O ARTIGO 147-B DO CÓDIGO PENAL E O NOVO CRIME DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER
Este estudo tem por objetivo averiguar a inserção da violência psicológica contra a mulher, nos termos do art. 147-B do Código Penal, forma de violência que já havia sido prevista na Lei Maria da Penha. Assim, busca-se discorrer sobre a violência contra a mulher e os mecanismos de enfrentamento no Estado brasileiro e identificar as formas de violência contra a mulher, apresentando conceito e fundamento legal. Ainda, busca averiguar os fundamentos do Projeto de Lei que culminou na inserção da violência psicológica contra a mulher no Código Penal e relacioná-lo à prática prevista na Lei Maria da Penha. A pesquisa classifica-se como dedutiva, descritiva e bibliográfica. Constata-se que a violência psicológica contra a mulher, agora tipificada no Código Penal, reflete a tomada de consciência da necessidade de se ampliar a tutela da mulher, vítima de qualquer forma de violência, bem como as consequências das práticas de humilhação, dos xingamentos, da privação de contato com familiares, dentre outras situações que comprometem o bem-estar mental da mulher. E, considerando que a Lei Maria da Penha não apresentou, quando da sua edição, tipos penais, a existência de um artigo específico permite que os julgadores, na análise do caso concreto, e considerando o disposto no inciso II, do art. 7º da Lei Maria da Penha c/c o art. 147-B do Código Penal, responsabilize o agressor e tutele a liberdade da mulher.
Palavras-chave: Violência. Mulher. Âmbito Doméstico. Saúde Mental. Art. 147-B.
This study aims to investigate the inclusion of psychological violence against women, under the terms of article 147-B of the Penal Code, a form of violence that had already been foreseen in the Maria da Penha Law. Thus, we seek to discuss violence against women and the mechanisms of confrontation in the Brazilian State and identify the forms of violence against women, presenting a concept and legal basis. Still, it seeks to ascertain the foundations of the Bill that culminated in the insertion of psychological violence against women in the Penal Code and to relate it to the practice provided for in the Maria da Penha Law. The research is classified as deductive, descriptive and bibliographical. It appears that psychological violence against women, now typified in the Penal Code, reflects the awareness of the need to expand the protection of women, victims of any form of violence, as well as the consequences of humiliation practices, swearing , deprivation of contact with family members, among other situations that compromise the mental well-being of women. And, considering that the Maria da Penha Law did not present, when it was edited, criminal types, the existence of a specific article allows judges, in the analysis of the concrete case, and considering the provisions of item II, of article 7 of the Maria da Penha Law with article 147-B of the Penal Code, hold the aggressor accountable and protect the woman's freedom.
Keywords: Violence. Women. Domestic Scope. Mental health. Art. 147-B.
1 INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher não é um fenômeno recente na história da humanidade, embora tenha ganhado evidência há pouco tempo, o que se deve a fatores diversos, como os resquícios do patriarcalismo. É, pois, um fenômeno que desperta atenção há tempos, principalmente após ganhar visibilidade e tornar-se centro de debates a partir das décadas de 1960 e 1970, com os movimentos feministas. Porém, foi a partir da edição da Lei Maria da Penha que a questão passou a fomentar maiores discussões quanto a outras formas de violência, além da física.
Contudo, a Lei Maria da Penha é restrita aos casos em que a violência é perpetrada no âmbito doméstico e familiar, valendo-se da relação de afeto entre agressor e vítima. Portanto, apenas com a recente alteração do Código Penal, modificando o art. 147-B no referido diploma, é que a violência psicológica contra a mulher, praticada em qualquer âmbito, passa a ser compreendida como crime.
O art. 147-B, inserido no Código Penal por força da Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021, vem, portanto, ampliar o alcance da violência psicológica e a consequente responsabilização do infrator, por não estar restrita ao ambiente doméstico e familiar.
Por se tratar de tipo penal introduzido recentemente no ordenamento jurídico brasileiro, ainda são escassos os estudos, sendo a aplicabilidade da pesquisa inquestionável, inclusive para nortear os operadores do Direito e acadêmicos na compreensão do tipo penal inserto no art. 147-B do Código Penal.
Desta feita, busca-se responder à seguinte indagação: como se dará a aplicação do novo dispositivo que versa sobre o crime de violência psicológica contra a mulher, à luz do Código Penal e da Lei Maria da Penha?
Assim, tem-se como objetivo geral averiguar como será aplicado o art. 147-B do Código Penal, que trata da violência psicológica contra a mulher, à luz do referido diploma legal e da Lei Maria da Penha. E, como objetivos específicos busca-se discorrer sobre a violência contra a mulher e os mecanismos de enfrentamento no Estado brasileiro; identificar as formas de violência contra a mulher, apresentando conceito e fundamento legal; averiguar os fundamentos do Projeto de Lei que culminou na inserção do art. 147-B no Código Penal; e, ao final, relacionar a violência psicológica contra a mulher praticada no âmbito doméstico e familiar e a violência psicológica tipificada no Código Penal.
Em meio a esse cenário busca-se não apenas compreender os requisitos para a configuração da violência psicológica no termos do art. 147-B do Código Penal, mas o conceito apresentado pela doutrina, pois, como já dito, desde a Lei Maria da Penha, editada no ano de 2006, é modalidade de violência expressamente consagrada na legislação pátria, bem como as consequências desta grave forma de violência.
Outrossim, pretende-se também aferir como a jurisprudência vem se posicionando quanto ao reconhecimento da violência psicológica, embora se saiba que em relação ao art. 147- B será difícil encontrar decisões nos Tribunais, em virtude da recente inserção do tipo penal no direito pátrio. Neste turno, a Lei Maria da Penha permitirá compreender a questão e a relevância desta modalidade de violência.
Para alcançar os objetivos supra, adota-se como método de abordagem o qualitativo e, como método de procedimento, o descritivo. No que diz respeito à técnica de pesquisa, classifica-se como bibliográfica, pois se busca na doutrina, legislação, artigos, periódicos, dentre outras fontes, elementos para a compreensão do tema.
Para tanto, divide-se o estudo em três capítulos. No primeiro contextualiza-se a violência de gênero, abordando os aspectos conceituais e o papel da mulher em sociedade.
No segundo capítulo, por sua vez, discorre-se sobre a proteção conferida à mulher vítima de violência doméstica no ordenamento jurídico brasileiro, mormente na Lei Maria da Penha e na Lei do Feminicídio, momento em que também se discorre sobre as formas de violência abarcadas pela Lei Maria da Penha.
Por fim, no terceiro capítulo, trata-se da violência psicológica contra a mulher, apresentando o conceito e como o tema foi tratado na Lei Maria da Penha, o que dispõe o art. 147-B do Código Penal e, ainda, o posicionamento jurisprudencial.
2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO
A violência doméstica é um problema que assola todo o país, não fazendo distinção entre raça, credo, escolaridade, condição social, clamando do Poder Público e da sociedade especial atenção. Por isso, nos últimos anos foram editadas diversas normas para assegurar maior proteção à mulher vítima de violência. Contudo, antes de se adentrar na análise da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, por exemplo, é importante contextualizar conceitual e historicamente a violência de gênero, objeto deste primeiro capítulo.
