo: o direito de defesa. Não existe Estado de Direito na ausência da fricção argumentativa estimulada pela oportunidade de defender-se. É desse direito que extraímos o direito de recorrer. O recurso teria ao menos três funções: a técnico-jurídica, ao tentar corrigir erros de instâncias inferiores; a política, ao dar lastro institucional mais robusto a uma decisão de autoridade; e a psicológica, ao conceder ao indivíduo afetado uma segunda chance.

Mas o cipoal de recursos do processo brasileiro é consequência de uma perversão dessas funções, do abuso do direito de defesa. Acredita-se que a maximização dos recursos equivale à minimização da falibilidade judicial. Com base nessa crença de fundo nosso sistema processual permanece refém da chicana advocatícia bem remunerada, em prejuízo de outros valores que o processo deve realizar, como a igualdade e a celeridade. O processo judicial, o penal em especial, é um dos nossos mais eficientes motores de discriminação.[30]

Um estudo produzido pela Associação dos Magistrados Brasileiros, publicado em 2006, demonstrou que 86,1%[31] dos magistrados entendem, sobre seus pontos de vista, que o excesso de recursos é um aspecto importante para a existência de impunidade no país. Dentre outras alternativas, este foi o tópico com o maior número de votantes.

Algumas declarações contidas nesta pesquisa servem para refletir o pressentimento de que o princípio do duplo grau de jurisdição contende, de forma direta ou indireta, com o princípio da razoável duração do processo:

Ao contrário do que se pode pensar, nossos juízes e nossas juízas estão, sim, conscientes das conseqüências e do impacto de suas decisões na sociedade. Prova disso é a visão imparcial que eles têm do Judiciário. Embora os magistrados sejam eminentemente cumpridores de regras estabelecidas pelo legislador, é também verdade que o ato de cumprir e interpretar leis pela própria estrutura deque dispõe o Judiciário pode resultar em morosidade da Justiça, decorrente quase sempre de excesso de recursos judiciais e escassez de material humano. Os juízes sabem disso e são os maiores críticos dessa situação.

(...)

Sem estarem alheios e sensíveis às influências externas, boa parte dos magistrados que responderam à pesquisa considera que a grande quantidade de recursos e a morosidade do Judiciário constituem entraves muito importantes ou importantes ao desenvolvimento do País.[32]

Se há um problema com a morosidade judicial, que é de caráter administrativo, este não deve ser resolvido com a mitigação de prerrogativas alçadas a definitivos direitos humanos. Se a tramitação dos trabalhos no âmbito do poder judiciário é deficiente, deve então a administração pública no âmbito interno deste poder alterar as formas de como o trabalho está sendo executado por parte de seus servidores, com o intuito de buscar uma maior eficiência na prestação deste tipo de serviço aos jurisdicionados, contudo, é inaceitável sequer cogitar a possibilidade de se resolver um problema de ordem administrativa (morosidade judiciária, relacionada ao trabalho, procedimentos internos de serviço, etc.) suprimindo um direito humano.

2.4. Razoabilidade e proporcionalidade

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não estão previstos de forma expressa na Constituição Federal, porém são por ela extraídos dentro de uma visão ampla do referido texto, e buscam coibir possíveis excessos por parte do poder público, bem como para garantir maior racionalidade em suas atividades.

Nas palavras da doutrina:

Apesar da polêmica quanto à existência ou não de diferenças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tem prevalecido a tese da fungibilidade entre os citados princípios que se relacionam com os ideais igualdade, justiça material e racionalidade, consubstanciando importantes instrumentos de contenção dos possíveis excessos cometidos pelo Poder Público.

Não obstante a ausência de referência expressa na Constituição pátria, é possível inferir a sua matriz normativa no próprio Estado Democrático de Direito e nos direitos fundamentais (visão germânica) e, ainda, na cláusula do devido processo legal (visão norte-americana). Em âmbito

federal, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade foram previstos expressamente no art. 2.º da Lei 9.784/1999.

O princípio da proporcionalidade divide-se em três subprincípios:

a) Adequação ou idoneidade: o ato estatal será adequado quando contribuir para a realização do resultado pretendido (ex.: O STF considerou inconstitucional a exigência de comprovação de condições de capacidade para o exercício da profissão de corretor de imóveis, pois o meio atestado de condições de capacidade não promovia o fim controle do exercício da profissão;

b) Necessidade ou exigibilidade: em razão da proibição do excesso, caso existam duas ou mais medidas adequadas para alcançar os fins perseguidos (interesse público), o Poder Público deve adotar a medida menos gravosa aos direitos fundamentais (ex.: invalidade da sanção máxima de demissão ao servidor que pratica infração leve);

c) Proporcionalidade em sentido estrito: encerra uma típica ponderação, no caso concreto, entre o ônus imposto pela atuação estatal e o benefício por ela produzido (relação de custo e benefício da medida), razão pela qual a restrição ao direito fundamental deve ser justificada pela importância do princípio ou direito fundamental que será efetivado (ex.: O STF considerou inconstitucional lei estadual que obrigou a pesagem de botijões de gás no momento da venda para o

consumidor, com abatimento proporcional do preço do produto, quando verificada a diferença a menor entre o conteúdo e a quantidade especificada no recipiente, tendo em vista que a proteção do

consumidor não autorizaria a aniquilação do princípio da livre-iniciativa). Os atos estatais devem passar por esses testes de proporcionalidade para serem considerados válidos.[33]

Os referidos princípios são de fundamental importância para serem verificados dentro de um processo que efetivamente busque a pretensão material trazida pelas partes. Ademais, sob o escopo do neoprocessualismo, que busca não somente a efetivação da pretensão material do direito que está sendo arguido, mas também que busca a adequação dos procedimentos para que estes estejam em conformidade com a Constituição Federal, observa-se que o teor de racionalidade previstos nestes dois princípios deve ser verificado no âmbito processual.

Conforme ressaltado anteriormente, a evolução da interpretação do direito passou do jusnaturalismo, que utilizava exclusivamente a razão humana para a interpretação do fenômeno jurídico, para um positivismo jurídico extremado, que a excluía totalmente. Após estes dois extremos, verificou-se a necessidade da implementação de princípios positivados de interpretação aberta (pós-positivismo), e, atualmente, verifica-se uma nova evolução, denominada neoconstitucionalismo, que além de aplicar o direito com base nos princípios constitucionais positivados, utiliza-se da razão e da moral humana para interpretar as normas com base na essência do texto constitucional.

Ou seja, a forte vertente racional que vem sendo paulatinamente implementada no direito faz com que haja a necessidade de sua aplicação no ramo processual, até porque, conforme fortemente sustentado neste estudo, de nada adianta empreender esforços em um sistema organizado de atos que não possua como a única finalidade o atingimento de uma pretensão jurídica material.

2.5. Princípios reflexos

Como o processo prevê um grande número de medidas procedimentais a serem implementadas pelo magistrado no caso concreto, a mera efetivação desses atos pode refletir em outros bens jurídicos das partes que também estão protegidos por outros princípios de natureza material (não processual).

Dentro de um contexto voltado à instrumentalidade dos procedimentos, é necessário que o magistrado esteja atento a esses outros princípios reflexos, pois de nada adiantaria privilegiar este tipo de marcha processual livre de empecilhos demasiadamente formais ao troco de ferir outros princípios de ordem material das próprias partes.

No âmbito do processo penal, a visibilidade desses princípios reflexos é bem nítida, pois os instrumentos procedimentais postos à disposição do magistrado normalmente restringem os direitos, o patrimônio, ou até mesmo a própria liberdade do indivíduo por intermédio das mais variadas formas de prisões. É por este motivo que fora ressaltado que processos de natureza sancionatória devem possuir uma flexibilidade procedimental mais restrita, dado o fato que o desrespeito a determinadas formalidades pode atingir com mais facilidade outros princípios reflexos da própria parte prejudicada, como os da liberdade de locomoção, não autoincriminação, presunção de inocência, etc.

Desta forma, é dever do magistrado, antes de determinar a efetivação de uma medida, principalmente no âmbito processual penal, verificar se esta não ferirá outros princípios reflexos da parte.

De outro modo, no âmbito do processo civil, a flexibilização de determinados procedimentos, em boa parte dos casos, não implicaria na violação de outros princípios reflexos das partes envolvidas, nada impedindo que o magistrado até mesmo exija a fundamentação de eventual dano ou prejuízo pela parte inconformada. Porém, ainda sim deve o magistrado agir com extrema cautela, pois existem casos em que a prudência é sempre recomendada com o intuito de evitar a ofensa de outros bens jurídicos materiais, como se verifica nos casos envolvendo pedidos para a realização de tratamentos médicos urgentes, que pode refletir em princípios relacionados à dignidade da pessoa humana.

Em síntese: princípios reflexos são aqueles bens jurídicos materiais protegidos pela Constituição Federal e pelas mais variadas normas, que, de alguma forma, podem ser atingidos no curso de determinada marcha processual, sendo dever do magistrado, antes de determinar a efetivação de qualquer medida procedimental, refletir com racionalidade se determinado ato ferirá ou não algum direito de uma das partes envolvidas.

3. O rigor em contraste com a essência processual: situações fáticas

Ultrapassada a parte introdutória e principiológica acerca deste estudo, que visa observar o processo como uma ferramenta para se atingir determinada pretensão material arguida por uma parte, far-se-á uma análise crítica acerca de determinados posicionamentos concretos defendidos pelo poder judiciário que acabam por prestigiar mais um apego ao formalismo exacerbado do que à busca efetiva pela concretização da essência do processo, bem como por legislações que dificultam a interposição de recursos, como no âmbito dos juizados especiais.

O objetivo deste tópico não é o de exaurir todos os posicionamentos do poder judiciário[34], mas sim de elencar alguns que causam certa estranheza ao serem submetidos a uma análise crítica, nos moldes da análise principiológica feita anteriormente.

As situações trazidas abaixo traduzem de forma nítida uma postura ativa por parte do judiciário em privilegiar a forma em detrimento à norma, o que, conforme vem sendo estudado por este trabalho, deve ser observado com cautela, pois, frise-se: o processo não pode, jamais, ser uma finalidade em si mesmo, mas sim uma ferramenta para auxiliar ao magistrado e aos jurisdicionados a alcançarem a efetiva resolução do mérito do litígio.

3.1. Recursos no âmbito dos Juizados Especiais

A criação dos juizados especiais está prevista no art. 98, I, da Constituição Federal, dispositivo este que impõe a obrigação, por parte da União, Distrito Federal, Estados e Territórios (há a exclusão dos Municípios), de criar órgãos formados por juízes togados, ou por togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo , permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

A competência legislativa para a criação, funcionamento e processo dos juizados especiais é concorrente da União, Estados e do Distrito Federal.

Com base constitucional, houve a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais pela Lei n.º. 9.099/95, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal pela Lei n.º. 10.259/01 e dos Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios pela Lei n.º. 12.153/09.

A intenção fundamental para a criação dos juizados especiais era a de facilitar o acesso à justiça aos cidadãos que precisassem solucionar litígios de baixa complexidade[35]. De certa forma, sob a ótica de um cenário ideal, em que não houvesse qualquer tipo de error in judicando ou error in procedendo, o sistema idealizado para os Juizados Especiais seria de salutar, pois os procedimentos previstos em lei possuem o objetivo de trazer mais celeridade e objetividade às demandas submetidas pelos jurisdicionados.

Contudo, é justamente na ocorrência dos erros ou das irresignações das partes para com a decisão proferida pelo magistrado que o referido sistema se demonstra ou demasiadamente complexo[36], ou visivelmente ineficiente para atender às expectativas dos jurisdicionados, o que desvirtua a sua própria finalidade.

Ora, quando há uma insatisfação quanto a decisão proferida por um magistrado, o meio para impugná-la é, justamente, a utilização de um sistema recursal que busque a reanálise da demanda por outro magistrado, seja este de um tribunal superior, seja este por parte de um magistrado de mesma instância, de forma colegiada, em respeito a princípio do duplo grau de jurisdição ora comentado.

Porém, verifica-se que o texto das referidas legislações, que trazem os sistemas dos juizados especiais cíveis, criminais, federais e da fazenda pública, não promovem uma adequada instrução para que as partes insatisfeitas com a prestação jurisdicional possam recorrer, principalmente de decisões interlocutórias, ou quando há a necessidade de que a demanda seja analisada por um tribunal superior na hipótese de restar demonstrada a ofensa à lei federal ou à constituição federal.

No âmbito da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n.º. 9.099/95), há somente a previsão de dois recursos: um recurso inominado contra sentenças, a ser dirigido à turma recursal do próprio juizado, e embargos de declaração, cabíveis contra sentença ou acórdão, nos casos de omissão, contradição ou obscuridade verificáveis na decisão. Não há previsão expressa acerca da possibilidade de se recorrer sobre decisões interlocutórias, bem como das proferidas pelo colegiado da respectiva turma recursal em primeira instância.

É muito comum, no âmbito dos juizados especiais cíveis, a discussão acerca da negativação indevida nos órgãos de proteção ao crédito, e, inclusive, de fácil comprovação por parte do consumidor, eis que haverá a necessidade de tão somente comprovar[37] a inexistência de vínculo com o dito credor, ou de juntar o comprovante de pagamento do débito. Nesses casos, há a nítida urgência para a remoção da inscrição irregular do débito perante os órgãos de proteção ao crédito, eis que a sua manutenção acarreta a diminuição de oferta de crédito por parte de instituições financeiras, bem como outros efeitos comerciais indesejáveis. Desta forma, como não há previsão legal para desafiar decisões interlocutórias, poderia o autor manejar algum tipo de recurso caso a sua demanda, fundada na negativação indevida, com pedido de antecipação de tutela, não obtivesse a respectiva tutela de urgência para afastar a negativação irregular?

Desde a promulgação da referida lei, a jurisprudência confirmou um posicionamento acerca da irrecorribilidade das decisões interlocutórias no âmbito da Lei n.º. 9.099/95, tanto que este entendimento foi consolidado em plenário no âmbito do STF, conforme se verifica do RE n.º. 576.847 BA:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. DECISÃO LIMINAR NOS JUIZADOS ESPECIAIS. LEI N. 9.099/95. ART. 5º, LV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. 1. Não cabe mandado de segurança das decisões interlocutórias exaradas em processos submetidos ao rito da Lei n. 9.099/95. 2. A Lei n. 9.099/95 está voltada à promoção de celeridade no processamento e julgamento de causas cíveis de complexidade menor. Daí ter consagrado a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, inarredável. 3. Não cabe, nos casos por ela abrangidos, aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, sob a forma do agravo de instrumento, ou o uso do instituto do mandado de segurança. 4. Não há afronta ao princípio constitucional da ampla defesa (art. 5º, LV da CB), vez que decisões interlocutórias podem ser impugnadas quando da interposição de recurso inominado. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 576847 / BA BAHIA RECURSO EXTRAORDINÁRIO - Relator(a): Min. EROS GRAU - Julgamento: 20/05/2009 - Publicação: 07/08/2009 - Órgão julgador: Tribunal Pleno)

O rígido posicionamento acerca da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, entretanto, fere o princípio do duplo grau de jurisdição, bem como o princípio da inafastabilidade do poder judiciário, na medida em que impede a reanálise da discussão por parte deste poder. Não bastasse a ofensa aos referidos corolários constitucionais, na prática, a decisão inviabiliza a revisão de erros cometidos por parte do poder judiciário, tanto que alguns tribunais estaduais estão revendo a questão acerca da referida irrecorribilidade.

No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por intermédio do órgão do Conselho Supervisor do Sistema de Juizados Especiais, houve a expedição do Comunicado n.º. 116/2010, que prevê a uniformização de enunciados para orientação dos juízes que atuam no âmbito dos juizados especiais cíveis e criminais. No enunciado n.º. 60, há a previsão de que no sistema dos Juizados Especiais cabe agravo de instrumento somente contra decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão do recurso inominado.

Ou seja, para que houvesse a possibilidade de se combater eventuais injustiças ou eventuais erros, como nos casos de negativação indevida, por exemplo, o referido Tribunal previu a possibilidade de se recorrer quando houver possibilidade de dano grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão de recursos inominados contra sentenças, o que é de salutar, pois acaba por privilegiar o princípio do duplo grau de jurisdição.

O referido entendimento, entretanto, vem ecoando de maneira tímida no âmbito deste Tribunal[38], conforme se verifica da decisão interlocutória, proferida no agravo de instrumento dirigido à turma recursal, n.º. 0100098-20.2018.8.26.9004. O referido agravo de instrumento buscou reformar a decisão interlocutória que negou a tutela de urgência para excluir o autor da demanda dos órgãos de proteção ao crédito, eis que comprovou que jamais realizara qualquer tipo de contrato com a requerida. A sua pretensão foi deferida pela turma recursal, que recebeu o agravo de instrumento com efeito ativo:

(...)

De pronto, a decisão impugnada merece modificação.

Entendo presentes os requisitos legais à tutela antecipada, como medida cautelar, que fica deferida.

Há fumus boni iuris na alegação da autora, tornando viável a discussão do direito, nesta ação. O periculum in mora decorre dos negativos efeitos do ato impugnado, que subsistirão, se aguardada a solução definitiva da ação. Aliás, predomina nos tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça a posição de que, enquanto litigioso o débito, devem ser excluídas as anotações nos bancos de dados. A presente decisão serve como ofício, para suspensão do nome da autora dos bancos de dados (SCPC), até final decisão desta ação, cabendo à autora a remessa ao destinatário.

Proceda-se, também, a suspensão do nome da autora pelo sistema SERASAJUD.

A tutela de urgência é concedida em caráter provisório. Poderá ser revista, diante de novos esclarecimentos da ré.

(Agravo de Instrumento n.º. 0100098-20.2018.8.26.9004, Relator Alexandre David Malfatti Órgão Julgador 4ª Turma Recursal Cível Santo Amaro Publicação 23/05/2018 DJE n.º. 2580)

Outra dificuldade verificada no âmbito dos juizados especiais cinge-se no tocante à possibilidade de interpor recursos em face das decisões terminativas proferidas pelas turmas recursais. No âmbito dos três sistemas dos juizados especiais, seria cabível o manejo de recurso extraordinário das decisões que violarem a Constituição Federal, contudo, não seria possível cogitar-se, ao menos em tese, a hipótese de interposição de recurso especial, pois o entendimento majoritário e o de que a Constituição Federal é clara ao dispor que o referido instrumento será cabível somente contra decisões proferidas, em única ou última instância, pelos tribunais regionais federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios.

Desta forma, quando a parte interessada verificar a necessidade de se recorrer decisão proferida pela Turma Recursal sem o intuito de questionar uma visível inconstitucionalidade, deverá observar, primeiramente, que cada microssistema dos juizados especiais possui características próprias.

Analisando, primeiramente, a viabilidade de interposição de recursos contra decisões proferidas pela turma recursal no âmbito da Lei n.º. 9.099/95 (juizados especiais cíveis e criminais), não há, no texto legal, qualquer previsão que viabilize eventual instrumento para impugnar a referida decisão. Havia, entretanto, uma extrema insegurança jurídica, pois as partes prejudicadas tentavam ajuizar reclamações perante os tribunais locais ou perante o STJ, alegando eventual divergência jurisprudencial ou ofensa à lei federal (ou dentre outros requisitos para a admissibilidade do recurso especial), ou ajuizando mandados de segurança visando assegurar eventual direito líquido e certo, também dirigidos ao tribunal local ou ao STJ.

Como inexistia (e inexiste, até os dias atuais), a referida previsão legal para a interposição deste recurso, o STJ editou a Resolução n.º. 12/2009, durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973, prevendo que, nesses casos, seria cabível o ajuizamento de reclamação perante o STJ contra decisão proferida pela turma recursal que afrontasse jurisprudência do STJ pacificada em súmula ou recurso repetitivo, ou quando fosse teratológica. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a referida Resolução foi revogada pela Resolução n.º. 03/2016, que passou a conferir a competência para o julgamento da referida reclamação às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça, quando houver divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e do Distrito Federal e a jurisprudência do STJ, consolidada em incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recurso especial repetitivo e em enunciados das súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de seus precedentes.

Desta forma, como a decisão da reclamação seria julgada por um órgão do tribunal de justiça, desta decisão seria cabível, em tese, a interposição de Recurso Especial, pois este desafiaria uma decisão proferida, em última instância, por um tribunal de justiça, nos termos da Constituição Federal.

No âmbito dos juizados especiais da fazenda pública (Lei n.º. 12.153/09), a questão não encontra maiores dificuldades, pois a lei é clara ao dispor que caberá um pedido de uniformização de jurisprudência. Quando houver divergência jurisprudencial entre turmas do mesmo Estado, o pedido será julgado pela reunião conjunta das turmas em conflito, ademais, quando a decisão proferida em conjunto contrariar súmula do STJ, a parte prejudicada poderá pedir a manifestação deste. Já quando turmas de diferentes Estados derem a lei federal interpretações divergentes, ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com súmula do STJ, será por este último julgado.

Já procedimento previsto nos juizados especiais federais (Lei n.º. 10.259/01) segue a mesma sistemática quando se tratar de decisões divergentes de turmas de uma mesma região, há, porém, a previsão de que, caso a decisão proferida pela turma recursal divergir de jurisprudências praticadas em outras regiões, ou estiver em desacordo com a súmula ou jurisprudência dominante do STJ, o pedido de uniformização de jurisprudência deverá ser julgado por uma Turma de Uniformização, integrada por juízes de turmas recursais e sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal, e não pelo STJ conforme prediz o microssistema do âmbito dos juizados especiais da fazenda pública.

Ou seja: nota-se uma demasiada e desnecessária complexidade recursal no âmbito dos juizados especiais, que foram pensados para, justamente, promover maior celeridade, economicidade e efetividade para causas que envolvam baixa complexidade. Causa estranheza, igualmente, as legislações previrem a desnecessidade para parte ajuizar a demanda com um advogado, mas disporem de um sistema recursal incompleto e totalmente contraintuitivo[39], aliado a um rigor judicial que, caso haja qualquer tipo de equívoco ou ausência do cumprimento de algum requisito, este estará fadado a não ser sequer recebido para uma análise acurada por outro magistrado, dada a inflexibilidade, por parte da jurisprudência, de aplicação de princípios basilares como os da fungibilidade recursal e instrumentalidade das formas.

3.2. Súmulas de tribunais superiores que vedam o reexame de fatos e de provas

Antes de analisar as súmulas dos tribunais superiores que vedam o reexame de fatos e de provas, é importante ressaltar que o modelo de jurisdição constitucional brasileiro é misto, ou seja, o STF assume, além da competência para declarar a constitucionalidade sobre o caso concreto, também a competência de atuar como cúpula do poder judiciário, atuando como uma legítima corte de recursos, ou corte de apelação em último grau, pois confere, aos particulares, a possibilidade de acesso à sua jurisdição.

A Constituição de 1988 manteve a fórmula de controle misto de constitucionalidade (controle direto, abstrato, incidental, concreto), agregando a ação de inconstitucionalidade por omissão, inspirada no constitucionalismo português e iugoslavo (de antes da desintegração da federação), a arguição de descumprimento de preceito fundamental ADPF e a ação declaratória de constitucionalidade ADC, introduzida pela EC 3.

Assim, a modalidade de controle difuso com remessa ao Senada foi mantida no texto, atravessando, pois, as Constituições de 1934. 1946, 1967 e 1969. Pelo controle difuso de constitucionalidade, permite-se que, no curso de qualquer ação, seja arguida/suscitada a inconstitucionalidade da lei ou de ato normativo, em âmbito municipal, estadual ou federal. Qualquer das partes pode levantar a questão da inconstitucionalidade, assim como também o Ministério Público e, de ofício, o juiz da causa. Afinal, não há questão de ordem pública mais relevante que a inconstitucionalidade de um texto normativo.

Desse modo, ao contrário do que ocorre na maioria dos países da Europa que a partir do segundo pós-guerra estabeleceram Tribunais Constitucionais com a tarefa de controlar a constitucionalidade, onde a questão da inconstitucionalidade é julgada per saltum (exceção feita a Portugal, que manteve, ao lado do controle concentrado, preventivo e sucessivo, o controle difuso) -, no Brasil qualquer juiz de direito de primeira instância pode deixar de aplicar uma lei, se entende-la inconstitucional.[40]

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Já os tribunais superiores, de maneira semelhante, realizam igualmente uma função mista, porém, se pronunciam a respeito de matérias infraconstitucionais, buscando a uniformização sobre a interpretação da lei federal.

Desta forma, à primeira instância compete o recebimento da demanda por parte do jurisdicionado, garantindo meios para que este produza eventuais provas que entenda suficientes para que a sua demanda seja julgada procedente. À segunda instância compete a revisão da decisão proferida por um juízo de primeiro grau, e, ao fim, às instâncias especiais (tribunais superiores e STF), compete a uniformização da interpretação acerca da lei federal ou da constituição federal, podendo ser acessada por todos os jurisdicionados, por intermédio dos recursos extraordinários previstos na própria carta magna (recursos especiais e extraordinários).

Atendo-se mais especificamente quanto aos recursos dirigidos ao STF e ao STJ, o constituinte originário previu a possibilidade de os particulares interporem os recursos extraordinários e os especiais, cujos textos iniciais eram os seguintes:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;

b) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal;

c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.

Não há, no texto promulgado pelo constituinte originário, qualquer dispositivo que proíba de as cortes superiores procederem com reexame dos fatos e das provas, porém, por intermédio da criação de uma jurisprudência ativa, tanto STF quanto os tribunais superiores editaram entendimentos, por intermédio de súmulas[41], dispondo que não compete a essas cortes procederem com o respectivo exame, devendo, nessas hipóteses, rejeitarem os recursos interpostos e negar sequer ao início do julgamento do caso.

Mesmo com a introdução da EC 45/04 houve a introdução de dispositivos para afastar a competência desses tribunais de analisarem as provas e os fatos. A referida alteração constitucional trouxe, no âmbito do recurso extraordinário, a inclusão da alínea d, dispondo que caberá recurso extraordinário quando a decisão julgar válida lei local contestada em face de lei federal, bem como o instituto da repercussão geral[42]. Já no âmbito do recurso especial, houve tão somente a alteração da redação da alínea b, para constar que caberá recurso especial, em única ou última instância, contra decisões proferidas por tribunais que julgarem válidos atos de governos locais contestados em face de lei federal.

O referido entendimento jurisprudencial causa um enorme óbice ao acesso às instâncias superiores por parte dos jurisdicionados, tendo em vista que seria impossível julgar uma demanda concreta, embasada em fatos e em provas, sem analisá-los de forma material, em outras palavras, é impossível proferir um julgamento abstrato de interpretação quanto à constituição federal ou à legislação federal em um caso concreto embasado em fatos e em provas.

No âmbito penal, por exemplo, existem várias situações em que a análise da prova e dos fatos é indispensável para verificar se há ou não o respeito ou não de determinado preceito legislativo.

O art. 33 da Lei n.º. 11.343/06 (Lei de Drogas) prevê a tipificação do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, cujo preceito secundário traz a pena de reclusão de 5 a 15 anos, bem como ao pagamento de 500 a 1500 dias-multa. Contudo, no §4º há a previsão da existência de uma redução da pena, quando o agente é primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Os requisitos quando a primariedade, bons antecedentes e não integração em organizações criminosas são facilmente perceptíveis, contudo, a dedicação às atividades criminosas requer uma análise subjetiva por parte do próprio magistrado, que, em muitos casos, entende que a pouca quantidade de droga induz à não dedicação a essas atividades.

Desta forma, caso um jurisdicionado interponha um recurso especial ao STJ alegando justamente a não aplicação do §4º do art. 33 da Lei n.º. 11.343/06, como a Corte iria deixar de analisar os fatos e as provas no caso em concreto para proferir um julgamento acerca da questão? Isso traz insegurança jurídica, dado que a admissibilidade recursal será analisada por intermédio de um caráter subjetivo, pois no exemplo concreto, para aferir uma eventual dedicação, será necessário que o magistrado se debruce nos fatos e nas provas trazidas aos autos, podendo ser a pouca quantidade de droga inclusive um falso indicativo de não-dedicação a essas atividades. Outrossim, simplesmente erigir a súmula 7 para sequer conhecer o recurso, acarretaria, fatalmente, na negativa de acesso à justiça por parte do jurisdicionado, com um risco gravíssimo de, inclusive, referendar a negativa de vigência de uma lei federal por parte de um tribunal ordinário.

O próprio tribunal superior, entretanto, vem flexibilizando o referido entendimento, no sentido de permitir a revaloração da prova, e não o seu reexame.

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. REVALORAÇÃO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. NÃO INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N.º 7/STJ. PENHORA. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES ESPECÍFICOS.

1. A revaloração da prova constitui em atribuir o devido valor jurídico a fato incontroverso, sobejamente reconhecido nas instâncias ordinárias, prática admitida em sede de recurso especial, razão pela qual não incide o óbice previsto no Enunciado n.º 7/STJ.

2. De acordo com entendimento do STJ, a legislação não faz distinção entre os tipos de contas ou cadernetas de poupança, sendo incabível a penhora de valores inferiores a quarenta salários-mínimos nelas depositadas. 3. Não apresentação pela parte agravante de argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão

agravada.

4. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

(AgInt no REsp 1494266 / RO - AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - 2014/0290050-2 - Relator(a) Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO (1144) - Órgão Julgador - T3 - TERCEIRA TURMA - Data do Julgamento - 17/08/2017 - Data da Publicação/Fonte - DJe 30/08/2017)

Em síntese: não há no texto constitucional, nem na legislação infraconstitucional, o aval para que os tribunais superiores e simplesmente deixem de apreciar um recurso por conta da necessidade de reexaminar os fatos ou as provas. Esse entendimento, de fato, é uma construção jurisprudencial ativa[43] e que erige uma dificuldade no âmbito processual, pois acaba por criar requisitos processuais não previstos normativamente, refletindo em um prejuízo aos princípios da instrumentalidade das formas e o duplo-grau de jurisdição.

É de se ponderar: qual seria o prejuízo de, ao invés de restringir o acesso às instâncias superiores por intermédio de jurisprudências ativas, interpretar a norma para permitir a discussão da parte que está requerendo a apreciação pelo tribunal superior? É importante sempre ter em mente que a prestação do serviço jurisdicional é um direito constitucional da parte, e não mera concessão ou favor por parte do Estado aos cidadãos. Conforme dito anteriormente, se o problema é eventual morosidade no âmbito judicial, trata-se de questão a ser resolvida por intermédio da administração pública, seja contratando mais funcionários, seja construindo mais locais para trabalho, seja melhorando os equipamentos informáticos, seja melhorando os processos administrativos internos, dentre outras medidas, e não por intermédio da criação de entendimentos jurisprudenciais ativos que visem a dificultar o acesso à justiça por parte dos jurisdicionados, que nada têm de culpa por conta da ineficiência por parte do poder judiciário em julgar, de forma célere, os casos que lhes são submetidos.

Conforme se detalhará futuramente, faz-se necessária uma mudança de mentalidade no trato entre o poder judiciário com os jurisdicionados, pois é este primeiro que serve ao segundo e lhe deve prestar um serviço de qualidade, e não o segundo que honra com as suas obrigações cívicas. Não se deve jamais culpar o jurisdicionado que queira, eventualmente, interpor recursos, pela morosidade judicial, mas sim o próprio poder judiciário que deve honrar com as suas obrigações constitucionais com eficiência e celeridade.

3.3. Repercussão geral

Conforme ressaltado no tópico anterior, o texto constitucional promulgado pelo constituinte originário não previa a obrigação, por parte dos jurisdicionados, de comprovar eventual repercussão geral, como requisito de admissibilidade para que pudesse acessar as instâncias especiais (STF e tribunais superiores).