2.1 Aspectos conceituais e históricos
A violência contra a mulher é um tema complexo. Embora tenha sido debatido nas últimas décadas, não só faz parte do debate no campo jurídico, mas também envolve outras áreas do conhecimento, como psicologia, psiquiatria, sociologia, política. Embora haja particularidades em uma ou outra sociedade, em determinados momentos históricos, isso depende do papel desempenhado pelo ser humano e depende do papel desempenhado pela mulher, ou seja, a violência doméstica está intrinsecamente relacionada a fatores culturais.
Portanto, compreender as questões relacionadas à violência doméstica e doméstica contra a mulher, especialmente os fatores que incentivam a violência doméstica, requer o reconhecimento de que essa forma de violência é produto da construção histórica e cultural, ou seja, deve ser considerada desde o início. Observa-se que a violência não é um fenômeno novo na sociedade brasileira, existindo no processo histórico desde a antiguidade até a atualidade.
A partir desse princípio, é necessário compreender o conceito de violência, principalmente porque a Lei Maria da Penha é o primeiro diploma do ordenamento jurídico brasileiro que trata especificamente desse assunto, ou seja, o aspecto está relacionado a mulheres e homens.
Segundo Cavalcanti (2014), a violência doméstica pode ser dirigida a homens e mulheres, pode ocorrer no âmbito familiar e nas relações familiares (pais, mães, filhos, jovens e idosos), podendo ocorrer em mulheres e crianças, principais vitimados.
Na família, a violência doméstica é permanente porque o agressor exerce poder hierárquico sobre a vítima (seus descendentes ou ascendentes), e a vítima é facilmente manipulada, mantendo-se calada antes que o agressor seja agredido, seja ameaçando-o, após cada incidente violento, eles iriam confundi-los de forma amigável. Portanto, esta é considerada uma prática repetitiva porque as partes são muito próximas e moram juntas.
Essa repetitividade é justamente o que torna o fenômeno único, pois a vítima e o réu se encontram todos os dias.
Vale ressaltar que para que ocorra a violência, o indivíduo está relacionado à dominação, portanto, na relação amorosa, um dos sujeitos trata principalmente o outro sujeito, fazendo-o se render à sua vontade. Portanto, a ocorrência de violência doméstica está diretamente relacionada à relação de poder na família, pois essa combinação de poder costuma ser estabelecida por meio do uso da força e da regra.
Portanto, pode-se entender que as categorias de poder, hierarquia e subordinação são exercidas no espaço familiar e envolvem todos os membros da família, e se destacam no que tange a configuração da violência doméstica.
No entanto, é importante esclarecer que, de acordo com Souza (2017), a violência de gênero, a violência doméstica e a violência contra a mulher estão inter-relacionadas, embora sejam conceitualmente diferentes, principalmente em abrangência. Portanto, a violência contra a mulher é resultado de relações de poder estabelecidas pela desigualdade de gênero ao longo da história e consolidadas pelo patriarcado e por ideologias sexistas. Esses hábitos e costumes sociais e culturais profundamente enraizados afetam e violam a dignidade das mulheres. É, pois, um ataque a sua integridade física, mental e sexual.
Uma das formas de violência de gênero é a violência conjugal, que é a mais difícil de comprovar porque ocorre em território privado e sem contato com estranhos. Na maioria dos casos, as mulheres agredidas permanecem em silêncio e não procuram ajuda. Isso acontece porque elas tem vergonha, ou dependem do agressor financeiramente ou emocionalmente, ou, ainda, porque as vítimas acreditam em suas desculpas, ou sentem-se culpadas pela agressão, dentre questões outras.
Ainda, a violência conjugal se refere ao comportamento específico de um marido violento em uma relação íntima entre mulheres adultas, independentemente de o comportamento ser legal ou não. No entanto, deve ser esclarecido que o termo "violência doméstica" é geralmente usado como gênero e inclui violência de gênero, violência doméstica em sentido estrito e violência de casal.
A violência doméstica e familiar contra as mulheres é o resultado de uma sociedade masculina que visa educar as mulheres. Nesta sociedade, os filhos do sexo masculino podem fazer tudo, as filhas são frequentemente cercadas de insignificância e forçadas a permanecer em silêncio diante de comportamentos tão cruéis, mas seus corpos são frágeis.
Daí a afirmativa de Day et al. (2013, p. 15), que explica ser a violência contra mulheres é diferente da violência interpessoal em geral. Nesse sentido a autora explicita que os homens têm maior probabilidade de serem vítimas de pessoas estranhas ou pouco conhecidas, enquanto que as mulheres têm maior probabilidade de serem vítimas de membros de suas próprias famílias ou de parceiros íntimos.
A violência doméstica contra as mulheres na família tem uma posição vantajosa nas relações emocionais. Eles dependem da situação dos maridos para mantê-las e, por isso, se submetem a situações depreciativas e ataques pessoais. A atuação dos homens geralmente não é voltada a eliminar o corpo dela, mas por meio do controle obrigatório, a propriedade que possuem, ou melhor, o sentimento de posse.
Ainda segundo Day et al. (2013, p. 15) justifica que "na violência doméstica contra a mulher, o abuso pelo parceiro intimo é mais comumente parte de um padrão repetitivo, de controle e dominação, do que um ato único de agressão física".
Portanto, a violência doméstica contra as mulheres inclui todas as violações dos direitos humanos, civis, sociais, econômicos, culturais, políticos e outros direitos. É por isso que Melo e Teles (2003) conceituam violência como o uso do poder físico, mental ou intelectual para forçar outros a agirem contra sua vontade, impedir que outros expressem sua vontade e ser punido por viver sob possíveis ameaças físicas ou, em casos mais graves, culmina no homicídio. Na mesma esteira é a lição de Dias (2013, p. 195), que sobre a noção de violência, pontua:
A violência, frequentemente, está ligada ao uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer. A relação de desigualdade entre o homem e a mulher, realidade milenar que sempre colocou a mulher em situação de inferioridade lhe impondo a obediência e a submissão, é terreno fértil à afronta ao direito à liberdade.
Nesse ponto cumpre ressaltar que a Lei Maria da Penha tem por objetivo, como se extrai dos arts. 1º a 5º da Lei nº 11.340/2006, instituir mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ou, como leciona Bianchini (2013, p. 30), coibir e prevenir a violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto.
Portanto, é dirigido a um público específico, embora a violência doméstica possa afetar outras pessoas, como crianças, jovens ou idosos. No entanto, neste caso, os diplomas legais acima mencionados não se aplicam, ao passo que outros regulamentos, como o Estatuto do Idoso, por exemplo.
Ao tratar especificamente do conceito de violência doméstica, Dias (2013, p. 46) define, inicialmente, a unidade doméstica, ressaltando tratar-se do [...] espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. Portanto, para a autora, a unidade doméstica é imprescindível para a configuração da violência em comento.
No entendimento de Cunha e Pinto (2012, p. 49), a agressão no âmbito da unidade doméstica compreende aquela praticada no espaço caseiro, envolvendo pessoas com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.
Não destoa desse entendimento Teles e Melo (2003, p. 19), precursores no estudo do problema, para os quais é a [...] violência que ocorre dentro de casa, entre os familiares, homens e mulheres, pais e filhos, jovens e idosos, mas que incontestavelmente tem como principal vítima desse tipo de violência a mulher.
Desta feita, a violência doméstica está diretamente ligada as relações de poder e acontece dentro do ambiente doméstico e familiar, modalidade de violência que há muito tempo se volta principalmente à mulher, pois é pautada na dominação do homem pela mulher com o qual mantém ligações de afeto (PORTO; COSTA 2010).
A primeira questão a se ressaltar, neste ponto, é a violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar que se baseia em uma série de fatores históricos e culturais que criaram uma ideologia que diminui a inferioridade das mulheres perante os homens, principalmente devido à ideologia patriarcal. Sempre suprimiu e enfraqueceu a autoestima das mulheres (CUNHA; PINTO, 2015).
Em meio a esse cenário, Cunha e Pinto (2015, p. 49) chamam a atenção para o fato de que a violência doméstica e familiar contra a mulher é modalidade de agressão, num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), com finalidade específica de objetá-la, isto é, dela retirar direitos, aproveitando da sua hipossuficiência.
Portanto, inclui uma forma de discriminação e abuso das diferenças de gênero, que restringe o exercício dos direitos básicos das mulheres, que, pelo simples fato de serem mulheres, sofrem diversas formas de humilhação, tortura, terrorismo e, em casos mais extremos, a morte, como já dito anteriormente.
Segundo Dias (2013), isso ocorre porque a violência contra a mulher é um produto da arquitetura histórica. Desde os tempos antigos, as mulheres tiveram seus direitos básicos gravemente violados, como o direito à vida, à liberdade e à disposição física.
Além disso, a própria história relata que o fundamento é cultural, e seu fundamento é a desigualdade entre o agressor e a vítima, o que leva à relação de dominação e dominação. Nesse
caso, o patriarcado foi inquestionavelmente aceito por ambos os sexos na maior parte da história e é legal com base em diferentes papéis de gênero, homens e mulheres, os valores a eles associados e a segregação de gênero entre o privado e o público. Portanto, enquanto as mulheres cuidavam das questões relacionadas à família, se limitando à esfera privada, os homens se envolviam em atividades públicas. Logo, a atuação das mulheres se conformavam à condição e imagem masculina, de provedor.
Essa diferenciação de gênero acaba levando a batalhas dolorosas entre homens e mulheres, e reflexos físicos e emocionais negativos são produzidos devido ao colapso parcial desse poder patriarcal (DIAS, 2013).
Vale destacar que o eixo patriarcal de governança é aprisionar a sexualidade feminina na função reprodutiva e aprisioná-la no cuidado da família e dos filhos. Ou seja, como afirma Andrade (2006), a mulher era a protagonista da relação familiar no casamento, no que dizia respeito à reprodutividade, filiação e trabalho doméstico, embora, na seara pública, quem atuava era o homem.
Como se isso não bastasse, os atributos necessários para os papéis inferiores e inferiores de mulheres, esposas, mães e empregadas domésticas são extremos em relação aos homens. As mulheres são baseadas na emoção, subjetividade, passividade, vulnerabilidade, desamparo, paz, humildade, família e ter um papel feminino (ANDRADE, 2006).
Ainda segundo Andrade (2006) historicamente, a violência no âmbito familiar ocorria porque, em uma sociedade patriarcal, a família era considerada um dos locais onde as mulheres exerciam o controle social informal. No seio da família, o abuso de mulheres podem ser vistos como uma manifestação de poder e dominação. Nesse cenário, todos se encontravam diante do simbolismo de gênero com a sua poderoso estereotipo e carga estigmatizante.
Este simbolismo que está enraizado nas estruturas que homens e mulheres reproduzem, evidencia a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças biologicamente determinadas e naturais. Neste contexto o sexo feminino é representado por membros de um gênero subordinado, na medida em que determinadas qualidades, bem como o acesso a papéis e esferas política, econômica e da justiça, por exemplo, são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico e não ao outro (ANDRADE, 2006).
Outra questão que precisa ser enfatizada é a desigualdade social e cultural, que é um dos principais fatores da predominância dos homens sobre as mulheres e sua discriminação. Ao longo da história da humanidade, os homens são considerados superiores e fortes, e os fatores biológicos dos homens superiores às mulheres são os principais argumentos usados para justificar o casamento e o patriarcado (DIAS, 2013).
A esse respeito, Dias (2013, p. 19) complementa:
Ao homem sempre coube o espaço público. A mulher foi confinada nos limites da família e do lar, o que ensejou a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor; outro de submissão, interno e reprodutor. Ambos os universos, ativo e passivo, criam polos de dominação e submissão. A essa diferença estão associados papéis ideais atribuídos a cada um: ele provendo a família e ela cuidando do lar, cada um desempenhando a sua função. Padrões de comportamento assim instituídos de modo tão distinto levam à geração de um verdadeiro código de honra. A sociedade insiste em outorgar ao macho um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão da fêmea. As mulheres sempre receberam educação diferenciada, pois necessitavam serem mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e desejos. O tabu da virgindade e a restrição ao exercício da sexualidade sempre limitaram a mulher.
O fato é que devido à relação desigual entre homens e mulheres dos povos primitivos, a divisão do trabalho é diferente em termos de gênero e, quando os homens vão caçar, as mulheres se dedicam às atividades mais próximas de casa.
Portanto, é possível perceber a explicação biológica que define a racionalidade feminina e a impotência profissional no período primitivo. A força física do homem prefere a caça, e a estrutura corporal da mulher é considerada mais adequada para criar filhos e coletar alimentos. As mulheres são consideradas mais fracas e por isso não podem fazer parte da luta pela conquista e sobrevivência, estando, portanto, destinadas a ser mães (DIAS, 2013).
Durante séculos, as mulheres viveram em um complexo de inferioridade em relação aos homens, sofrendo com os mais tipos de preconceito, discriminação e atrocidades. Foi somente no século XX é que as condições das mulheres começaram a mudar por meio dos movimentos femininos (HERMANN, 2008, p. 67).
Com a introdução do capitalismo, no século XIX, houve significativas mudanças na sociedade ocidental. Nesse caso, as mulheres, que se dedicavam essencialmente às famílias, passaram a trabalhar em grandes fábricas e ocupar lugares públicos. No entanto, esse modo de produção capitalista acabou exacerbando as diferenças entre homens e mulheres, que foram substituídas no mercado de trabalho como mão de obra barata, comprovando as diferenças entre homens e mulheres (MOREIRA, 2007).
No século XIX, a efervescência dos ideais democráticos fez da batalha pelo direito ao voto o impulso fundamental dos movimentos feministas. As mulheres eram equiparadas aos doentes, deficientes mentais e crianças, e consideradas intelectualmente incapazes de exercer direitos políticos (HERMANN, 2008).
No Brasil, a primeira fase do feminismo se concentrou na luta das mulheres pelos direitos políticos, lutando pelo direito de candidatura dos candidatos. Porém, foi somente em 1933 que a lei eleitoral brasileira ampliou o direito de voto e a representação política das mulheres e, desde então, para defender outras exigências, a bandeira do feminismo foi levantada (DIAS, 2013).
Segundo Hermann (2008), em toda sua trajetória, o movimento feminista se viu diante de um embate, pois se de um lado buscava a igualdade, de outro pretende marcar as diferenças entre homens e mulheres.
Destarte, a Lei Maria da Penha é, portanto, o protótipo da dicotomia na relação desigual entre homens e mulheres e a confirmação de que a sociedade, o Estado e as próprias mulheres persistem na sobrevalorização da intervenção penal como instância de enfrentamento da violência doméstica (HERMANN, 2008), ignorando que muitos são os fatores que contribuem para o fomento desta modalidade de violência.