A inovação da repercussão geral foi trazida no bojo da EC 45/04, que acabou por introduzir, dentre outros dispositivos, o §3º no art. 102 da CF:

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

A repercussão geral que se refere o dispositivo necessitou de uma regulamentação, o que ocorreu com a publicação da Lei n.º. 11.418/06, que acrescentou ao Código de Processo Civil de 1973, os seguintes dispositivos:

Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.

§ 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

§ 2º O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.

§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.

§ 4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.

§ 5º Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§ 6º O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§ 7º A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.

Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.

§ 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.

§ 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.

§ 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.

§ 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.

§ 5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.

A publicação do Código de Processo Civil de 2015 manteve a sistemática da repercussão geral em seu artigo 1.035.

O referido requisito ganhou força inclusive no âmbito do STJ, cujo tribunal pleno aprovou encaminhar uma proposta de emenda constitucional para criar uma repercussão geral de lei federal[44]. Houve, desta forma, o encaminhamento da PEC 209/2012, que possui o intuito de atribuir requisito de admissibilidade ao recurso especial no âmbito do STJ, inserindo o §1º ao art. 105, da Constituição Federal, e remunerando o parágrafo único.

A justificativa da PEC se debruça na tese da morosidade judiciária:

(...)

No entanto, ao exercício dessa competência, soerguem-se problemas de congestionamento similares aos que suscitaram estabelecer, no âmbito dos recursos extraordinários (competência do Supremo Tribunal Federal), a introdução do requisito da repercussão geral à sua admissibilidade. Conforme se pôde depreender numericamente no caso da Excelsa Corte, quanto à distribuição processual, de 159.522 (cento e cinquenta e nove mil, quinhentos e vinte e dois) processos em 2007 (ano em que a Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, entrou em vigor, regulamentando infraconstitucionalmente o §3º do art. 102, da Constituição Federal), reduziu-se para 38.109 (trinta e oito mil, cento e nove) processos em 2011.

Resta por necessária a adoção do mesmo requisito no tocante ao recurso especial, recurso esse de competência do STJ. A atribuição de requisito de admissibilidade ao recurso especial suscitará a apreciação de relevância da questão federal a ser decidida, ou seja, devendo-se demonstrar a repercussão geral, considerar-se-á a existência ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. Atualmente, vige um modelo de livre acesso, desde que atendidos os requisitos já explicitados como constantes do inciso III, do art. 105, da Constituição Federal. De tal sorte, acotovelam-se no STJ diversas questões de índole corriqueira, como multas por infração de trânsito, cortes no fornecimento de energia elétrica, de água, de telefone. Ademais, questões, inclusive já deveras e repetidamente enfrentadas no STJ, como correção monetária de contas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que, nos primeiros 16 (dezesseis) anos de funcionamento do STJ, respondeu por cerca de 21,06% do total de processos distribuídos, um quantitativo de vultuosos 330.083 (trezentos e trinta mil e oitenta e três) processos[45].

Contudo, mesmo antes da promulgação da EC 45/04, a CLT igualmente previa, por força da MP n.º. 2.226/01, em seu art. 896-A, a necessidade de comprovação de transcendência, com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica para fins de interposição do recurso de revista (recurso destinado ao acesso à instância superior no âmbito trabalhista). O referido instituto foi melhor regulamentado pela Lei n.º. 13.467/17 (Reforma Trabalhista), que inseriu os seguintes dispositivos no referido artigo:

§ 1o São indicadores de transcendência, entre outros: (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

I - econômica, o elevado valor da causa; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

II - política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

III - social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

IV - jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 2o Poderá o relator, monocraticamente, denegar seguimento ao recurso de revista que não demonstrar transcendência, cabendo agravo desta decisão para o colegiado. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 3o Em relação ao recurso que o relator considerou não ter transcendência, o recorrente poderá realizar sustentação oral sobre a questão da transcendência, durante cinco minutos em sessão. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 4o Mantido o voto do relator quanto à não transcendência do recurso, será lavrado acórdão com fundamentação sucinta, que constituirá decisão irrecorrível no âmbito do tribunal. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 5o É irrecorrível a decisão monocrática do relator que, em agravo de instrumento em recurso de revista, considerar ausente a transcendência da matéria. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 6º O juízo de admissibilidade do recurso de revista exercido pela Presidência dos Tribunais Regionais do Trabalho limita-se à análise dos pressupostos intrínsecos e extrínsecos do apelo, não abrangendo o critério da transcendência das questões nele veiculadas. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

Os requisitos para a admissibilidade do referido recurso são basicamente os mesmos da repercussão geral idealizada pela EC 45/04. Ou seja, é possível inferir que existe uma tendência, tanto por parte do poder legislativo, quanto por parte do poder judiciário, de criar mecanismos processuais para dificultar o acesso à justiça por parte dos jurisdicionados[46], o que deveria ser visto com cautela, tendo em vista que, conforme defendido anteriormente: o processo não pode ser uma finalidade em si mesmo, mas sim um instrumento para facilitar (e não dificultar) a discussão acerca da possibilidade ou não do direito material pretendido pela parte.

Porém, seria o poder judiciário competente para decidir se há ou não repercussão geral em questões econômicas, políticas e sociais? Ora, de acordo com a doutrina clássica, o judiciário expandiu a competência de estar adstrito à aplicação da letra de lei, para deter a prerrogativa de analisar princípios de cláusulas abertas, desde que estes estejam positivados na constituição federal ou na legislação esparsa. Contudo, há de se respeitar a técnica jurídica para a conclusão de determinado julgamento, até porque, se ao judiciário coubesse a competência de analisar questões de ordem social, econômica e política, para quê serviriam os outros poderes, e qual seria a finalidade da tripartição destes?

O doutrinador Manoel Gonçalves Ferreira Filho conclui, em sua obra, que o judiciário não detém a dita competência, desde que as questões envoltas nestas matérias estejam relacionadas à lesão de um direito subjetivo de alguma parte.

5. A MATÉRIA SUJEITA AO JUDICIÁRIO

É, por outro lado, princípio tradicionalmente firmado, ao menos no Direito brasileiro, que não há matéria, por sua natureza, vedada ao Judiciário. Em outras palavras, sempre que houver lesão a direitos particulares cabe recurso ao Judiciário: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, dispõe o art. 5º, XXXV, da Constituição.

E as questões políticas?

Chamam-se questões políticas aquelas que a Constituição confere à apreciação discricionária do Executivo ou do Legislativo. São questões de apreciação de conveniência, das quais a lei só marca o contorno, deixando em sua substância a decisão ao órgão político, que se guiará por considerações de interesse comum, de utilidade pública, de necessidade ou vantagem nacional requerendo uma autoridade mais ou menos arbitrária, subordinada à competência dos que a exercem aos freios da opinião popular e da moral social, mas autônoma numa vasta órbita de ação, dentro na qual a discrição do legislador e do administrador se move livremente (Rui Barbosa, apud Pontes de Miranda, Comentários, cit., v. 4, p. 222).

Com referência às questões políticas enquanto a questão se limitar à ponderação de conveniência ou utilidade, estão elas fora do campo do Judiciário. Desde que, porém, haja lesão de direito subjetivo, pode delas conhecer o Judiciário.

Assim, para a doutrina clássica, o cerne das questões políticas, ou seja, a apreciação de oportunidade ou conveniência, ficaria fora do alcance do Judiciário. Entretanto, hoje se admite que a Justiça possa, mesmo nesse caso, corrigir a decisão administrativa se houver violação aos princípios consagrados no caput do art. 37, como moralidade, eficiência etc.[47]

Conclui-se que ao permitir que o poder judiciário detenha a prerrogativa de analisar eventual questão de ordem política, social ou econômica para a admissibilidade de um recurso interposto por um particular, não há o pleno atendimento às suas funções institucionais e constata-se uma possível violação ao princípio da tripartição de poderes, dado que, frise-se, não compete a este poder, mas sim ao legislativo e ao executivo, a análise de eventual questão de ordem social, política e econômica. Não bastasse isso, a decisão amparada nesses critérios é dotada de caráter subjetivo, o que acarreta insegurança jurídica e não permite previsibilidade, por parte dos jurisdicionados, de saber se o seu recurso será recebido ou não por parte dos tribunais superiores.

Por fim, nunca é demais relembrar que a população elege justamente os membros do poder legislativo e do poder executivo (e não os do poder judiciário) para que estes decidam sobre questões de ordem política, social e econômica. Ora, a lógica é justamente conferir ao poder judiciário o dever de imparcialidade perante uma demanda que lhe está sendo submetida, até porque, sempre haverá parcialidade sobre o que eventualmente seria correto ou errado na perspectiva de questões de ordem política, social econômica. No âmbito político, há divergência entre pensamentos mais voltados à esquerda e pensamentos mais voltados à direita; no âmbito social, há divergência entre pensamentos mais reformistas e conservadores; no âmbito econômico, há divergência entre pensamentos que prezam por mais ou menos intervenção do Estado no âmbito da propriedade privada. Todas essas divergências de ordem subjetiva são fundamentadas e defendidas por ambos os lados e cabe ao povo, dentro de um Estado Democrático de Direito, por intermédio do voto, eleger representantes para dirimir essas questões.

Soa, para se dizer o mínimo, arbitrário, conferir a prerrogativa para que membros que não foram eleitos diretamente pelo povo decidam, com força jurídica, o que seria relevante em termos políticos, sociais e econômicos, dentro de uma demanda em que se discute a violação ou a constituição de direitos, e, principalmente, para julgarem se recebem ou não um recurso interposto por um particular[48] para ulterior análise.

Provavelmente o único âmbito em que seria possível cogitar uma decisão de forma plenamente imparcial seria o jurídico, pois, ao julgador, incumbe a análise das regras e dos princípios para a solução do litígio posto ao caso concreto, não devendo (ou, ao menos, não sendo recomendável), que o julgador sopesasse questões de natureza social, econômica ou política para fundamentar a sua decisão. De fato, não incumbe ao poder judiciário a adoção de uma postura tendente a fazer justiça[49], mas sim para interpretar e aplicar as leis e a constituição federal da forma que foram idealizadas e inseridas no plano fático pelo poder legislativo e pelo poder executivo[50], cuja legitimidade decorre diretamente do sufrágio universal. Deve o referido instituto da repercussão geral ser melhor trabalhado, repensado ou até mesmo suprimido do ordenamento jurídico, até porque funciona como um filtro recursal que não fora idealizado pelo poder constituinte originário, e que obriga ao judiciário analisar questões estranhas à sua competência (questões de ordem social, política e econômica).

Questões relevantes de ordem jurídica são as únicas objetivamente verificáveis, pois decorrem da não aplicação, ou da aplicação defeituosa, de determinada norma jurídica. Contudo, mesmo nas hipóteses de existir um entendimento jurídico pacificado sobre determinado assunto, ainda sim seria de prestigiar que o judiciário recebesse os recursos interpostos pelos particulares e os julgasse, de forma fundamentada, conforme o seu entendimento, até porque, garantiria ao próprio particular a oportunidade de tentar alterar o atual cenário e refrescar o poder judiciário com um ponto de vista divergente.

O principal pilar defendido para prestigiar o instituto da repercussão geral é, justamente, garantir maior celeridade e eficiência ao poder judiciário, por intermédio da diminuição de recursos interpostos à corte. Contudo, como a própria constituição federal estabeleceu um sistema que possibilita o recurso às partes interessadas, essas ainda sim podem se valer de outros recursos, e, inclusive, de remédios constitucionais, para que, mesmo na hipótese de não conhecimento de seu recurso[51] pelas vias tradicionais, haja a rediscussão do caso mediante outros instrumentos processuais.

Desta forma, exsurge-se a indagação: será que o instituto da repercussão geral realmente resolveu a crise do poder judiciário, principalmente no âmbito das instâncias superiores? Ou será que é necessária uma reforma no âmbito administrativo e rotineiro, voltada às questões relacionadas com o efetivo trabalho por parte dos servidores que compõem os órgãos deste poder? Pois, caso a parte interponha um recurso extraordinário ao STF e este é denegado por ausência de repercussão geral, naturalmente tentará interpor outro recurso, até que haja um pronunciamento por parte desta corte.

De acordo com as conclusões obtidas por Fabricio Santos de Almeida, em sua dissertação de mestrado apresentada no programa de Pós-graduação em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que analisou o instituto da Repercussão Geral de forma crítica, diante de suas implicações no processo penal democrático, houve a constatação que:

Por sua vez, com base em uma perspectiva crítica da concepção de processo, do duplo grau e dos recursos, ficou evidente que a repercussão geral das questões constitucionais é um instituto incompatível com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Ao argumento ideológico de imprimir celeridade aos procedimentos, a repercussão geral é implementada no Direito brasileiro com o objetivo de impedir a interposição de recursos extraordinários, para reduzir o número de processos enviados ao STF e, assim, segundo os reformistas, atingir mais rapidamente o trânsito em julgado das decisões. Entretanto, a insistente restrição do espaço argumentativo, pelas reformas, encontra óbice na procedimentalidade do paradigma democrático.

Quando essas questões são transportadas para o microssistema do processo penal, em um viés democrático, mais problemas podem ser enumerados no sentido de evidenciar a incompatibilidade da repercussão geral com o paradigma do Estado Democrático de Direito, não só no que tange ao modelo constitucional de processo, mas também às especificidades do próprio microssistema.[52]

Conforme citado na parte introdutória deste trabalho, um exemplo de que a parte tentará, de todas as formas, conseguir um pronunciamento de sua questão, é, justamente, o Recurso Extraordinário com Agravo n.º. 1035798/SP. Para relembrar, a parte fora condenada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região[53] e interpôs recurso extraordinário, alegando ofensa ao art. 5º, caput, e aos incisos XXXV, XXXVII, XLI, LV, LVI e LVII da constituição federal, fundamentando que a causa se enquadraria dentro dos parâmetros da repercussão geral, por envolver questão relevante de ordem econômica, social, política e jurídica. O referido Tribunal negou a admissibilidade do recurso por entender que a fundamentação era deficiente. Com isto, a parte interpôs agravo em recurso extraordinário, e, no âmbito do STF, este manteve a decisão que negou a admissibilidade, porém, fundamentando, que, em que pese a parte ter alegado que a causa possuía repercussão geral, não houve a demonstração fundamentada de que o referido requisito teria sido preenchido:

No RE, interposto com base no art. 102, III, a, da Constituição Federal, alegou-se violação ao art. 5º, caput, XXXV, XXXVII, XLI, LV, LVI e LVII, da mesma Carta (págs. 31-37) do doc. eletrônico 7).

A pretensão recursal não merece acolhida.

Isso porque o recorrente, apesar de afirmar a existência de repercussão geral no recurso extraordinário, não demonstrou as razões pelas quais entende que a questão constitucional aqui versada seria relevante, sob o ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e que ultrapassaria os interesses subjetivos da causa (págs. 35-36 do doc. eletrônico 7). A mera alegação de existência do requisito, desprovida de fundamentação adequada que demonstre seu efetivo preenchimento, não satisfaz a exigência prevista no art. 543-A, §2º, do CPC/1973, introduzido pela Lei 11.418/2006, e no art. 327, §1º do RISTF.[54]

O que se procedeu após o não conhecimento do referido recurso interposto pela parte, no dia 24/03/2017? Ora, uma sucessiva interposição de diversos outros recursos, questionando a referida decisão, pois, frise-se: o jurisdicionado não se contentou[55] que a sua pretensão não fosse sequer analisada pelo judiciário. Após a negativa de admissibilidade do recurso, o jurisdicionado questionou a decisão por intermédio de embargos de declaração no agravo em recurso extraordinário, agravo regimental, embargos de declaração no agravo regimental, embargos de divergência, agravo regimental, e embargos de declaração no agravo regimental. Com isso, a publicação da última decisão proferida pelo STF foi publicada no dia 16/05/2019, ou seja, cerca de dois anos após a interposição do referido agravo em recurso extraordinário, lembrando-se oportunamente que o feito foi distribuído à primeira instância no dia 29/01/2013.

Será que não seria mais célere e racional que o Tribunal simplesmente remetesse o recurso ao STF e este proferisse um julgamento célere, analisando a questão e fundamentando, se o caso, que não houve ofensa à constituição federal, encerrando a discussão judicial sobre o mérito da causa com tão somente dois atos processuais (recebimento do recurso e julgamento)?

Em um estudo publicado em 28/01/2013 por Fabio Portela Lopes de Almeida, assessor da ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi que atuava na vice-presidência do Tribunal Superior do Trabalho, órgão responsável pelo juízo de admissibilidade de recursos extraordinários naquela corte, concluiu, basicamente, que, à época, o sistema não vinha entregando resultados satisfatórios para a redução da morosidade no âmbito do poder judiciário como um todo:

São irrepreensíveis as preocupações que levaram à implementação do instituto da repercussão geral. É preciso que o Poder Judiciário seja mais eficiente, mais célere e possa, de fato, solucionar as controvérsias que lhe são postas.

Todavia, até aqui a repercussão geral não cumpriu sua proposta. Pelo contrário, o sistema de processamento dos Recursos Extraordinários, ao final de 2012, era 41% mais ineficiente do que no modelo processual anterior. As conclusões do I Relatório Supremo em Números não são exatas, pois não levaram em conta várias questões que, na verdade, têm resultado em maior morosidade na tramitação dos Recursos Extraordinários. Isolar a análise no âmbito do Supremo Tribunal Federal, esquecendo-se do impacto sobre os demais órgãos do Poder Judiciário, apenas confere legitimidade a mecanismos que têm causado uma piora nos indicadores de celeridade e eficiência.

Isso não significa dizer que o instituto da repercussão geral carece de utilidade, mas que é necessário reformá-lo de modo que possa, enfim, atingir sua finalidade. Essas reformas não podem, contudo, partir apenas de considerações teórico-processuais que, como se demonstrou, levaram à construção de um sistema pouco funcional.

É preciso adotar uma leitura institucional que examine as distorções do atual sistema e auxilie na elaboração de alternativas que efetivamente solucionem o problema. Mas, para isso, é preciso lançar mão de novas ferramentas de análise que não têm sido utilizadas pelos juristas, como elementos da economia comportamental, da teoria dos jogos e da teoria da escolha institucional. Busquei mostrar, no presente artigo, um exemplo de tal análise.[56]

Em um artigo produzido pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em que este identificou que o referido filtro possui inúmeros problemas, restou demonstrado que, de fato, a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário não vem se demonstrando eficaz para reduzir o volume de processos a serem submetidos ao STF, tampouco está garantindo maior celeridade processual:

2.3. O estoque gerado e o congestionamento do sistema de justiça

Até o dia 1º.07.2017, isto é, cerca de dez anos depois da ER nº 21/2007, estes são os números:

(i) 947 questões foram afetadas ao regime de repercussão geral;

(ii) em 308 temas ela foi negada, significando que recursos versando aquelas matérias não subirão mais;

(iii) das 639 questões remanescentes, 354 haviam sido julgadas;

(iv) 285 ainda estavam pendentes; e

(v) a média de julgamento ao longo do período foi de 35,4 temas com repercussão geral por ano (354 em dez anos).

Mantida essa média, o Tribunal demoraria mais de oito anos para exaurir um estoque de 285 temas, e isso, apenas, se nenhum novo caso tiver repercussão geral reconhecida. Além disso, criou-se um novo problema: no final de 2016, havia no mínimo 1,5 milhão de processos sobrestados nas instâncias de origem aguardando as decisões a serem tomadas pelo STF nos cerca de 300 feitos pendentes afetados ao regime da repercussão geral, casos esses que, na sistemática anterior à criação do filtro, estariam tramitando. Esse número não inclui os processos sobrestados pelos tribunais de origem por iniciativa própria ao identificar controvérsia repetitiva (CPC/2015, art. 1.036, §1º), sobre os quais as estatísticas nacionais ainda estão em construção. Considerando-se que as decisões tomadas em regime de repercussão geral até o final de 2016 haviam solucionado apenas 151.505 processos nas instâncias de origem, o saldo revela-se amplamente negativo: a razão é de dez processos sobrestados para cada um resolvido por julgamento de mérito de repercussão geral.

Como se nota, a repercussão geral é um filtro de relevância que não tem impedido a chegada de 100 mil casos por ano ao STF, nem desobrigado a Corte de proferir, aproximadamente, o mesmo número de decisões no mesmo intervalo. O alívio de processos verificado até 2011 foi temporário e ilusório: a diminuição dos feitos remetidos ao STF não significa que eles tenham deixado de existir, mas apenas que continuam aguardando julgamento em algum escaninho, ainda que virtual, longe da Praça dos Três Poderes. É inegável, portanto, que a sistemática, tal como praticada até hoje, fracassou.[57]

Em que pese o autor, em seu artigo, propor algumas possíveis soluções para resolver o problema da repercussão geral, sob o contexto deste estudo, este filtro não deveria ser imposto de maneira cogente como requisito de admissibilidade. Não é possível, tampouco razoável, conforme explicado anteriormente, permitir que a repercussão geral seja um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, contudo, nenhum prejuízo existiria aos jurisdicionados caso este filtro continuasse existindo como forma acessória ao processo e dispensável sob o quesito da admissibilidade recursal.

3.4. Indeferimento de justiça gratuita

A gratuidade da justiça é um direito fundamental e positivado na constituição federal. Seria possível inferir o referido direito mesmo se este não constasse de forma expressa do texto constitucional, pois, se, nos termos do art. 5º, XXXV, da constituição federal, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito tem-se que o exercício da jurisdição por parte deste poder é inafastável, não podendo as partes exercerem a justiça privada, salvo determinados casos relacionados à arbitragem. Caso a parte não possua recursos para pagar o preço pela efetivação do serviço jurisdicional, o Estado deve garantir que o poder judiciário atue para resolver o conflito submetido pela parte interessada, independentemente do pagamento de quaisquer valores.

Mesmo assim, o inciso LXXIV do art. 5º, da constituição federal, prevê expressamente que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Sendo uma norma de eficácia plena, não haveria a necessidade de regulamentação por intermédio de lei para que esta pudesse gerar os seus efeitos no ordenamento jurídico.

Porém, a lei regulamentava a questão por intermédio da Lei n.º. 1.060/50, e, futuramente, pelo Código de Processo Civil de 2015 (Lei n.º. 13.105/15). Nos termos da legislação revogada, para fazer jus ao benefício, a parte deveria alegar a sua hipossuficiência mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não estaria em condições de pagar as custas processuais e honorários advocatícios, sem prejuízo próprio ou o de sua família, e esta declaração seria presumidamente verdadeira até prova em contrário a quem afirmar deter essa condição. Já no Código de Processo Civil de 2015, presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural, e a parte poderá formular o requerimento na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo e em recursos. Ainda, nos termos da novel legislação, o juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.

A gratuidade da justiça, desta forma, não é regra no âmbito processual, mas uma exceção aos jurisdicionados que não possuam condições de arcarem com o ônus processual. Infere-se, portanto, que o pagamento de valores ao judiciário para observar o processamento de determinada demanda é um procedimento imposto aos jurisdicionados, sob pena de, em sendo inobservados, o caso sequer ser processado perante o poder judiciário, que é o único detentor do poder jurisdicional.

Desta forma, o problema que surge no âmbito processual é justamente a alegação por parte do jurisdicionado que alega não possuir recursos para custear o processamento de sua demanda com o seu consequente indeferimento por parte do magistrado. Para piorar a situação, não há regulamentação que torne a aferição da hipossuficiência de forma objetiva, devendo o magistrado analisar, de modo subjetivo, a possibilidade de a parte arcar ou não com as custas processuais.

Não bastasse isso, o ato de comprovar um fato negativo (a impossibilidade de arcar com as custas processuais) é extremamente difícil, ou, em alguns casos, até mesmo impossível, por tratar-se de prova diabólica. Mesmo assim, o que ocorre, na prática, é, em caso de dúvidas por parte do magistrado, este atribuir o ônus de provar este evento negativo à parte que está requerendo a benesse, sendo que em outras situações, a regra geral é a de que o ônus de comprovar um evento incumbe àquele que alega. Ou seja: caso o magistrado possua dúvidas se a parte possui ou não capacidade financeira, o ônus de comprovar a alegação de que esta não possui deveria incumbir ao próprio magistrado, e, via das dúvidas, conceder o referido direito, sendo inaceitáveis quaisquer tipos de decisões que indefiram a benesse com base na falta de comprovação da capacidade financeira, pois, frise-se: o ônus de comprovar a incapacidade financeira deveria ser de quem está alegando, podendo, no máximo, determinar a juntada de provas nesse sentido, e, em caso de dúvidas, frise-se, conceder o direito constitucionalmente previsto, primando sempre pela boa-fé da parte requerente.

Além disso, as decisões que indeferem a justiça gratuita devem ser fundamentadas de forma a considerar as alegações da parte requerente, até porque não existe legislação que estipule critérios objetivos para a concessão do referido benefício. Não é, porém, o que se verifica em muitos casos, conforme se demonstrará de alguns excertos de decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

E, na hipótese dos autos, como bem anotou a d. magistrada de primeiro grau, é inequívoco que se dispondo a propor a ação nesta Capital, embora a parte seja domiciliada em outra comarca, situada no interior de Goiás, onde a demanda poderia ter sido ajuizada, sujeita-se a agravante a gastos de deslocamento, hospedagem, alimentação e transporte interno, típicos de quem não ostenta situação de miserabilidade.[58]

Na hipótese, verifica-se que o autor aufere rendimentos como funcionário de empresa privada (pág. 150, na origem), possui bem imóvel e veículos em nome próprio (págs. 128-135, na origem), inclusive sendo um dos veículos (Ford Fusion 2.0 págs. 46/47, a origem), adquirido em dez/2018, no valor de R$ 63.000,00 (com R$ 34.000,00 de entrada) objeto de discussão nos autos, não sendo possível extrair condição de hipossuficiência econômica que seja hábil a reconhecer que faça jus à benesse.[59]

A assunção de obrigações além da capacidade econômico-financeira não justifica a concessão do pretendido benefício na ação de origem.

(...)

Registra-se que, conquanto sejam notórios os nefastos efeitos sociais e econômicos que a pandemia do novo Coronavírus (Covid-19) tem a potencialidade de gerar, a indiscriminada invocação dela não autoriza o deferimento de pretensões extraordinárias, injustificadas ou desprovidas da indispensável boa-fé objetiva que não se presume.

A gratuidade processual não é direito absoluto e potestativo daquele que simplesmente a requer.[60]

No caso dos autos, o agravante recebe acima de três mil reais a título de benefício previdenciário e comprova apenas os gastos com plano de saúde, o que, evidentemente, não é suficiente para demonstrar a alegada hipossuficiência de recursos.

Deveria o agravante ter trazido aos autos cópias de suas Declarações de Imposto de Renda, além de outros gastos que porventura o assole no decorrer do mês.

É certo que a lei não exige a condição de miserável para a concessão da gratuidade; mas, por outro lado, bastava que o postulante comprovasse minimamente que as despesas com os custos da demanda tivessem potencialidade de prejudicar o sustento próprio ou da família, o que, infelizmente, não foi feito no caso concreto.

Tal comprovação torna-se uma exigência cada vez mais patente, pois, infelizmente, a praxe tem revelado abusos e destempero no exercício desse direito, pechas essas que devem ser combatidas em homenagem ao princípio insculpido no art. 5º da LIDB: a aplicação da norma de acordo com o fim social. Afinal, até para se garantir que os necessitados façam uso da gratuidade do sistema jurisdicional é imperativo a triagem dos não necessitados, dando mais força e valor à norma da Lei nº 1.060/50, recepcionada pelo art. 5º, LXXIV, da CF.[61]

Verifica-se que não há, em muitos casos, por parte do poder judiciário, uma maior transigência para que a parte possa dirimir eventuais dúvidas do juízo. O magistrado solicita os documentos, a parte os junta, e, a partir destes, o juízo profere uma decisão deferindo ou não a benesse constitucional, sem muitas vezes intimar a parte beneficiária para dirimir eventuais dúvidas que o magistrado possua, e, pior: indeferindo o direito caso conste algum tipo de dúvida. Ademais é pouco usual observar o deferimento para que as custas processuais sejam pagas ao final do processo.

É importante ressaltar que, caso haja o indeferimento da concessão da justiça gratuita e a parte contrária não possua, de fato, condições de pagá-las, haverá o arquivamento dos autos e o jurisdicionado não poderá sequer submeter a sua questão para ser apreciada pelo poder judiciário, o que é um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que a constituição federal prevê a inafastabilidade do poder judiciário, este próprio poder, por intermédio de decisões subjetivas, acaba afastando a jurisdição dos cidadãos que alegam não possuir condições financeiras para arcar com o ônus processual, que muitas vezes não é módico sob a perspectiva do brasileiro médio.

Surge, desta forma, alguns questionamentos caso reste verificada uma postura rígida por parte do magistrado: é possível observar um atributo de extrafiscalidade nas custas processuais? As custas processuais são uma importante fonte de custeio do poder judiciário? A população brasileira em geral teria condições de pagar as custas processuais, e simplesmente tentam não o fazer por mera veleidade pessoal?

Extrafiscalidade pode ser compreendida como uma espécie de tributação que busca ao atingimento de determinados objetivos de ordem social ou política.

Não se deve confundir parafiscalidade com extrafiscalidade. Parafiscalidade, como visto nos itens anteriores, é a delegação legal da capacidade para cobrar tributos. Extrafiscalidade ou tributação indutiva é a utilização do tributo para atingir objetivos de ordem social ou política contemplados no ordenamento jurídico, ou seja, sem finalidade imediatamente arrecadatória.[62]

No âmbito das custas processuais, seria possível aventar a hipótese de uma espécie de extrafiscalidade, pois, caso a regra geral fosse a gratuidade da justiça, os particulares poderiam ter mais abertura para requererem, junto ao poder judiciário, um maior número de demandas infundadas. Contudo, como o próprio ordenamento jurídico prevê duras punições para quem pretende iniciar aventuras jurídicas infundadas, como os honorários advocatícios sucumbenciais devidos ao advogado da parte vencedora, bem como as multas por litigância de má-fé, o eventual caráter extrafiscal que poderia estar contido nas custas processuais se desnatura.

É certo que os honorários advocatícios sucumbenciais não constituem uma espécie tributária, mas sim um valor de natureza remuneratória, contudo, a instituição destes na relação processual possui um caráter pedagógico às partes, pois o advogado vencedor da demanda irá cobrar da parte sucumbente a parte que lhe é devida por lei. A lei n.º. 13.467/17, Reforma Trabalhista, instituiu a previsão de honorários advocatícios sucumbenciais no âmbito do processo trabalhista. Após a referida implementação, verificou-se que entre janeiro e outubro de 2017, as varas do trabalho de todo o país tinham 2,2 milhões de ações em andamento. No mesmo período em 2019, o total de processos recuou para 1,5 milhão[63], ou seja, houve uma redução de 32% do número de processos trabalhistas ajuizados. De acordo com os analistas entrevistados, a redução está principalmente relacionada à regra criada pela reforma que obriga a parte vencida a pagar honorários do advogado da outra parte.

Desta forma, a legislação dispõe de meios eficientes para impedir eventual aventura jurídica por parte dos jurisdicionados que eventualmente queiram pretender por demandas nitidamente infundadas pelo mero fato de a justiça eventualmente ser gratuita: há, para esses, a punição em honorários advocatícios sucumbenciais e multa por litigância de má-fé. Possuindo o ordenamento jurídico esses institutos que são, de fato, eficazes, não seria possível concluir que a instituição de custas processuais possuiria uma natureza extrafiscal, mas sim, fiscal, de cunho meramente arrecadatório aos cofres públicos.

Desta forma, em sendo as custas processuais tributos de natureza meramente fiscal, urge-se outra dúvida: as custas processuais são indispensáveis ao funcionamento do poder judiciário? Ou seja, fora a destinação para o custeio do poder judiciário via os tributos pagos pelo contribuinte, seria necessário, além destes, a necessidade da cobrança de custas processuais para que este poder consiga honrar as suas obrigações financeiras?