2.2 O papel da mulher na sociedade e os reflexos na violência de gênero
Desde os tempos antigos que a mulher tem passado por graves violações em seus direitos mais fundamentais, como direito à vida, à liberdade, a disposição de seu corpo, dentre outras. Nesse cenário, os movimentos feministas tem uma característica peculiar, que é a busca pelo reconhecimento de algum direito (ou direitos), alterando o foco segundo o momento histórico vivenciado, buscando a igualdade entre homens e mulheres.
A questão é bem elucidada por Siqueira et al. (2020, p. 222), in verbis:
Dentro dessa herança estrutural de preconceitos, encontram-se as questões de gênero. Para romper com essa estrutura, os movimentos feministas foram um importante instrumento que revelaram a viabilidade de novas condutas de ação do Estado. Neste contexto, ganharam destaque os estudos sobre as relações de poder estabelecidas entre mulheres e homens nas conjugalidades e nas famílias, no mercado de trabalho e em diversas áreas, visando desconstruir os códigos que naturalizam e perpetuam desigualdades para superar os sistemas sexistas
O primeiro Código Civil editado no Brasil, no ano de 1916, considerando os valores da época e o papel exercido pela mulher, via de regra no âmbito doméstico, refletia a sociedade machista, patriarcal e hierárquica do século XIX, visto que fora confeccionado no final daquele século. Segundo Dias (2013, p. 1), com a nova lei [...] a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido.
Além disso, com o Código Civil de 1916 o casamento passa a ser considerado jurídica e socialmente indissolúvel, pois configurava o laço da verdadeira família, impondo à mulher a
adoção obrigatória do sobrenome do marido. Assim, qualquer vínculo afetivo extramatrimonial não poderia gerar direito.
No mesmo período nasce o movimento sufragista, que envolveu quase toda a Europa e utilizou tanto os meios pacíficos quanto os de combate para defender seus direitos. No Brasil o direito ao voto foi formalmente conquistado na Constituição de 1934.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o trabalho da mulher, assim como ocorreu mundialmente quando da Primeira Guerra Mundial, alterou o cenário da mulher no mercado de trabalho. Somente a partir da década de 1960 é que a mulher, no Estado brasileiro, ganhou alguma visibilidade, o que se deve principalmente ao advento da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962 Estatuto da Mulher Casada, como se extrai da lição de Dias (2013, p. 1-2):
[...] devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal. Mesmo tendo sido deixado para a mulher a guarda dos filhos menores, sua posição ainda era subalterna. Foi dispensada a necessidade da autorização marital para o trabalho e instituído o que se chamou de bens reservados, que se constituía do patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu trabalho. Esses bens não respondiam pelas dívidas do marido, ainda que presumivelmente contraídas em benefício da família (DIAS, 2013, p. 1-2).
Outro marco no direito brasileiro deu-se em 1977 com a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977) e da introdução da Emenda Constitucional nº 9 que reconheceram a dissolubilidade do casamento (DIAS, 2013).
Nos anos de 1980, como enfatizam Narvaz e Koller (2006, p. 649), as mulheres brasileiras passaram a se preocupar com as questões de gênero, adentrando no campo do estudo sobre as mulheres e os sexos, tendo como desafio pensar, simultaneamente, a igualdade e a diferença na constituição das subjetividades masculina e feminina.
Ainda nesse cenário, como lecionam Miguel e Biroli (2014, p. 114), prevalecia tradicionalmente, e por questões culturais, a falta de autonomia da mulher. Para os autores é no casamento que as posições convencionalmente definidas estão mais claras, fazendo com que muitas mulheres, de classe média, ao se casarem ou terem filhos, deixem para trás suas aptidões para o trabalho remunerado e passem a cuidar da família, tornando-as dependentes financeiramente do cônjuge ou familiares e vulneráveis em casos de divórcio ou relação violenta, tendo aquelas aptidões não domésticas e/ou profissionais diminuídas (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 114).
Destarte, as diferenças entre homens e mulheres, por questão de gênero, reflete em diversas searas, como a já citada falta de autonomia da mulher e o seu papel em sociedade. Portanto, a conquista de direitos hoje concebidos como inquestionáveis, principalmente pela
consagração do princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988, é resultado de conquistas gradativas. Contudo, em se tratando de violência contra a mulher, o papel por esta exercido em sociedade, por longos anos, ainda contribui para os altos índices de violência, como se passa a expor no próximo capítulo.
3 A PROTEÇÃO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Como dito anteriormente, é recente, na história brasileira, normativas específicas para tutelar a mulher, vítima de violência doméstica, sendo mister abordar a Lei Maria da Penha e a Lei do feminicídio, objeto deste segundo capítulo.
3.1 Lei Maria da Penha
Segundo Cavalcanti (2014), a violência doméstica pode ser dirigida a homens e mulheres, podendo ocorrer no âmbito familiar e nas relações familiares (pais, mães, filhos, jovens e idosos), tendo como principais vitimados mulheres e crianças.
Na família, a violência doméstica é permanente porque o agressor exerce poder hierárquico sobre a vítima (seus descendentes ou ascendentes), manipulando-a facilmente, por outro lado, com intuito de se evitar conflitos, a vítima se mantém em silêncio por receio de sofrer novas agressões, desse modo o agressor exerce manipulação por diversos meios, seja ameaçando-a ou utilizando de chantagem. Portanto, esta é considerada uma prática repetitiva tendo em vista que agressor e vítima, na maioria das vezes, residem no mesmo espaço.
De acordo com Souza (2017), a violência de gênero, a violência doméstica e a violência contra a mulher estão inter-relacionadas, embora sejam conceitualmente diferentes, principalmente em abrangência. Portanto, a violência contra a mulher é resultado de relações de poder estabelecidas pela desigualdade de gênero ao longo da história e consolidadas pelo patriarcado e por ideologias sexistas. Esses hábitos e costumes sociais e culturais profundamente enraizados afetam e violam a dignidade das mulheres. É, pois, um ataque à sua integridade física, mental e sexual.
A violência doméstica e familiar contra as mulheres é o resultado de uma sociedade masculina que visa educar as mulheres. Nesta sociedade, os filhos do sexo masculino podem fazer tudo, as filhas são frequentemente cercadas de insignificância e forçadas a permanecer em silêncio diante de comportamentos cruéis, mas seus corpos são frágeis. Daí a afirmativa de Day et al. (2013, p. 15), que explica ser a violência contra mulheres diferente da violência interpessoal em geral. Nesse sentido, a autora explicita que os homens têm maior probabilidade de serem vítimas de pessoas estranhas ou pouco conhecidas, enquanto que as
mulheres têm maior probabilidade de serem vítimas de membros de suas próprias famílias ou de parceiros íntimos.
Portanto, a violência doméstica contra as mulheres inclui todas as violações dos direitos humanos, civis, sociais, econômicos, culturais, políticos e outros direitos. É por isso que Melo e Teles (2003) conceitua violência como o uso do poder físico, mental ou intelectual para forçar outros a agirem contra sua vontade, impedir que outros expressem sua vontade e ser punido por viver sob possíveis ameaças físicas ou, em casos mais graves, culmina no homicídio.
Na mesma esteira é a lição de Dias (2013, p. 195), que sobre a noção de violência, pontua:
A violência, frequentemente, está ligada ao uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer. A relação de desigualdade entre o homem e a mulher, realidade milenar que sempre colocou a mulher em situação de inferioridade lhe impondo a obediência e a submissão, é terreno fértil à afronta ao direito à liberdade.
Nesse ponto, a Lei Maria da Penha tem por objetivo, como se extrai dos arts. 1º a 5º da Lei nº 11.340/2006, instituir mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ou, como leciona Bianchini (2013, p. 30), coibir e prevenir a violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto.
Não se pretende, nesse ponto, esgotar a análise da Lei nº 11.340/2006, seja pela complexidade, seja pela impossibilidade de se analisar todos os dispositivos legais. O que se busca, portanto, é demonstrar as principais alterações introduzidas pelo referido diploma legal no que tange a proteção da vítima de violência doméstica e familiar.
É uníssono, dentre os estudiosos do tema, que a Lei Maria da Penha é um divisor de águas no que tange a proteção da vítima de violência doméstica e familiar, principalmente porque até o advento da Lei nº 11.340/2006 os delitos praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher eram concebidos como de menor potencial ofensivo, de competência, portanto, dos Juizados Especiais Criminais, o que contribuiu para a banalização desta forma de violência.
A Lei que regulamenta os Juizados Especiais Criminais, qual seja, a Lei nº 9.099/1995, traz, em seu art. 61, o conceito de infrações de menor potencial ofensivo, sendo, pois, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2, dois anos, cumulada ou não com multa (BRASIL, 1995).
De acordo com Dias (2013), como os casos de violência doméstica eram compreendidos, em sua grande maioria, como lesão corporal leve, salvo as hipóteses em que se configurava a tentativa de homicídio ou o homicídio, quando então o julgamento era de competência do Tribunal do Júri, eram concebidos como de pequeno potencial ofensivo, de competência, portanto, dos Juizados Especiais Criminais. Logo, os conflitos podiam se resolver de forma consensual, e admitiam, por exemplo, a aplicação de penas restritivas de direito, o que o senso comum denominou de pagamento de cestas básicas.
Significa dizer que quando os agressores eram denunciados e processados, retornavam para as suas casas após a primeira audiência, quando aceitavam, via de regra, a transação penal com a aplicação de uma pena restritiva de direito, o que fomentava a impunidade, pois as vítimas temiam até mesmo denunciar seus agressores.
Com o advento da Lei n º 11.340/2006, por expressa determinação do art. 41, restou afastada a incidência da Lei nº 9.099/1995 nos delitos praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Significa dizer que independentemente da pena prevista para o crime, não será o agressor processado e julgado no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, ainda que se trate de lesão corporal de natureza leve, por exemplo.
Outra questão importante diz respeito à ampliação do próprio termo violência contra a mulher. Isso se deve porque o art. 7º da Lei em comento que cuidou de ampliar o conceito de violência, pois embora muitas sejam as formas como este fenômeno se exterioriza, via de regra é relacionada à violência física. E para afastar essa errônea impressão é que o legislador, no bojo da Lei nº 11.340/2006, mormente em seu art. 7º, destacando que a violência contra a mulher pode se exteriorizar pela forma física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Portanto, faz-se necessário averiguar as diversas formas de violência doméstica na Lei Maria da Penha, objeto do próximo tópico.
3.2 Das diversos formas de violência
Como dito acima, a Lei Maria da Penha tratou de ampliar o conceito de violência, dispondo em seu art. 7º sobre a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
A violência física, nos termos do inciso I, do art. 7º, é compreendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal (BRASIL, 2006). Portanto, como bem leciona Dias (2013), trata-se de agressão que não necessariamente precisa deixar marcar aparentes, embora também englobe o uso da força física que ofenda o corpo ou a saúde da
mulher, sendo mais comum à sua caracterização pela presença de hematomas, arranhões, queimaduras e fraturas.
A violência emocional, que na Lei Maria da Penha é denominada de violência psicológica. Para Melo e Telles (2003), neste tipo de violência o agressor se utiliza da intimidade para fazer ameaças que impedem ou prejudicam o exercício da autodeterminação e desenvolvimento pessoal da vítima. Ou seja, são ações ou omissões que visam degradar, dominar outra pessoa, controlando seus atos, comportamentos, crenças e decisões próprias.
Tem-se, ainda, a violência moral, que é tratada no inciso V, do art. 7º da Lei Maria da Penha, compreendida com qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).
Cunha e Pinto (2015), ao analisar a problemática da violência moral, ressaltam ser esta comumente praticada junto à violência psicológica, sendo comum a sua tipificação como crimes contra a honra, pois atingem a imagem que o indivíduo faz de si (injúria) ou a sua reputação perante a sociedade (calúnia ou difamação), via de regra por meio de atribuição de condutas negativas à vítima.
Além das três formas de violência acima expostas, tem-se também a violência sexual, compreendida, nos termos do inciso III, do art. 7º da Lei Maria da Penha. Desta feita, nas modalidades em comento, empregando-se a manipulação, as ameaças, a chantagem e o suborno, o agressor obriga a vítima a manter relação sexual contra sua vontade, e ocorre com o uso da força, dentro ou fora de casa (MELO; TELES, 2003).
A prática deste tipo de violência muitas vezes é contra pessoas da própria família do agressor, não só contra a companheira, mas filhas, enteadas, sobrinhas, etc., o que provoca um enorme constrangimento e abalo psicológico por parte da vítima em denunciar a prática, que muitas vezes sofre durante anos sem se manifestar.
Ao lado das demais formas, tem-se também a violência patrimonial, que segundo o inciso IV, do dispositivo legal em comento. Portanto, a violência patrimonial se caracteriza pela prática de delitos tipificados no Código Penal, pois, por exemplo, [...] o ato de subtrair, furtar os objetos da mulher, como elucida Dias (2013), configura o delito de furto (art. 157 do Código Penal), tendo como autor do crime pessoa com quem a vítima mantém relação afetiva, o que também se aplica a delitos outros, como a apropriação indébita e crime de dano, que desde o advento da Lei Maria da Penha enquadram-se, se presente a questão da violência de gênero no âmbito doméstico e familiar, no conceito de violência doméstica.
Em meio a esse cenário, em que se reconhece diversas formas para exteriorização da violência doméstica e familiar contra a mulher, há de se ressaltar a condição da mulher no
contexto histórico, já que o papel por esta exercido ao longo dos tempos está diretamente relacionada aos fatores que fomentam as práticas de violência no âmbito doméstico e familiar.
3.3 Lei do Feminicídio
A Lei nº 13.104/2015 alterou o Código Penal Brasileiro com a inclusão da qualificadora do feminicídio no crime de homicídio, dispondo sobre esta no inciso VI do art. 121, do referido diploma legal.
A motivação para a tipificação desta modalidade de homicídio encontra-se de forma clara na justificação do Projeto de Lei nº 292/2013, apresentada pelo Senado Federal, in verbis:
A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer, na forma da lei, que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade, e é social, por combater a impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido crime passional . Envia, outrossim, a mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade. Protege, ainda, a dignidade da vítima, ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem, midiaticamente, a condição de mulheres brutalmente assassinadas, atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas (BRASIL, 2013).