A resposta é negativa.

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, as despesas totais do poder judiciário somaram R$ 100,2 bilhões em 2019, um aumento de 2,6% em relação a 2018[64]. Já o valor arrecadado com custas processuais constitui aproximadamente R$ 13,1 bilhões, o que constitui cerca de 13,07% das despesas que o poder judiciário possuiu em 2019.

Calculam-se na arrecadação os recolhimentos com custas, fase de execução, emolumentos e eventuais taxas (R$ 13,1 bilhões, 17,2% da arrecadação), as receitas decorrentes do imposto causa mortis nos inventários/arrolamentos judiciais (R$ 7,5 bilhões, 9,9%), a atividade de execução fiscal (R$ 47,9 bilhões, 62,7%), a execução previdenciária (R$ 783,1 bilhões, 4,1%), a execução das penalidades impostas pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho (R$ 21,7 milhões, 0,03%) e a receita de imposto de renda (R$ 4.665,2 milhões, 6,1%). O acréscimo de 2019 nas receitas deve-se, predominantemente, às receitas de execução fiscal que cresceram em quase R$ 10 bilhões em um ano (26%), em particular, na Justiça Estadual.[65]

Verifica-se que a arrecadação vinda do próprio poder judiciário constitui, majoritariamente, da sua atividade em execução fiscal, execução previdenciária e a execução das penalidades impostas pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho (R$ 48,7 bilhões). Ademais, verifica-se igualmente que o poder judiciário não é capaz de arrecadar o suficiente para custear as suas próprias atividades, pois as arrecadações decorrentes de suas atividades perfazem o montante aproximado de R$ 76,4 bilhões, restando uma diferença de R$ 23,8 bilhões a ser custeada por parte dos contribuintes em geral.

Figura 1 Gráfico arrecadações do poder judiciário

Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2020

Ou seja, a arrecadação de 13,1 bilhões constitui cerca de 13,7% das despesas que o judiciário possuiu em 2019 e cerca de 17,2% das arrecadações que o próprio poder judiciário conseguiu por intermédio de sua atividade. O referido estudo concluiu que, no ano de 2019, as despesas totais do poder judiciário, somadas em R$ 100,2 bilhões, corresponderam a um custo de R$ 479,16[66] por habitante no decorrer do ano, que, dividido pelo número de meses, corresponde ao valor mensal de R$ 39,93.

A primeira conclusão é que a justiça, de fato, não é gratuita, inclusive aos que sequer necessitam de seus serviços, pois, conforme restou demonstrado do estudo promovido pelo CNJ, a população como um todo já paga para a manutenção do poder judiciário, que não consegue custear as suas atividades com recursos oriundos de sua própria atividade. A título de debate, retirando-se totalmente os R$ 13,1 bilhões decorrente das custas processuais, tem-se que o valor anual, por cidadão, passaria de R$ 479,16 para R$ 541,80, que, dividido pelo número de meses, iria corresponder ao valor mensal aproximado de R$ 45,15, o que iria corresponder a um aumento próximo de 13%, ou, em números, a um aumento de R$ 5,22 mensais, ou de R$ 62,64 anuais.

Desta feita, urge-se: considerando que o jurisdicionado já paga pela manutenção da justiça, mesmo sem utilizá-la, seria mais provável que este conseguisse arcar com as custas judiciais ou com um aumento no valor de R$ 45,15 anuais para ter a garantia de que poderá acessar a justiça sem receio de ter eventual requerimento indeferido por parte do magistrado, que o fará, inclusive, mediante uma fundamentação subjetiva[67]?

De acordo com dados do IBGE, o rendimento nominal mensal domiciliar per capita (RDPC) da população residente atingiu o valor de R$ 1.380,00[68], ou seja, a média de rendimentos de um brasileiro corresponde ao dito valor. Porém, conforme se verifica dos dados divulgados pelo CNJ, tem-se que os valores médios arrecadados, por ação, no âmbito do poder judiciário, correspondem, no âmbito estadual, o valor de R$ 1.396,02; no âmbito trabalhista, o valor de R$ 230,00; no âmbito federal, o valor de R$ 139,01; no âmbito do STJ, o valor de R$ 167,34; no âmbito do TST, o valor de R$ 7,00[69]. A média desses valores indica que custo médio para se acessar a justiça brasileira é de R$ 588,34, e, incluindo os custos para obter acesso ao STJ, uma média de R$ 483,09.

Figura 2 - Valores arrecadados em relação ao número de processos ingressados sujeitos a cobrança de custas

Fonte: Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2020

Ou seja, um brasileiro médio não conseguiria, por exemplo, obter acesso à justiça estadual às suas próprias expensas, pois, se sua média de rendimentos é de R$ 1.380,00 e a média para se acessar a justiça estadual é de R$ 1.396,02, verifica-se que o magistrado que trabalha nesta seara, ao indeferir o direito constitucional da justiça gratuita, estará, consequentemente, obstando, o acesso a justiça ao brasileiro médio que eventualmente esteja postulando um direito e alegando que não possui condições financeiras para custear o ônus das custas judiciárias.

Não se pode olvidar outras questões que dificultam o acesso à justiça e inclusive ao princípio da ampla defesa, pois, regra geral, a parte que alega possuir um direito deverá comprová-lo, seja por intermédio de provas documentais, testemunhais, ou, periciais, cujo expert deve ser remunerado pela parte solicitante, salvo nos casos de concessão de justiça gratuita, cuja obrigação pecuniária será dirigida ao Estado. Ou seja, o magistrado que decide indeferir um pedido de justiça gratuita por parte do particular cerceará, em muitos casos, eventual requerimento de produção de prova pericial, pois normalmente os honorários exigidos pelo expert e aceitos como razoáveis pelo poder judiciário superam à média remuneratória do brasileiro comum.

É justamente por isso que o legislador, de forma sábia, estabeleceu, no §3º do art. 99 do Código de Processo Civil de 2015, que presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural. Os motivos são óbvios: o brasileiro médio não tem condições de arcar, com paridade de armas, recebendo proventos mensais médios de R$ 1.380,00, com o ônus processual sem seu próprio sustento e o de sua família. Como pagaria, uma perícia judicial para comprovar eventual direito controvertido em uma demanda que discute, por exemplo, a necessidade de se realizar determinados procedimentos médicos, ou a necessidade de custeio de determinada forma de tratamento cuja recomendação seria caseira, e não hospitalar?

A constituição federal professa que a nação é um Estado Democrático, cuja jurisdição é um direito do cidadão e um dever do Estado[70]. Destarte o poder judiciário deve servir ao povo, e não por este ser servido, sendo inconcebíveis decisões, como as citadas anteriormente, que acabam por não presumir a hipossuficiência declarada por pessoa física.

Analisando-se a última decisão colacionada[71], o magistrado alega que a comprovação da hipossuficiência por parte de pessoa física tornou-se uma exigência cada vez mais patente, e, com isto, avilta descontroladamente o comando legal exarado no §3º do art. 99 do Código de Processo Civil, e, de modo reflexo, a própria realidade do cidadão médio brasileiro.

Naquele caso em específico, o agravante alega ser aposentado, e que houve uma fraude contratual envolvendo empréstimo consignado cuja agravada estava envolvida; que, em determinado dia, teria tentado fazer um saque em sua conta e percebeu que não tinha saldo suficiente, em razão de ser surpreendido com uma série de descontos, referentes a um empréstimo consignado que alega não ter contratado. Alegou que recebe aposentadoria no valor de R$ 3.723,70; que o agravado descontou valores no montante de R$ 1.117,01, e que, mensalmente, desconta o valor de R$ 558,50 por conta deste contrato que alega ter sido fraudado, bem como que possui despesas médicas de R$ 1.138,05, lhe restando um valor de R$ 1.468,65 para promover o sustento próprio e de sua família. Pediu, em petição, desesperadamente que seja provido o presente agravo, no sentido de que seja deferido o pedido de gratuidade judiciária. O agravante tenta comprovar que cerca de 45,5% de sua renda está comprometida, sendo que cerca de 15% decorrem justamente do contrato que alega não ter existido. Destarte, resta cerca de 54,5% para prover o seu sustento pessoal e o de sua família.

Em notícia publicada pelo Correio Braziliense, que buscou analisar os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 publicado pelo IBGE, houve a constatação que o valor médio de gastos das famílias brasileiras chegou a R$ 4,6 mil por mês, sendo que, dentro desses gastos, despesas com alimentação, habitação e transporte representam 81% do total, 11,7% representam gastos com outras despesas correntes e 10% para o gasto com investimentos e dívidas. Já para famílias com rendimento de até dois salários-mínimos, houve a constatação de que estas destinam cerca de 61,2% da renda mensal a despesas, sendo 22% à alimentação e 39,2% à habitação. As famílias com rendimentos mais altos, utilizam 30,2% do orçamento com estes gastos, sendo 7,6% com alimentação e 22,6% com habitação.[72]

Destarte, em que pese naquele caso concreto ter sido constatado que havia uma sobra decorrente de suas despesas, será que esta seria capaz de custear, com dignidade, as custas processuais e honorários advocatícios, sem prejuízo com gastos relacionados à sua moradia, alimentação, transporte etc.? Será que não seria mais viável ao judiciário presumir, na forma da lei, que a declaração de hipossuficiência alegada por pessoa natural deve ser válida? Será que não deve o poder judiciário primar pelo princípio da boa-fé, e não o dá má-fé por parte do jurisdicionado?

Conforme ressaltado anteriormente, a arrecadação decorrente das custas processuais não constitui uma importante fonte de custeio para a administração financeira do poder judiciário, tampouco serve para atribuir um caráter de extrafiscalidade, pois outros institutos como a litigância de má-fé e os próprios honorários advocatícios já servem como filtro razoável para impedir que as partes demandem por requerimentos impertinentes junto ao poder judiciário. Desta forma, como o processo deve ser utilizado como forma a solucionar os problemas das partes, é de rigor que o judiciário seja mais flexível para a concessão dos referidos direitos, considerando verdadeiras as alegações trazidas pelas partes requerentes, principalmente se estas forem pessoas físicas, primando sempre a sua conduta com base na boa-fé, e não com base na má-fé, com o intuito de se assegurar a proteção ao princípio do contraditório, ampla defesa e acesso à justiça, na medida em que, caso não haja o pagamento das despesas judiciais, não haverá sequer o processamento do pedido fundamentado trazido pelo jurisdicionado junto ao poder judiciário, bem como poderá cercear importantes instrumentos probatórios como a prova pericial, por exemplo.

4. Procedimento Flexível como resultado da evolução teórica do direito e do processo

Conforme restou demonstrado de alguns exemplos práticos observados de forma crítica, denota-se que se faz necessária a observância de que o processo seja visto com mais racionalidade por parte do magistrado, que o conduzirá, pois esta postura decorre da própria evolução do direito como um todo.

No início deste estudo verificou-se que o processo passou por algumas fases metodológicas: praxismo, processualismo, instrumentalismo e o neoprocessualismo. Em uma breve síntese, a concepção de processo era tida como algo informal (praxismo), passando por uma visão extremamente rigorosa (processualismo), para, após, existir, aos poucos, a inclusão da racionalidade para a condução deste (instrumentalismo, e, ao final, neoprocessualismo). É possível inferir que houve essa evolução metodológica dada a necessidade de adequar o processo ao cumprimento de sua finalidade precípua, que é, justamente, auxiliar as partes para a solução de um litígio, dizendo o magistrado, ao final, os direitos e as obrigações sobre as quais recairão a demanda.

E por qual razão seria possível a referida inferência?

Ora, o próprio direito material passou por idêntica transformação metodológica: jusnaturalismo, juspositivismo, pós-positivismo e neoconstitucionalismo. De igual modo, a interpretação do direito era vista mediante uma ótica mais centrada à razão humana (jusnaturalismo), passando por uma visão extremamente sistematizada sobre a interpretação e aplicação das normas jurídicas (juspositivismo), para, após, existir, aos poucos, a inclusão da racionalidade, mediante a adoção de princípios positivados (pós-positivismo), bem como mediante uma interpretação mais racional e moral do próprio ordenamento jurídico acerca das disposições trazidas pela constituição federal (neoconstitucionalismo).

O entendimento sobre o funcionamento do processo vem evoluindo em conjunto com o entendimento sobre a aplicabilidade do direito material. A aplicação deste último deve sempre ser pautada com base nos princípios[73], sob pena de, mesmo que fundamentando determinada aplicação acerca de um instituto positivado, ser possível pleitear a sua inviabilidade junto ao sistema jurídico, caso este se demonstre contrário ou incompatível com as referidas normas elementares de cláusulas abertas.

É importante, desta forma, verificar como ocorreu a evolução do direito, do jusnaturalismo ao neoconstitucionalismo, e como o processo, de forma equivalente, vem evoluindo da mesma forma, do praxismo ao neoprocessualismo, cuja aplicação e interpretação deve se amoldar de modo equivalente àquela relacionada aos direitos materiais.

O jusnaturalismo é uma corrente do direito que leva em consideração as próprias leis naturais que circundam a vida humana, ou um definitivo estado de natureza que é imposto a todos aqueles que decidam residir em uma sociedade organizada. Essas leis naturais sempre devem buscar um sinalizador de justiça, que, ou são os próprios valores humanos, ou são valores efetivamente superiores aos humanos, ou inclusive à própria natureza das coisas e dos fenômenos físicos autoevidentes, podendo inclusive culminar em justificações metafísicas de sua legitimidade e aplicabilidade.

Ou seja: trata-se de uma vertente que visa a aplicação do direito mediante a interpretação da situação fática por intermédio da racionalidade, ou da razão humana, bem como pela moral. É de se entender o que é certo e o que é errado, o que é justo e o que é injusto, para que seja efetivamente possível resolver determinado conflito dentro de uma sociedade de pessoas humanas.

Para um ordenamento regido pelo jusnaturalismo, é de rigor a assunção de que qualquer norma humana que seja estabelecida em desfavor desses direitos naturais, ínsitos à própria condição humana, seja tida como inválida, tendo em vista que há a percepção de que os direitos inatos à vida humana são superiores aos outros. E esses direitos naturais estão acima das leis humanas, justamente por decorrerem da própria moral e racionalidade humana, logo, seria paradoxal que o ser humano criasse uma norma que afrontasse a sua própria moral e razão[74].

Este tipo de direito, inerente à própria natureza das coisas e sustentado pela racionalidade e pela moral humana, vinha sendo aplicado de forma comum a todas as sociedades organizadas, desde as mais primitivas. É certo dizer que o direito natural passou por inúmeras transformações, e que, por um longo período, foi utilizado para a justificativa de sanções cruéis contra as pessoas, principalmente levantando um caráter de decreto divinal para a aplicabilidade de preceitos que eram impostos por autoridades públicas ou eclesiásticas.

São Tomás de Aquino, baseando-se nas ideias de Santo Agostinho, desenvolveu uma espécie de jusnaturalismo teológico, que é sustentado tanto pela fé em Deus, como pela razão humana.

Mas foi em Grotius, que era um cristão protestante e que não negava a existência de Deus, que essa espécie de jusnaturalismo teológico começou a ser questionada, adentrando-se em uma outra corrente conhecida como jusnaturalismo racional, que retirava a sua legitimidade exclusivamente da razão humana. Grotius derivou este sistema racional de jusnaturalismo tendo em vista que, em sua época, começavam a surgir diversas correntes cristãs oriundas do movimento protestante, o que colidia frontalmente com os entendimentos da fé católica, e, inclusive, com entendimentos contrários dentro do próprio protestantismo, como os calvinistas e arminianos.

Logo, moldar um sistema de justiça consensual com base na razão em conjunto com a fé poderia gerar mais conflitos do que soluções, tendo em vista a revolução de ideias acerca da fé cristã naquele tempo, sendo essa a principal justificativa para retirar a fé para a interpretação e aplicação do direito natural e permitir a sua análise com base tão somente na razão humana.