De acordo com a Lei nº 13.104, que entrou em vigor em 10 de março de 2015, o Código Penal Brasileiro passou a prever a qualificadora de Feminicídio no seu art. 121, inciso VI, atribuindo pena de reclusão de 12 a 30 anos quando o homicídio é praticado contar a mulher por razões da condição de sexo feminino (BRASIL, 2015).
Dessa forma, os requisitos típicos da qualificadora feminicídio são: a) homicídio cometido contra a mulher; b) por razões de sexo feminino; quando envolver; c) violência doméstica e familiar; d) menosprezo; e, ainda, f) discriminação à condição de mulher (BIANCHINI; GOMES, 2015).
Cunha e Pinto (2015, p. 79), ao analisar as alterações introduzidas no Código Penal afirmam que a incidência da nova figura criminosa reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher em situação de vulnerabilidade
Não há dúvidas que a prática do feminicídio pode ser realizada tanto por homem, quanto por mulher, sendo, inclusive, aceita a aplicação da qualificadora para mulher que vive em relação homoafetiva (FERNANDES, 2015).
Controvérsias podem residir na discursão do sujeito passível desta nova qualificadora, visto que o Direito Penal não admite analogia em desfavor do réu. Entende-se a impossibilidade
do feminicídio quando a vítima é um homem (ainda que de orientação sexual distinta da sua qualidade masculina) (BIANCHINI; GOMES, 2015). Porém, dada a complexidade do tema, não se abordará, nesse ponto, as discussões quanto à aplicabilidade ou não da Lei do Feminicídio aos transexuais.
Anote-se, ainda, que o Projeto de Lei nº 8.305/2014, que deu origem à Lei do Feminicídio, trazia em seu texto original o vocabulário gênero, ao dispor que [...] contra a mulher por razões de gênero. Durante seu trâmite, algumas alterações acabaram por retirar a termologia gênero, sendo a Lei do Feminicídio sancionada com o seguinte texto: contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
A expressão adotada pelo legislador, contudo, é alvo de críticas, como se extrai da lição de Cavalcante (2015):
A expressão escolhida é péssima. A redação é confusa, truncada e não explica nada. No projeto de lei, a locução prevista para o tipo era: se o homicídio é praticado contra a mulher por razões de gênero. Ocorre que, durante os debates, a bancada de parlamentares evangélicos pressionou para que a gênero da proposta inicial fosse substituída por sexo feminino, com objetivo de afastar a possibilidade de que transexuais fossem abarcados pela lei. A bancada feminina acabou aceitando a mudança para viabilizar a aprovação do projeto. Melhor seria se tivesse sido mantida a redação original, que, aliás, é utilizada na Lei Maria da Penha: configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero (art. 5º) e nas legislações internacionais.
Tal modificação poderia sugerir que a qualificadora deveria ser entendida sob o viés da categoria biológica (o sexo fêmeo). Contudo, este entendimento não é majoritário. Bianchini e Gomes (2015), por exemplo, defendem que a alteração não trouxe nenhum impacto relevante, visto que, mesmo com a apresentação por razões da condição de sexo feminino, o dispositivo continua sendo lido sob o viés da violência de gênero atinente à sociologia, padrões sociais do papel que cada sexo desempenha.
Decerto, a incidência da qualificadora reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de vulnerabilidade (CUNHA, 2015).
É notório que a violência de gênero esta correlacionada ao sistema patriarcal, porquanto busca manter a construção social acerca do gênero, pautado na desigualdade e hierarquização entre homens e mulheres. A definição de violência de gênero deve ser entendido como uma relação de poder, de dominação do homem e de submissão da mulher (MELO; TELES, 2003, p. 18).
Dando seguimento, vale dizer que para tipificação do feminicídio não basta que o sujeito passivo seja mulher, necessário averiguar se estão presentes as razões da condição de sexo
feminino, as quais foram esclarecidas no § 2º-A do art. 121, do Código Penal, a saber: I violência doméstica e familiar; II menosprezo ou discriminação à condição de mulher (BRASIL, 2015). Neste ponto, Cunha (2015) entende que o esclarecimento buscado pelo legislador é confuso, senão inútil, uma vez que o feminicídio já trata da violência contra a mulher em razão de gênero, comportando todos os estudos sobre este e de violência contra a mulher, não encontra necessidade para este acréscimo realizado pelo legislador.
Acrescenta o autor que o feminicídio traz na espécie o pressuposto de que a conduta do agente deve ser movida pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher (CUNHA, 2015). Não obstante, apesar da redundância do legislador, cumpre averiguar o que vem a ser violência doméstica e familiar contra a mulher.
Bianchini e Gomes (2015) destacam que a violência doméstica e familiar que configura uma das razões da condição do sexo feminino [...] não se confunde com a violência ocorrida dentro da unidade doméstica ou no âmbito familiar. Isso porque pode ocorrer o assassinato de mulheres por seus parceiros, mesmo que numa relação íntima, que não configure a razão elencada pelo legislador. Sendo necessária a averiguação da violência baseada no gênero para que se verifique a ocorrência do feminicídio.
No que tange ao feminicídio em virtude de menosprezo à condição de mulher, esta é verificada quando o agente pratica o crime por nutrir pouca ou nenhuma estima ou apreço pela vítima, configurando, dentro outros, desdém, desprezo, desapreciação, desvalorização (BIANCHINI; GOMES, 2015).
A Lei do Feminicídio também incluiu o § 7º ao art. 121 do Código Penal, que trata das causas de aumento desta qualificadora. Em relação ao inciso I, durante a gestação ou nos três primeiros meses seguintes ao parto, reside controvérsia quanto ao início parto. Para sanar o desentendimento, Cunha (2015) se vincula ao posicionamento que entende como termo inicial do parto as contrações expulsivas; nos casos em que o parto não é de modo espontâneo, o nascimento é determinado pelo início da operação (cesárea). Bianchini e Gomes (2015) salientam que o agente somente responde por ela se tinha conhecimento da situação de gestação da vítima, podendo ocorrer erro de tipo caso não tivesse tal ciência.
Quanto à causa de aumento trazida no inciso II, contra pessoa menor de quatorze anos e maior de sessenta, ou com deficiência. Tem-se aqui uma repetição da previsão já exposta no
§ 4º, do art. 121, do Código Penal. Contudo, observa-se que o quantum de aumento é menos severo nesta do que na causa de aumento do feminicídio.
Contra mulher portadora de deficiência, o enquadramento nesta categoria está descrita no art. 4º do Decreto nº 3.298/1999. Também é necessário o conhecimento da deficiência da vítima, sob pena de incidir em erro de tipo (BIANCHINI; GOMES, 2015).
O inciso III possibilita o aumento da pena em virtude do crime ser cometido na presença de descendente ou de ascendente da vítima. Aqui se aponta a não obrigatoriedade de presença física no local do crime, bastando que o familiar esteja ouvindo (p. ex. por telefone) ou vendo (p. ex. vídeo conferência) a ação criminosa. Igualmente é apontado que a caracterização só será constatada se o autor tiver conhecimento da qualidade de ascendente ou descendente do espectador (BIANCHINI; GOMES, 2015).
Por fim, vale registrar que a Lei nº 13.104/2015 não alterou somente disposições do Código Penal, também acrescentou a previsão do feminicídio no rol da Lei nº 8.072/1090 Lei dos Crimes Hediondos. Desta forma, em razão de se tratar de crime hediondo, vislumbram-se as seguintes consequências: impossibilidade de anistia, graça e indulto; inafiançabilidade; progressão de regime de modo diferenciado; prisão temporária com prazo de 30 dias, prorrogável por igual período; livramento condicional mediante cumprimento de 2/3 da pena (FERNANDES, 2015).
4 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER
A Lei Maria da Penha, de forma pioneira, tratou da violência psicológica, afastando a errônea concepção de que a violência contra a mulher deixa manchas visíveis, tal como ocorre com a violência física. Portanto, cumpre relembrar, já que tratado no tópico 3.2, como a Lei Maria da Penha dispõe sobre a violência psicológica para, após, verificar a questão no Código Penal.
4.1 Violência psicológica na Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha, ao tratar das formas de violência no art. 7º, inciso II, incluiu a violência psicológica. Desta feita, qualquer conduta capaz de causar dano emocional ou a diminuição da autoestima do agredido, ou voltada a prejudicar o seu desenvolvimento, ou, ainda, que objetiva desagradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).
Portanto, a violência psicológica é uma das formas mais difíceis de se identificar, embora possa se concretizar em situações cotidianas, quando o agressor impede, por exemplo, a mulher de ir trabalhar fora, de ter sua liberdade financeira, de sair de casa, a ameaça de espancamento, priva de afeto, priva do convívio com outros membros do núcleo familiar, ofende sua moral ou de sua família, dentre outras tantas situações (DIAS, 2013). E o que busca o legislador tutelar é a autoestima e a saúde psicológica da mulher vitimada.
4.2 Do art. 147-B do Código Penal
A Lei nº 14.188, que foi publicada em julho de 2021 veio mudar esse cenário, ao introduzir o art. 147-B ao Código Penal, tipificando, assim, a conduta da violência psicológica:
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularizarão, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave (BRASIL, 2021).
A norma dispõe que causar dano emocional a mulher é a conduta que pode gerar lesões psicológicas e prejuízos à saúde psíquica, causando diversos danos por meio do ciclo de humilhações, manipulações, chantagens, ridicularização, ameaças, constrangimentos ou até mesmo menosprezo à vítima. Essas ações conduzem a diferentes prejuízos emocionais à mulher, bem como à família que convive no mesmo ambiente da vítima. A saúde psíquica é afetada, gerando danos que prejudicam o seu desenvolvimento não apenas como mulher, mas, também, como ser humano.
Em suma, o disposto no art. 147-B do Código Penal impõe que a violência psicológica, enquanto crime, não se limita à mulher, vítima de violência doméstica e familiar. Pode alcançar qualquer pessoa e resulta de práticas como ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularizarão, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.
Ao dissertar sobre o tipo penal em comento, Greco (2022, p. 885) elucida:
Cuida-se, outrossim, de um tipo penal que tem duas finalidades específicas. Na sua primeira parte, o agente atua no sentido de causar dano emocional à mulher, prejudicando e perturbando seu pleno desenvolvimento. A mulher, aqui, por conta do dano sofrido, se sente inferiorizada, menosprezada, incapaz de se desenvolver plenamente.
Na segunda parte, a conduta do agente visa a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação.
Ao controlar as ações, as crenças ou decisões, ou seja todo o comportamento e causando perturbação, o autor com o simples fim de alcançar seu objetivo, interfere junto ao emocional da mulher, para comandar e assumir o controle impondo seus princípios gerando danos que muitas da vezes será irreversível e que possivelmente passível de pena.
Portanto, o Código Penal conta agora com um tipo específico, qual seja, a violência psicológica contra a mulher. Visa sobretudo estabelecer mecanismo para o enfrentamento das práticas que causam perturbações à mulher, inclusive alterações no psiquismo, como depressão, neurose, ansiedade, dentre outras (GRECO, 2022).
É uma grande inovação do legislador que, não raras vezes, reconheceu que a violência depende de marcas físicas. Porém, é possível que mesmo sem encostar na vítima, o infrator cause danos, a exemplo do que também ocorre no crime de ameaça, a que se refere o art. 147 do Código Penal.
São práticas comuns, que configuram violência doméstica, o isolamento, a limitação do direito de ir e vir, ameaças de que matará a companheira e seus familiares, a proibição de uso de certas roupas, xingamentos, proibição de que converse com pessoas do sexo feminino, atribuição de qualidades pejorativas, dentre outras práticas que, como dito, atingem o psicológico da mulher.
Segundo Greco (2020), doutrinariamente o tipo penal em comento é crime comum, que pode ser praticado por qualquer sujeito passivo; é doloso, pois exige a vontade expressa de prejudicar psicologicamente a mulher; é crime comissivo, embora possa ser cometido por omissão imprópria; é habitual e monossubijetivo.
A proteção jurídica recai sobre a liberdade pessoal, compreendida como a física e a psíquica. O sujeito passivo somente pode ser mulher, por expressa determinação legal. A consumação se dá, segundo Greco (2022), com as práticas habituais, com os xingamentos frequentes, por exemplo. Na visão do autor, portanto, não se consuma com um ato isolado.
Por fim, cumpre registrar que a pena é de reclusão de seis meses a dois anos e multa, sendo a ação penal pública incondicionada, ou seja, não depende da manifestação da vítima.
4.3 A violência psicológica na jurisprudência pátria
Do até aqui exposto percebe-se que a violência psicológica a que se refere a Lei Maria da Penha exige, para a sua consumação, que seja perpetrada no âmbito doméstico e familiar, valendo-se o agressor da condição que detém perante a vítima. É o caso do marido que, de forma reiterada, humilha a mulher, lhe causa danos psíquicos em virtude da sua conduta.
O art. 147-B, do Código Penal, dispensa que a relação se dê no âmbito doméstico e familiar. É, pois, o reconhecimento de que o olhar sobre a violência psicológica foi ampliado, superando a ideia de que a violência está atrelada a uma questão física. Se o bem-estar mental
e social for comprometido, ainda que inexista qualquer forma de violência física, restará configurada a psicológica.
Portanto, os atos atentatórios à saúde mental da mulher agora possuem dupla proteção: na Lei Maria da Penha, no que diz respeito às formas de violência, e no art. 147-B do Código Penal, que praticamente repete o disposto no inciso II, do art. 7º da Lei nº 11.340/2006. É, pois, delito que busca proteger a liberdade pessoal, tendo o legislador compreendido que toda for a de violação ao psiquismo da mulher, em última análise, compromete sua liberdade.
Cumpre, então, averiguar como a jurisprudência vem se posicionando ante a aplicação do art. 147-B do Código Penal.Em decisão recente o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul reconheceu a prática do crime previsto no art. 147-B.
Em caso de violência doméstica contra a mulher. Vale lembrar que a Lei Maria da Penha não criou nenhum tipo penal e, por isso, justifica-se tal posicionamento. A decisão resta assim ementada:
HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. CRIMES CONTRA A PESSOA. AMEAÇA. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER. ART. 147, CAPUT, ART. 147-B, AMBOS DO CP E ART. 24-A DA LEI Nº 11.340/06. COMPETÊNCIA INTERNA. DECISÃO MONOCRÁTICA. Na espécie, além de ter o paciente descumprido medidas protetivas de urgência deferidas em favor de sua ex- companheira, a configurar o delito do art. 24-A da Lei nº 11.340/06, verifica-se que, também, foi denunciado pelos crimes previstos nos artigos 147, caput, e art. 147-B, ambos do Código Penal, esse último, com pena cominada mais grave, de 06 meses a 02 anos de reclusão, cuja competência para apreciação é das 1ª, 2ª e 3ª Câmaras Criminais deste Tribunal, às quais é atribuído, dentre outros, o julgamento de crimes contra a pessoa, na forma do artigo 29, inciso I, alínea a, do RITJRS. Precedentes. COMPETÊNCIA DECLINADA (RIO GRANDE DO SUL, 2022).