Oportuno dizer que Grotius não desenvolveu de forma espontânea este pensamento que separa a razão humana da fé. De fato, Duns Escoto, que era católico, desenvolveu o pensamento de que a soberania de Deus não poderia ser entendida pela razão humana, mas tão somente pela fé, e, a partir deste embrião, começou a ser desenvolvida a ideia de separação entre fé e razão humana. Ademais, Guilherme de Occam, que também era católico e discípulo de Escoto, desenvolveu a ideia de que todo o conhecimento racional humano é derivado da lógica sobre o funcionamento e sobre a natureza das coisas.

Logo, diferentemente do que se poderia acreditar mediante uma visão superficial acerca da transição entre o jusnaturalismo teológico para um jusnaturalismo de base racional, esta mudança não decorreu de pensamentos ateístas ou contrários à fé cristã, mas surgiu de dentro das próprias estruturas do cristianismo.

Em David Hume, que era um filósofo empirista, o jusnaturalismo começou a ser criticado de forma mais evidente. Este pensador desenvolveu uma teoria conhecida como Guilhotina de Hume, ou falácia do naturalismo, sustentando que derivar uma norma de dever ser de uma norma ser seria mero arbítrio, ou, em palavras mais simplificadas: seria arbitrário derivar uma norma a partir de um fato natural, e observou que o jusnaturalismo sempre procede desta forma: deriva uma regra de conduta a partir do funcionamento natural das coisas e dos fenômenos naturais. Não livre de críticas, essa é a principal fundamentação para a refutação do jusnaturalismo, bem como a principal base axiológica de todo o juspositivismo que fora criado.

Já o juspositivismo possui um forte vetor empirista em sua formação, tendo em vista que, baseado na ideia de Hume de que seria arbitrária a criação de uma norma a partir de um evento natural ou da própria natureza humana, e que a natureza humana é compreensível por intermédio da razão, faz-se necessário estabelecer um sistema jurídico que afaste, justamente, a própria razão humana para o estabelecimento de normas que regulem uma vida em sociedade.

Ou seja, para que o juspositivismo não sofresse refutações pela Guilhotina de Hume, o ordenamento jurídico somente poderia criar normas de dever ser que fossem derivadas de outras normas de dever ser, ou em normas de ser sustentadas em outras normas de ser.

A cronologia do direito, até então, poderia ser ilustrada da seguinte forma:

  1. Período do jusnaturalismo cosmológico: regras que derivam exclusivamente de fontes metafísicas;
  2. Período do jusnaturalismo teológico: regras que derivam tanto da fé em Deus como da razão humana;
  3. Período do jusnaturalismo racional: regras que derivam exclusivamente da razão humana;
  4. Período do juspositivismo: regras que necessariamente devem afastar a razão humana para a sua implementação.

Deste cenário fértil surgiu a necessidade de se desenvolver um sistema jurídico baseado em normas de dever ser, ou seja, de desenvolver um sistema hierárquico de normas que retiram as suas validades de outras normas superiores, sob pena de incorrer na Guilhotina de Hume e se tornar um sistema jurídico inválido ou arbitrário caso a norma retirasse o seu fundamento de um fato ou de uma norma de natureza de ser.

Com isso Hans Kelsen, valendo-se deste cenário de afastamento da razão humana, empreendeu esforços para criar uma teoria pura do direito, que afastasse justamente qualquer outro tipo de interferência social ou política, e que se destinasse tão somente ao estudo das normas jurídicas em si mesmas. Em outras palavras: Hans Kelsen deu prosseguimento ao embrião juspositivista iniciado por Hume, no sentido de afastar qualquer interferência das normas de ser dentro de uma interpretação exclusivamente de dever ser do direito.

Por intermédio da indução, concebeu que, em se falando de uma hierarquia dentre normas, cujas quais as inferiores retiram a validade das superiores, a constituição federal era, justamente, a norma máxima de determinada sociedade e dela todas as outras deveriam estar em consonância, sob pena de inexistirem dentro de um ordenamento jurídico estritamente juspositivista.

A celeuma cinge-se no seguinte ponto: mas o que dá validade à Constituição Federal, dado que as normas de dever ser devem derivar de outras de dever ser? Ora, a Constituição Federal deveria retirar a sua legitimidade de outra norma, de natureza jurídica, que fosse superior e ela própria.

Deste imbróglio, Kelsen justificou de forma teórica que a Constituição Federal retirava a sua validade jurídica de uma norma pressuposta hipotética e fundamental, teoria esta que deriva da epistemologia kantiana acerca do conhecimento humano. No âmbito das ideias kantianas acerca da lógica transcendental, as relações hipotéticas são pressupostas do conhecimento humano e envolvem uma hipótese com a geração de uma consequência (se A, então B. Ex.: se chover e eu sair, então irei me molhar), que decorrem justamente de uma análise apriorística da situação fática[75]. Ora, se é desta forma, o ordenamento jurídico também poderia seguir a mesma lógica, sendo possível estatuir uma analogia entre o conhecimento humano e o conhecimento jurídico, tendo em vista que, se uma norma inferior retira validade de uma norma superior, então ela será válida, possuindo a mesma estrutura da lógica transcendental kantiana. Em se falando do estudo de normas jurídicas, logo, a Constituição Federal naturalmente retiraria a sua validade de uma norma pressuposta (anterior, portanto), hipotética (pois surge da lógica transcendental) e fundamental (pois é superior à própria Constituição Federal). Em uma proposição lógica kantiana, seria como dizer que se a Constituição Federal retira a sua validade da norma hipotética fundamental, então ela é válida.

Deste vetor surge a possibilidade de se criar uma teoria pura do direito, sem qualquer tipo de interferência política, sociológica, filosófica ou de outras áreas do conhecimento, até porque, restou comprovado, ao menos teoricamente, que a norma jurídica possui validade em si própria, sendo possível, desta forma, que o juspositivismo não seja refutado pela Guilhotina de Hume, dado que, frise-se: a Constituição Federal, que é uma norma de dever ser e que dá validade a todo o ordenamento jurídico, também deriva de uma outra norma de dever ser denominada norma hipotética fundamental.

Mediante esta teoria pura do direito, a interpretação da norma deve ter, por finalidade, a própria norma, e não seria possível incluir dentro deste pensamento a existência de princípios individuais elementares e estranhos à norma, até porque, conforme restou demonstrado, esta seria válida e infalível por ela mesma, salvo se estivesse em discordância com a Constituição Federal.

Importante destacar que a referida teoria encontra inúmeros problemas.

Primeiramente, a norma hipotética fundamental não poderia, de modo algum, ser uma norma jurídica, tendo em vista que, de acordo com o próprio modelo proposto por Kelsen, as normas jurídicas devem retirar a sua validade de outras normas jurídicas que sejam superiores, e, desta forma, caso a referida norma hipotética fosse jurídica, ela deveria, necessariamente, retirar a sua validade de outra norma jurídica superior, e, como ela é a fundamental, ou a elementar, deveria, para ser jurídica, ter retirado a sua validade de outra superior que igualmente fosse jurídica, e assim por diante[76]; desta forma, não sobrevindo a constituição federal de uma norma jurídica superior, não há que se falar em uma teoria pura do direito, tendo em vista que o ordenamento jurídico retirou a sua legitimidade de um pressuposto não jurídico, mas sim social[77], logo, o direito dependeria de outras disciplinas para se sustentar e jamais poderia ser justificado em si mesmo. Em segundo plano, é de se observar que a norma hipotética não está positivada em lugar nenhum, mas é, como dito acima, teórica, implícita e subjetiva (e não positiva), o que fere a própria lógica do juspositivismo que exige que todas as normas jurídicas, além de serem aprovadas mediante um processo de criação válido e previsto na constituição federal[78], estejam positivadas para, de dentro do ordenamento jurídico positivo, retirarem a sua validade[79]. Por fim, é forçoso ressaltar que a teoria acaba sendo refutada pela própria Guilhotina de Hume, pois seria possível inferir que o comando da norma hipotética fundamental é justamente o de impor obediência a uma constituição federal, e, se este é o comando normativo fundamental, logo, presume-se que uma sociedade necessita de uma constituição federal; e, se esta necessita de uma constituição federal, também necessitará de um conjunto de normas para regular as condutas das pessoas[80]; ou seja, se é presumível o fato de que a sociedade precisa deste conjunto de normas, logo, a norma hipotética fundamental com natureza de dever ser acaba sendo derivada de uma norma de ser (pessoas necessitam de um ordenamento jurídico validado por uma constituição federal) e acaba se tornando arbitrária de acordo com a própria teoria de Hume.

Sobrepassados os argumentos críticos, este tipo de pensamento fundamentou uma das maiores violações de direitos humanos da história, ocorridas no contexto da Alemanha nazista no período da Segunda Guerra Mundial. Ora, a fundamentação para a aplicação de penas desumanas contra as pessoas era juridicamente correta de acordo com o juspositivismo: todas as penas estavam previstas em lei, e todas elas estavam em consonância com a constituição federal, e, como a validade da norma é retirada de uma outra norma superior, afastando-se qualquer inclusão da moralidade ou da racionalidade humana para a sua aplicabilidade, tem-se que, juridicamente falando, em uma ótica estritamente juspositivista, todas as violações gritantes e evidentes contra a vida e a dignidade daquelas vítimas foram legítimas de acordo com a cultura jurídica vigente naquele país, impulsionada, frise-se, pelo juspositivismo.

Tanto é que as autoridades, julgadas por atos praticados antes da criação do Tribunal de Nuremberg, que foi criado justamente para punir os crimes horrendos praticados no período da Segunda Grande Guerra, justificaram, em sua defesa, justamente o estrito cumprimento do dever legal.

O argumento de que os oficiais nazistas estavam apenas cumprindo ordens superiores já havia sido previsto no Estatuto do Tribunal. Segundo este, tal situação não eximiria o responsável, mas poderia, dependendo do caso, ser considerada para diminuição da pena. Neste ponto, a defesa foi massacrada pela promotoria, que apoiou-se no código militar alemão, o qual proibia aos soldados obedecerem ordens ilegais. Por mais que se considerasse a centralização das decisões na figura de Hitler, e que as suas ordens constituíssem a lei, era inconteste o argumento do Ministério Público de que o cumprimento de ordens para massacre de milhões de judeus feria valores humanitários e seu caráter ilegal era de conhecimento dos réus.[81]

Resta evidenciado que o juspositivismo em seu sentido estrito, que retira validade da letra fria da norma, demonstrou-se ineficaz para tutelar direitos básicos da vida humana, que só são possíveis de serem deduzidos por intermédio da própria moralidade e racionalidade humanas, tendo em vista que um dos principais argumentos da acusação feita pelos Aliados foi, justamente, a violação do caráter humanitário das sanções Estatais ante a aplicação fria da legislação ora vigente no país. Ou seja: a acusação valeu-se de uma tese tecida com base na moralidade e racionalidade humanas, e não com base na estrita norma positivada e escrita, para encetar a condenação das autoridades públicas que foram acusadas dos crimes praticados na Segunda Grande Guerra.

Conclui-se, desta forma, que a ascensão do juspositivismo decorreu justamente da base filosófica proposta por David Hume, e que o seu declínio ocorreu mediante o seu notório e evidente fracasso em promover uma situação jurídica estável aos seres humanos em tempos de crise (Segunda Guerra Mundial).

É certo que os fatos ocorridos no período da Segunda Guerra Mundial trouxeram uma espécie de trauma global quanto a possibilidade de que o Estado esteja livre para violar direitos e garantias moralmente e racionalmente fundamentais à vida humana. A experiência adquirida foi a de que permitir uma abertura demasiadamente elástica às atuações do Estado[82] conduziria de forma necessária a uma violação de preceitos humanos individuais moralmente e racionalmente perceptíveis.

Com isto, houve uma rápida reforma em vários países ao redor do mundo, no sentido de, não abandonando as balizas juspositivistas que fracassaram na Segunda Grande Guerra, insistirem na positivação de normas intituladas como princípios fundamentais para tutelarem os direitos racionalmente dedutíveis pelo jusnaturalismo, como a vida, liberdade, propriedade privada, dentre outros. Ou seja, observa-se, no período pós-guerra, o surgimento de uma espécie de pós-positivismo, ou de uma constitucionalização positivada de direitos naturais dentro do próprio texto das constituições federais, bem como a criação de órgãos internacionais e inter-regionais com a finalidade específica de orientar a comunidade mundial acerca da importância de se respeitarem direitos inerentes à vida humana.

Os princípios fundamentais são cláusulas abertas e gerais, positivados em uma constituição federal, que devem conduzir a criação das mais variadas normas, sob pena de, existindo a afronta a essas normas constitucionais-fundamentais, acarretar nulidade da legislação pretendida.

Cria-se um cenário em que os ordenamentos jurídicos passam a ser interpretados não somente com base na letra fria da norma, mas também com base nesses princípios deontológicos e abertos que foram positivados na maioria das constituições ao redor do planeta.

As lições obtidas com a derrocada do fascismo motivaram inovações e releituras das normas constitucionais, inaugurando o direito constitucional contemporâneo. Diante do tratamento desumano vivenciado pelos regimes totalitários, o plano normativo consagrou a dignidade da pessoa humana como eixo central desta nova fase do Direito Constitucional. Essa construção teórica irradiou-se em outros grupos de direitos fundamentais, como os direitos à fraternidade, à democracia e à paz.[83]

Contudo o novo direito prestigiado no período pós-guerra também detém problemas, pois, em uma sociedade com leis positivas e que afastam a razão humana para a sua aplicabilidade, o surgimento de normas abertas com hierarquia superior às outras faz com que ocorra uma certa insegurança jurídica no meio social. Ora, se determinada norma positivada está plenamente vigente e de acordo com as normas previstas na constituição federal, seria possível cogitar-se a possibilidade de que esta mesma norma seja tida como inválida em decorrência de violar um princípio que possui uma interpretação livre por parte dos magistrados.

No final das contas, praticamente em qualquer situação e mediante a análise de qualquer norma, se bem fundamentada e trabalhada, seria possível discorrer um argumento de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que acaba despertando uma espécie de protagonismo do poder judiciário, que, por intermédio dos princípios positivados constitucionalmente, possuem, na prática, uma discricionariedade ilimitada para proferirem decisões baseadas em princípios de interpretação ampliativa.

Como cabe ao judiciário a capacidade de interpretar a norma, e, levando-se em consideração a ampla liberdade para interpretá-la com base nesses princípios, seria possível inclusive que se perpetuem decisões visivelmente contrárias à própria lei e à própria constituição federal, e, inclusive, aos próprios princípios positivados, desde que essas decisões estejam, igualmente, fundamentadas nesses princípios. Mesmo sendo o pós-positivismo mais benéfico do que o juspositivismo em sentido estrito, dado que, agora, as pessoas no geral possuem uma cláusula geral de proteção às liberdades individuais[84], este sistema de interpretação mediante cláusulas abertas acarreta um protagonismo exacerbado por parte do poder judiciário, que, como órgão incumbido de interpretar a lei e a constituição federal, tem, em suas mãos, uma possibilidade perigosa de praticamente invalidar legislações e negar direitos e princípios, desde que fundamente a decisão com base nestes vetores constitucionais.

Finalmente, o neoconstitucionalismo é uma vertente de pensamento extremamente recente e que surgiu no início do século XXI, que possui o intuito de ampliar ainda mais o constitucionalismo citado anteriormente, interligando a interpretação dos princípios positivados na constituição federal com a moral humana e a razão humana, o que, de certa forma, é revolucionário ao comparar com o pensamento juspositivista que afasta a inclusão da moral e da razão humanas para a criação e interpretação do direito.

Trata-se de uma corrente que não pode ser considerada como derivada do juspositivismo, pois, frise-se: o juspositivismo possuiu, desde sempre, a intenção de afastar a razão humana para a criação e aplicação do direito, dada a premissa sustentada por Hume de que o jusnaturalismo, sustentado justamente com base neste mesmo vetor voltado à racionalidade, é arbitrário por derivar regras gerais de conduta provenientes de fatos naturais observáveis, ou, seja, é crível dizer que jusnaturalismo e juspositivismo são completamente antagônicos. O que se observa com o neoconstitucionalismo é uma tentativa de aproximação entre o juspositivismo e o jusnaturalismo, mediante a formação de um sistema misto que inclui normas positivas que devem respeito a uma constituição federal positivada, e a inclusão da razão humana para a realização de suas interpretações. Contudo, o neoconstitucionalismo rechaça a ideia de que os direitos naturais sejam superiores às normas constitucionais positivadas[85]. O que existe é a interpretação mediante a razão e moral humanas dos princípios que já estão positivados na constituição federal.

Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional.[86]

Uma interessante fundamentação teórica do neoconstitucionalismo decorre do fato de que as balizas do juspositivismo clássico não se amoldam aos tempos modernos, que apresentam sociedades que rompem vários paradigmas com uma velocidade jamais vista na história, fazendo com que a legislação permaneça sempre desatualizada em relação aos tempos atuais.

Sem qualquer sombra de dúvidas, no modelo neoconstitucional, o protagonista das mudanças sociais é justamente o juiz, pois este personagem terá a incumbência de analisar a norma por intermédio de uma constituição federal plenamente aplicável, valendo-se da moral humana para satisfazer os conflitos que lhes são submetidos.

Este pensamento, entretanto, não é livre de críticas, pois, dado que o sistema jurídico atual é, em essência, baseado no juspositivismo, seria necessário que a própria constituição federal ou a própria lei conferisse um maior protagonismo para a interpretação das normas jurídicas, mesmo que essas sejam feitas de acordo com a constituição, até porque, este sistema coloca em risco tanto o prestígio do poder executivo quanto do poder legislativo, dado que, em última instância, o poder judiciário poderia simplesmente se tornar um moderador dos outros dois, dizendo, com base em princípios, quais leis e políticas públicas são corretas ou não de acordo com o seu entendimento racional e moral.

Se existe um modo peculiar de teorização e aplicação do Direito Constitucional, pouco importa a sua denominação, baseado num modelo normativo, (da regra ao princípio), metodológico (da subsunção à ponderação), axiológico (da justiça geral à justiça particular) e organizacional (do Poder Legislativo ao Poder Judiciário), mas esse modelo não foi adotado, não deve ser adotado, nem é necessariamente bom que o seja, é preciso repensá-lo, com urgência. Nada, absolutamente nada é mais premente do que rever a aplicação desse movimento que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo no Brasil.

Se verdadeiras as conclusões no sentido de que os seus fundamentos não encontram referibilidade no ordenamento jurídico brasileiro, defende-lo, direta ou indiretamente, é cair numa invencível contradição performática: é defender a primazia da Constituição, violando-a. O neoconstitucionalismo, baseado nas mudanças antes mencionadas, aplicado no Brasil, está mais para o que se poderia denominar, provocativamente, de uma espécie enrustida de não-constitucionalismo: um movimento ou uma ideologia que barulhentamente proclama a supervalorização da Constituição enquanto silenciosamente promove a sua desvalorização.[87]

E qual seria a razão de existirem tantas mudanças para a criação, interpretação e aplicação do direito? Ora, a razão decorre justamente da necessidade de se garantir a ordem de uma sociedade, bem como os direitos individuais mínimos dos cidadãos. Esta é a essência do direito.

De outro modo, a essência do processo está atrelada à essência do direito. Esta é, justamente, a de garantir meios para que os cidadãos possam constituir os seus direitos eventualmente violados por intermédio do poder judiciário, que exerce a jurisdição. Desta forma, como houve a evolução teórica do direito, que, atualmente, busca, por intermédio do neoconstitucionalismo, a integração da norma com a razão e moral humanas, também é necessária a interpretação sobre a aplicação do processo, por intermédio do neoprocessualismo, para muni-lo com ferramentas tendentes a resolver os problemas das partes litigantes, e não o contrário.

A isto é possível chamar o Processo Principiológico Flexível: a adoção de uma postura, por parte do magistrado, tendente a resolver os problemas dos jurisdicionados, com respeito aos princípios previstos na constituição federal e em leis esparsas, considerando que o processo é um acessório que busca a concretização do direito material. As questões práticas trazidas no tópico anterior traduzem que há a necessidade de que o poder judiciário adote essa postura, pois todas as jurisprudências defensivas erigidas pelos magistrados podem ser contestadas por intermédio de princípios que estão positivados na constituição federal e nas leis esparsas, e, se assim o é, deveria existir um protagonismo tendente a permitir maior amplitude ao acesso à justiça, e não o contrário, pois, conforme se demonstrou, a maioria das jurisprudências defensivas está fundada, em essência, na dificuldade administrativa de o poder judiciário conseguir gerir a sua gestão de trabalho interno[88].

4.1. Diferenças entre o processo de natureza sancionatória e o processo de natureza privada

Importante traçar a distinção entre dois tipos de naturezas processuais distintas entre si: os processos de natureza sancionatória e os processos de natureza privada. Verifica-se que nos primeiros casos, o próprio processo visa proteger outros princípios reflexos, enquanto, no segundo caso, o processo normalmente iria resguardar a igualdade de oportunidades em termos procedimentais, visando garantir o contraditório e a ampla defesa.

Seria possível conceituar o processo de natureza sancionatória como todo aquele em que o Estado busca a aplicação da sanção ou punição legal contra um particular, em uma relação jurídica vertical, como ocorre, majoritariamente, no âmbito do direito administrativo, tributário, penal, ambiental etc. Já o processo de natureza privada pode ser conceituado como todo aquele em que um particular busca a materialização de um direito subjetivo, seja de forma individual, por intermédio dos procedimentos de jurisdição voluntária, seja de forma litigiosa, quando busca este direito contra outra parte, de forma horizontal.

Como nos processos de natureza sancionatória o Estado busca a efetivação de uma sanção ou de uma punição legal, verifica-se que, para a comprovação de suas alegações, o Estado poderá infringir outros direitos da parte fiscalizada ou investigada. No âmbito tributário, por exemplo, caso o Estado necessite conhecer da movimentação bancária da parte fiscalizada, deverá adotar uma espécie de procedimento que vise a garantia ao sigilo bancário, que é referendada pela constituição federal como um princípio fundamental. No âmbito penal, por exemplo, para assegurar os bons andamentos da investigação ou da persecução e caso reste demonstrado que a parte investigada poderá, de algum modo, atrapalhar a sua produção de provas, deverá adotar, igualmente, uma espécie de procedimento que vise a garantia da liberdade de locomoção, presunção de inocência, dignidade da pessoa humana etc.

Ou seja: os processos de natureza sancionatória devem possuir um rigor procedimental maior quanto ao deferimento de eventuais medidas, pois estas normalmente estão diretamente conectadas em outros direitos, referendados em princípios constitucionais ou legais, garantidos à parte fiscalizada ou investigada.

Já nos processos de natureza privada, como a parte busca a efetivação de uma pretensão subjetiva material em uma relação jurídica horizontal, a parte interessada não fiscalizará, tampouco investigará, a outra, mas tentará produzir provas às suas expensas e requerer, ao judiciário, a produção daquelas que visem a garantia de sua pretensão. No âmbito cível, a parte poderia exigir, por exemplo, a cobrança de um contrato inadimplido e não a aplicação de uma sanção ou punição estatal por conta da violação de uma norma de caráter público. Para isto, o juízo deverá garantir o direito para que a outra parte responda a imputação que lhe está sendo feita. No âmbito relacionado ao direito de família, a parte poderia pedir, por exemplo, que a guarda de seu filho seja concedida de forma unilateral, permitindo que o cônjuge realize somente visitações. Para isto, o juízo deverá garantir, igualmente, a manifestação da outra parte para que requeira o que desejar, para, ao final, o caso ser decidido.

Não se verifica, no âmbito dos processos de natureza privada, uma intensidade de princípios reflexos tal qual se verifica no âmbito dos processos de natureza sancionatória. Por isso, nada impede que o magistrado adote uma postura menos rígida para o deferimento das medidas procedimentais tendentes à conclusão da demanda. De qualquer modo, seja no âmbito dos processos de natureza sancionatória ou privada, deverá o magistrado somente adotar uma maior instrumentalidade aos procedimentos a serem deferidos caso reste demonstrado que a medida não incorrerá em eventual prejuízo a algum direito reflexo da parte, devendo, nestes últimos casos, adotar uma postura mais rígida.

No âmbito recursal, todavia, como o que está envolvido são direitos fundamentais relacionados ao duplo grau de jurisdição, acesso à justiça e instrumentalidade das formas, deve o magistrado sempre procurar corrigir ou superar eventual questão formal para que a demanda possa ser rediscutida perante um outro magistrado, até porque, nenhum prejuízo existirá caso a demanda seja analisada, em seu mérito, mesmo mediante a ausência de algum requisito procedimental.

4.2. Postura ativa construtiva (não destrutiva) por parte do magistrado no âmbito da condução processual

De acordo com os casos concretos estudados anteriormente, verifica-se que houve, por parte do poder judiciário, a adoção de uma postura ativa destrutiva no âmbito processual e recursal. Diz-se destrutiva, pois, naqueles casos, o magistrado preferiu adotar uma postura defensiva, ao negar o julgamento do mérito da demanda, fundamentando-se em um tecnicismo exacerbado que poderia ser contornado, com o intuito de garantir a manutenção da demanda para que o seu mérito fosse julgado.

A postura ativa construtiva por parte do magistrado é a que está sendo defendida neste trabalho: o magistrado deve, sempre que houver mera irregularidade de natureza formal que não cause prejuízo sério às partes, permitir, corrigir ou determinar que a parte o corrija em tempo hábil, com o intuito de assegurar o andamento do processo para que este seja julgado em seu mérito.

Analisar-se-á, por exemplo, a súmula 356 do STF, que dispõe que o ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento. Ora, qual seria o objetivo deste entendimento jurisprudencial senão criar uma definitiva armadilha processual não prevista em lei à parte que não interpor embargos declaratórios com o intuito de prequestionar eventual omissão da decisão recorrida? Acaso teriam os aclaratórios efeitos infringentes e potencialmente modificativos de uma decisão como regra geral? Acaso não poderia exercer o juízo de retratação ao observar a fundamentação do recurso? Acaso a interposição dos aclaratórios configura como requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário? Verifica-se que este é um outro exemplo de postura ativa destrutiva por parte do poder judiciário, pois acaba se debruçando em questões técnicas e formais que não trazem qualquer prejuízo às partes e que poderia, inclusive, ser facilmente resolvida, seja por parte do tribunal recorrido, seja por parte do tribunal que recepciona o recurso, que poderia advertir, antes de inadmitir o recurso, que há a necessidade cumprir o referido requisito, e, eventualmente, concedendo-lhe prazo suplementar para tanto.

A adoção deste posicionamento seria democrática, tendo em vista que o poder judiciário estaria respeitando o cidadão, primando pela correção de eventuais irregularidades procedimentais e colocando-se à disposição para julgar o mérito da sua demanda.

A solução para o problema da parte que eventualmente não prequestionou a questão por intermédio de embargos declaratórios seria uma postura ativa construtiva por parte do poder judiciário. Poder-se-ia indagar que a solução proposta não teria embasamento legal expresso para tanto, contudo, de modo contrário, existe embasamento legal expresso para fundamentar a existência do referido entendimento jurisprudencial, inclusive sumulado? É possível, entretanto, defender a postura ativa e construtiva com base nos princípios do duplo grau de jurisdição e instrumentalidade das formas, até porque a norma processual prevista na Constituição Federal garante o direito ao jurisdicionado de recorribilidade[89] das decisões proferidas por parte do Poder Judiciário. No art. 10 do Código de Processo Civil, por exemplo, há a disposição de que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Em sendo o exame de admissibilidade recursal uma matéria que deverá ser decidida de ofício pelo magistrado, poderia, com base neste dispositivo, fundamentar a regularização do eventual vício procedimental verificado no recurso interposto pela parte, bem como servir de fundamentação para a proposta apresentada ao problema que fora criado mediante a interpretação defensiva por parte do STF neste caso.

A base da postura ativa construtiva por parte do poder judiciário possui embasamento na própria concepção acerca da finalidade do processo, que é, justamente, a de servir de ferramenta às partes para que estas possuam a condição de discutirem, perante um juiz, as teses constitutivas ou extintivas de seus direitos materiais. O processo, desta forma, não pode ser interpretado como uma finalidade em si mesmo, mas sim como um acessório ou como uma ferramenta para a discussão acerca de determinado direito material. Em não sendo o processo uma finalidade em si mesmo, a sua finalidade é para com a efetivação do direito material.

Sob a ótica neoprocessualista, José Carlos Barbosa Moreira assim dispõe:

Querer que o processo seja efetivo é querer que desempenhe com eficiência o papel que lhe compete na economia do ordenamento jurídico. Visto que esse papel é instrumental em relação ao direito substantivo, também se costuma falar da instrumentalidade do processo. Uma noção conecta-se com a outra e por assim dizer a implica. Qualquer instrumento será bom na medida em que sirva de modo prestimoso à consecução dos fins da obra a que se ordena; em outras palavras, na medida em que seja efetivo. Vale dizer: será efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material[90]

O advogado Alexandre Sturion de Paula, em sua dissertação de mestrado, defendida perante o Programa de Mestrado em Direito Negocial, com concentração em Direito Processual Civil da Universidade Estadual de Londrina, que visou estudar o ativismo judicial no processo civil, discorreu de forma crítica acerca do formalismo exacerbado praticado pelo poder judiciário:

Os juízes, portanto, diante do cenário jurídico-processual devem principiar pela suplantação de formalismos jurídicos que em nada corroboram com o acesso à justiça e efetividade do processo. Destarte, a dogmatização da forma deve ceder espaço à valorização do conteúdo que segue no bojo da forma. Pois assim não o fazendo estaremos relegando os avanços ditados pelo constitucionalismo social vigente, assim como dos próprios avanços das reformas processuais.

Não podemos olvidar em conceber que o quebrantar de formalidades excessivas, por vezes irracionais, impulsionam uma interpretação criativa do direito, porém, como bem leciona Binenbojm, toda atividade judicial, sobretudo em matéria constitucional, tem uma dimensão essencialmente criativa, de forma a adaptar o frio relato normativo às circunstâncias específicas de cada caso.

E a prestação jurisdicional requerida pela parte autora, em determinados casos clama justamente pela necessidade da presença de um julgador que deixe a clausura ou comodismo da letra fria da lei, que por vezes facilita a negativa da ação pela ausência de cumprimentos rigorosos de formalismos que em essência nada obstariam o conhecimento de mérito da lide, mas que ao fundo representam a contabilização de um processo a menos na Comarca, e um recurso a mais para as instâncias superiores, tudo em razão do temor ou propalada neutralidade do juiz, que antes de imparcial, concebemos como omisso.

O juiz cunhado em forma positivista, que dogmatiza a lei em detrimento dos valores presentes no processo distancia-se diametralmente do juiz que vislumbra no processo necessidade de cidadãos que, por vezes, dependem em determinado momento de sua vida de um urgente e esperançoso provimento judicial para que algum bem da vida lhe seja garantido ou concedido. [91]

A referida obra, defendida em 2012, está em consonância com a essência do Código de Processo Civil, que, em sua exposição de motivos, buscou trazer uma legislação que combatesse o formalismo exacerbado, deveras criticado pelos jurisdicionados e pela comunidade jurídica:

Há mudanças necessárias, porque reclamadas pela comunidade jurídica, e correspondentes a queixas recorrentes dos jurisdicionados e dos operadores do Direito, ouvidas em todo país. Na elaboração deste Anteprojeto de Código de Processo Civil, essa foi uma das linhas principais de trabalho: resolver problemas. Deixar de ver o processo como uma teoria descomprometida de sua natureza fundamental de método de resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais.

Assim, e, por isso, um dos métodos de trabalho da Comissão foi o de resolver problemas, sobre cuja existência há praticamente unanimidade na comunidade jurídica. Isso ocorreu, por exemplo, no que diz respeito à complexidade do sistema recursal existente na lei revogada.

Se o sistema recursal, que havia no Código revogado, em sua versão originária, era consideravelmente mais simples que o anterior, depois das sucessivas reformas pontuais que ocorreram, se tornou, inegavelmente, muito mais complexo.

Não se deixou de lado, é claro, a necessidade de se construir um Código coerente e harmônico interna corporis, mas não se cultivou a obsessão em elaborar uma obra magistral, estética e tecnicamente perfeita, em detrimento de sua funcionalidade.

De fato, essa é uma preocupação presente, mas que já não ocupa o primeiro lugar na postura intelectual do processualista contemporâneo.

(...)

O novo Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo.[92]

A defesa de um processo rigorosamente juspositivista afronta de forma diametral a evolução acerca da concepção que se dá, atualmente, sobre o direito. Conforme estudado anteriormente, o ordenamento jurídico encontra-se inserido dentro de uma ótica pós-positivista, ou, até mesmo, caminhando para uma ótica neoconstitucionalista, porém, de nada adianta conferir à interpretação do direito um maior dinamismo social se o processo continua retrógrado em suas metodologias e hermenêuticas. Não é possível defender a evolução de um direito que busque a plena satisfação das normas e dos princípios constitucionalmente previstos sem um processo que, igualmente, esteja dissociado deste ideal.

Boa parte dos doutrinadores defendem que a interpretação do direito material deve estar em conformidade com a constituição, e, em assim sendo, deve o processo ser interpretado da mesma forma, sob pena de que as evoluções conquistadas em praticamente todas as áreas do direito material não possuam aplicabilidade prática por não possuírem um processo racional que os conduza a uma decisão judicial que esteja valorada nestes vetores.

Neste sentido, no âmbito do direito penal, leciona o professor Luiz Regis Prado:

Com precisão se assenta que, a ciência do Direito Penal e o constitucionalismo moderno são praticamente coetâneos: ambos nasceram ao abrigo das ideias políticas da Ilustração, no empenho de se assinalar os limites do poder do Estado. E por isso não é meramente casual que ao Direito Penal incumbe regular o instrumento mais temível desse poder, seu último recurso: a pena.

A relação entre a Constituição e o subsistema penal é tão estreita que o bem jurídico-penal tem no texto constitucional suas raízes materiais (teoria constitucional estrita relativa).

Trata-se de norma basilar para a salvaguarda dos direitos fundamentais, para que a interpretação e aplicação da lei penal sejam feitas sempre conforme a Constituição, e os ditames do Estado democrático e social de Direito (Estado Constitucional). E é exatamente na garantia absoluta dos direitos fundamentais que reside o conteúdo essencial de legitimidade do Direito Penal.[93]

No âmbito do direito tributário, as normas constitucionais são tão íntimas dessa seara que acabam por trazer as regras limitadoras do poder de tributar por parte do Estado, não podendo o ente federativo instituir obrigação tributária quando não respeitados esses princípios:

É importante que tais limites sejam positivados no texto constitucional, e não na legislação infraconstitucional, pois o Direito Tributário, diferentemente da maior parte dos demais ramos do Direito, é um Direito nitidamente obrigacional, mas nele o Estado, parte credora, detém a chamada tríplice função1 de elaborar as regras aplicáveis às relações em que se vê envolvido, regulamentar e aplicar essas regras, além de julgar os conflitos decorrentes dessa aplicação. Isso não acontece no Direito Civil, no Direito Empresarial, no Direito do Consumidor ou no Direito do Trabalho, em relação aos quais, por maior que seja o desequilíbrio eventualmente observado entre as partes, nenhuma delas é detentora de referidas funções. Em razão disso, para que a relação tributária seja uma relação jurídica, e não uma relação apenas de poder, é importante que a separação de poderes e a jurisdição em face do poder público sejam efetivas, o que pressupõe a existência de uma Constituição que assim estabeleça, em normas que não possam ser alteradas pelo legislador. Mas, mesmo havendo a separação de poderes ou funções, não se pode negar que também os membros do parlamento, e muitas vezes os do próprio Judiciário, têm interesse na arrecadação tributária, que em última análise mantém a estrutura da qual fazem parte. Daí a importância de que as principais limitações ao poder de tributar constem da Constituição, que o conforma e disciplina, transformando-o em competência.

Em face da essencialidade e da importância dessas limitações, consagrou- se, dentro de uma terminologia já tradicional na literatura jurídica nacional, chamá-las de princípios. Tem-se, assim, o princípio da legalidade, o princípio da anterioridade, o princípio da irretroatividade etc.[94]

Até mesmo no âmbito do direito civil a visão constitucionalista ganha potencial relevância:

O conceito de Direito Civil Constitucional, à primeira vista, poderia parecer um paradoxo. Mas não o é. O direito é um sistema lógico de normas, valores e princípios que regem a vida social, que interagem entre si de tal sorte que propicie segurança em sentido lato para os homens e mulheres que compõem uma sociedade. O Direito Civil Constitucional, portanto, está baseado em uma visão unitária do ordenamento jurídico. Ao tratar dos direitos fundamentais, José Joaquim Gomes Canotilho também fala em unidade da ordem jurídica, sustentando a viabilidade de uma interação entre o Direito privado e a Constituição, mesmo que em tom cético. Para o mesmo Gustavo Tepedino, um dos principais idealizadores desse novo caminho metodológico, é imprescindível e urgente uma releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição. Desse modo, reconhecendo a existência dos mencionados universos legislativos setoriais, é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil.

O Direito Civil Constitucional, como uma mudança de postura, representa uma atitude bem pensada, que tem contribuído para a evolução do pensamento privado, para a evolução dos civilistas contemporâneos e para um sadio diálogo entre os juristas das mais diversas áreas. Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da forma de interação dos dois ramos do direito o público e o privado -, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso.[95]

Poder-se ia citar doutrinadores de todos os outros ramos do direito que defendem a ideia de que o fenômeno jurídico material deve ser interpretado de acordo com a constituição federal, por conta de uma mudança de paradigma introduzida pela mentalidade neoconstitucionalista. Porém, frise-se: de nada adiantaria a evolução acerca do paradigma no âmbito do direito material, buscando adotar uma interpretação mais condizente com a constituição federal, sendo que o próprio direito processual, que serve de ferramenta para a sua implementação no plano concreto não acompanha esta evolução na prática, mas que, de modo contrário, cerceia, por intermédio de um formalismo demasiadamente exagerado, a discussão prática acerca das evoluções ocorridas no âmbito do direito material.

Destarte a postura ativa destrutiva por parte do judiciário deve ser revista pelo próprio judiciário, objetivando interpretar as normas processuais de forma racional, nos termos da constituição federal, abandonando de forma definitiva o formalismo que foi rechaçado pela própria essência do novo código de processo civil, que serve de vetor subsidiário para todos os outros ramos processuais. A súmula 356 do STF[96], por exemplo, deve ser revista de forma imediata, pois não é concebível, tampouco aceitável e tolerável, vislumbrar um preciocismo processual deste calibre e que irá inadmitir a análise do direito aventado pelo jurisdicionado caso este não cumpra com um requisito que sequer está previsto em lei, mas que fora construído mediante uma jurisprudência defensiva calcada na morosidade judiciária, que, conforme se defende com veemência, não será resolvida mediante a alteração das normas, mas sim mediante a alteração administrativa das rotinas de trabalho e de metas do próprio poder judiciário.

A repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, trazida nos tópicos anteriores como exemplo, fracassou de forma completa como um filtro que possuía o intuito de aliviar o fluxo processual a ser analisado pelo STF. Não bastasse o fracasso desta medida, o STJ insiste em aprovar, por intermédio de seu tribunal pleno, conforme explicado anteriormente, uma proposta de emenda constitucional para criar uma espécie de repercussão geral no âmbito da interpretação de leis federais. Ora, se a repercussão geral não funcionou como requisito de admissibilidade para desobstruir o excesso de processos que são remetidos ao STF, qual seria a razão lógica de que este mesmo filtro iria servir para amenizar o fluxo de trabalho no âmbito do STJ? Aqui não se critica o instituto da repercussão geral em si mesmo, que visivelmente possui um grande potencial de ajudar o jurisdicionado a resolver os seus conflitos perante o judiciário mediante a utilização de um caso já julgado pelas cortes superiores, mas o que se critica é a utilização deste instituto como um requisito de admissibilidade, ou como um filtro, para impedir o acesso à justiça por parte do jurisdicionado, considerando que a sua demanda não seria digna de valor político, social, econômico ou jurídico suficientes para ser julgada por um órgão do poder judiciário.

A mudança de um poder judiciário que possui uma atitude ativa destrutiva[97], conforme restou demonstrado da análise de alguns casos concretos, deve ser moldada com base na mentalidade que pende acerca dos processos interpostos para análise por parte do jurisdicionado. Se a constituição federal emana, em seu art. 5º, XXXV, a inafastabilidade do poder judiciário, bem como, no parágrafo único de seu art. 1º que todo poder emana do povo, a mentalidade que deve existir no âmbito do poder judiciário é a de que os magistrados se capacitam para servir ao povo de forma qualificada, e não o contrário. Adotando-se tão somente este tipo de mentalidade[98], soaria estranho defender uma jurisprudência defensiva, ou uma postura ativa destrutiva, pois, ao proceder de tal sorte, estar-se-ia negando o acesso à justiça ao próprio povo, que é destinatário dos serviços prestados pelo poder judiciário.

Não bastasse a adoção de uma mentalidade destinada a servir aos jurisdicionados de forma qualificada, faz-se necessária a interpretação do processo de acordo com os princípios previstos na constituição federal e nas legislações esparsas. Faz-se necessária uma interpretação mais abrangente principalmente sobre o princípio da instrumentalidade das formas, da fungibilidade recursal e do duplo-grau de jurisdição, pois estes são os principais vetores que poderiam flexibilizar a rigidez positivista que paira no âmbito processual atual. No exemplo trazido pela súmula 356 do STF, verifica-se que a corte máxima simplesmente ignorou a aplicabilidade dos referidos princípios para adotar uma postura ativa destrutiva, ao invés de interpretar o evento fático para conferir mais facilidades ao jurisdicionado de acessar as instâncias superiores.

Importante ressaltar, novamente, que o acesso às instâncias superiores foi conferido pelo constituinte originário, que previu, no próprio texto da constituição, que as referidas cortes superiores não funcionariam tão somente para julgar casos abstratos, mas também como legítimas cortes de apelação, competentes para analisar eventual ofensa à constituição federal ou da legislação federal verificada no caso concreto do particular.

5. Conclusões

Verifica-se que o processo não possui uma finalidade em si mesmo, mas funciona como uma ferramenta para que o direito material seja concretizado no plano fático.

Analisando-se a evolução metodológica tanto do direito material quanto do direito processual, verificou-se que ambos trilharam o mesmo caminho: evoluíram de uma fase cujas normas derivaram da razão, moral e bom-senso humanos (jusnaturalismo e praxismo) para uma interpretação extremamente formalista-positivista (juspositivismo e processualismo). Através da tentativa de aplicabilidade prática, seja do direito material, seja do direito processual, mediante uma postura extremamente positivista, observou-se que esses sistemas não serviam para regular de forma efetiva o direito dos jurisdicionados. Após esta experiência negativa, surge a necessidade de se conjugar tanto o direito material quanto o direito processual com vetores relacionados a princípios, que são cláusulas gerais de interpretação aberta, positivados tanto em uma constituição federal quanto nas legislações esparsas (pós-positivismo e instrumentalismo). Por fim, nasce uma nova ótica acerca da interpretação do direito material e processual, que é aquela tendente de efetivar no plano concreto, por intermédio da razão e da moral humanas, as normas previstas na constituição federal (neoconstitucionalismo e neoprocessualismo).

O direito processual possui diversos princípios explícitos e implícitos que efetivam a sua instrumentalidade para que este sirva de ferramenta para a concretização da discussão acerca do direito material pretendido pela parte.

Porém, os princípios do duplo grau de jurisdição, fungibilidade recursal e instrumentalidade das formas não são prestigiados, na prática, pelo poder judiciário, o que acaba por trazer complicações ao jurisdicionado, que, em muitos casos, acaba tendo que suportar uma decisão que encerra a marcha processual sem uma análise definitiva acerca do direito material pretendido.

O poder judiciário erige diversas jurisprudências defensivas, ou adota posturas ativas destrutivas, que possuem fundamento, na maioria dos casos, no excesso de recursos interpostos pelos jurisdicionados ou pelo excesso de demandas ajuizadas. Tais posicionamentos jurisprudenciais, em muitos casos, não possuem previsão legal para tanto, como, por exemplo, a impossibilidade de as cortes superiores procederem com o reexame de fatos e de provas para analisarem recursos dirigidos às instâncias superiores.

Destarte, em que pese existirem princípios que servem justamente para dirimir as complexidades processuais, com o intuito de garantir o acesso à justiça aos jurisdicionados, o poder judiciário, ao invés de adotar uma postura ativa construtiva, acaba procedendo de forma inversa: em existindo dúvidas, opta por não conhecer o recurso interposto pelo jurisdicionado por conta da ausência de eventual requisito formal, ceifando a possibilidade de que a sua demanda seja reanalisada por outro magistrado.

Existem outras formas pelas quais o poder judiciário pode recusar a análise de uma demanda que seja mediante o não conhecimento de recursos, como ocorrem nos casos em que decide, de forma subjetiva, pois não há lei regulamentando objetivamente a questão, indeferir o pedido de justiça gratuita requerido pelo jurisdicionado. A lei processual a respeito deste tema dispõe que haverá presunção de veracidade na declaração de hipossuficiência exarada por particular, porém, mesmo assim, é possível encontrar inúmeras decisões proferidas no caso concreto que afastam a presunção legal, baseadas na fundamentação de que os direitos não são absolutos, ou que existe um evidente abuso por parte dos jurisdicionados que requerem esses direitos.

Verifica-se que o pensamento moderno sobre a concepção do direito é justamente a interpretação do fenômeno jurídico de acordo com a constituição federal, com o intuito de concretizar os valores e princípios previstos nesta Carta.

Contudo, de nada adianta interpretar o direito material para que este concretize os fundamentos e valores constitucionais, se, quando o jurisdicionado ajuíza uma demanda, os ditos valores constitucionais materiais não são sequer analisados por conta de algum tipo de formalismo exacerbado, criado até mesmo ao arrepio da lei, que poderia ser afastado mediante a interpretação de princípios constitucionais e infraconstitucionais para garantir o efetivo acesso ao jurisdicionado, para que este obtenha uma decisão de mérito, e não meramente formal ou processual, acerca do seu pedido.

Não convence a defesa de uma jurisprudência defensiva, ou a adoção de uma postura ativa destrutiva pelo fato de o poder judiciário possuir um excesso de demandas para julgar, pois, se o problema está relacionado com a capacidade administrativa de trabalho, este deve ser resolvido de forma administrativa, alterando as metas, construindo mais edificações, contratando mais servidores estatutários ou comissionados e magistrados, revendo rotinas e eventuais procedimentos internos de trabalho, buscando promover maior eficiência nas atividades desempenhadas por este poder, sem que isto prejudique a qualidade dos julgamentos entregues aos jurisdicionados, que devem ser concretos e cuidadosos. Caso não existam recursos suficientes para tanto, talvez seja necessário rever eventuais excessos orçamentários que estão sendo mal administrados pelo Estado, pois, antes de qualquer coisa, é necessário efetivar a constituição federal quando ela determina que o judiciário deve trabalhar com celeridade e eficiência.

É necessária uma mudança definitiva de pensamento por parte dos membros do poder judiciário, que devem prestigiar o jurisdicionado e servi-lo como forma a garantir um processo mais justo, racional e solidário, evitando o apego a formalismos extremamente juspositivistas e que sirva de ferramenta para concretizar os avanços obtidos acerca da interpretação do direito material, em todas as suas vertentes, buscando a efetivação concreta dos objetos, valores e princípios trazidos pela constituição democrática.

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Sobre o autor
Rodrigo Nunes Sindona

Advogado, mestre em direito pela FADISP, especialista em direito tributário, previdenciário e empresarial pela EPD, direito penal e constitucional pela Faculdade LEGALE, Defensor Dativo junto ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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