No caso em comento, como se extrai do relatório do Desembargador José Ricardo Coutinho Silva, foi impetrado habeas corpus em favor do paciente, preso preventivamente por descumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, sem prejuízo da prática do crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal, e da violência psicológica, a que se refere o art. 147-B (RIO GRANDE DO SUL, 2022).
Uma outra questão foi suscitada no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Diz respeito à comprovação do dano psicológico em decorrência da violência psicológica. Para o referido órgão julgador, caso não comprovado o dano, deve o delito ser desclassificado para
o crime de ameaça, senão veja-se:
Apelação. Violência psicológica contra a mulher. Sentença condenatória. Recurso da defesa. Pleito absolutório por atipicidade da conduta. 1. Ameaças comprovadas através das declarações prestadas pela vítima ao longo da persecução penal, corroboradas pela prova testemunhal. Credibilidade não afetada diante da ausência de prova em sentido contrário. Dúvidas quanto à existência do dano emocional, necessário para a configuração do delito previsto no artigo 147-B, do Código Penal. Vítima que não relatou ter sofrido danos psicológicos em decorrência das ameaças proferidas pelo acusado. Necessidade de readequação penal típica para o delito previsto no artigo 147, caput, do Código Penal. Configuração da promessa de causar mal injusto e grave. Desnecessidade de contexto de ânimo calmo e refletido. Dolo configurado. 2. Dosimetria. Fixação da pena base no mínimo legal. Reconhecimento da agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea f, do Código Penal. Fixação do regime inicial aberto. Manutenção da concessão do sursis. 3. Recurso conhecido e improvido. Desclassificação, de ofício, para o artigo 147, caput, do Código Penal (SÃO PAULO, 2022).
Verifica-se que, nesse caso, o Tribunal entendeu pela necessidade de readequar a tipificação, por falta inclusive de relatos de danos psicológicos. Daí verifica-se a efetividade do tipo penal, que visa tutelar a integridade psíquica. Se não atingida, não há que se falar nesta forma de violência.
Semelhante decisão é encontrada no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que ressalta a necessidade de comprovação. Contudo, ressaltou que em crimes desta natureza a palavra da vítima tem especial papel, principalmente quando há robustas provas do dano psicológico, da privação da liberdade e convivência.
APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER E AMEAÇA (ART. 147-B E ART. 147, CAPUT, AMBOS DO CÓDIGO PENAL, COM INCIDÊNCIA DA LEI N. 11.340/2006). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. 1. VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER. PLEITO ABSOLUTÓRIO POR FRAGILIDADE DE PROVAS QUANTO À MATERIALIDADE DELITIVA. ALEGADA AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. INACOLHIMENTO. AUTORIA INCONTROVERSA. CRIME QUE ABARCA CONDUTAS QUE PODEM OU NÃO DEIXAR VESTÍGIOS. PRESCINDIBILIDADE DE PROVA TÉCNICA. SUFICIÊNCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA, DE ESPECIAL RELEVÂNCIA EM CRIMES DESTA NATUREZA. OFENDIDA QUE RELATA EM DETALHES, TANTO NA DELEGACIA DE POLÍCIA, QUANTO EM JUÍZO, AS CONDUTAS ABUSIVAS DO COMPANHEIRO DURANTE O RELACIONAMENTO, COMO TROCAR O CHIP DE SEU CELULAR, CONTROLAR AS PESSOAS COM QUEM PODIA MANTER CONTATO, REGULAR O TEMPO PARA IR ATÉ O MERCADO, EXCLUIR SEU PERFIL EM REDE SOCIAL, AFASTÁ-LA DE AMIGOS E FAMILIARES, DENTRE OUTRAS, CAUSANDO-LHE DANO EMOCIONAL QUE A FIZERAM RECORRER AO TRATAMENTO PSICOLÓGICO. NEGATIVA DE AUTORIA ISOLADA NOS AUTOS. ROBUSTO ACERVO
PROBATÓRIO. ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL. "Em casos de violência contra a mulher - seja ela física ou psíquica -, a palavra da vítima é de fundamental importância para a devida elucidação dos fatos, constituindo elemento hábil a fundamentar um veredicto condenatório, quando firme e coerente, [...]" [...] (SANTA CATARINA, 2022).
Verifica-se a cautela dos julgadores ao ressaltar que a violência psicológica, ao contrário da violência física, não deixa vestígios e, por isso, deve a palavra da vítima, quando não demonstra fragilidade ou incoerência, ter forte valor probatório.
Importa ressaltar que antes da inserção do art. 147-B no Código Penal, os Tribunais vinham aplicando, em caso de violência psicológica, o disposto no art. 147 do Código Penal c/c o art. 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha. Portanto, não há redundância, mas sim um tipo penal específico, como se verifica da decisão proferida no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - AMEAÇA E VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA EM ÂMBITO DOMÉSTICO ( CP, ART. 147 DO CÓDIGO PENAL C/C O ART. 7º, INCISO II DA LEI Nº 11.340/06)- ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS - IMPOSSIBILIDADE - AUTORIA E MATERIALIDADE
COMPROVADAS - RECURSO NÃO PROVIDO. Restando comprovadas a autoria e a materialidade do delito de ameaça praticado pelo acusado no âmbito das relações domésticas, a manutenção da condenação do recorrente é medida que se impõe (MINAS GERAIS, 2018).
Agora, portanto, caracterizada a violência doméstica contra a mulher, na forma de violência psicológica, aplica-se o art. 147-B, dada a especialidade.
Resta evidente, portanto, que a violência psicológica, agora tipificada no Código Penal, vem reforçar a proteção à saúde mental da mulher, o que teve início ainda com a Lei Maria da Penha, e desmistificar que a violência, para ser uma grave violação aos direitos humanos, precisa deixar marcas físicas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, ao longo do presente estudo, discorrer sobre o crime previsto no art. 147-B do Código Penal, qual seja a violência psicológica contra a mulher. Trata-se de grande avanço legislativo, pois até então inexistia um tipo penal específico, embora a Lei Maria da Penha tenha sinalizado, ainda em 2006, para a existência de várias formas de violência contra a mulher.
Verificou-se que por longos anos o Brasil conviveu com a inércia do Estado, já que a violência doméstica ficou restrita ao âmbito privado, sem visibilidade, o que tornou a mulher ainda mais fragilizada; e somente a partir da década de 70 é que ganhou espaço os debates e discussões acerca da necessidade de enfrentamento do problema, embora apenas no ano de 2006 tenha sido editada a primeira lei específica para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em que pese à edição de um diploma legal específico, muito ainda há que ser feito, pois embora a sociedade venha se mostrando, gradualmente, preocupada com a gravidade do problema da violência doméstica, tendo em vista que prevaleceu, durante séculos, a presunção de que o ambiente doméstico seria um lugar de plena harmonia familiar, fechando os olhos para as agressões que se estabeleciam no interior de vários lares, nos quais parecia não haver problemas, vítimas ainda temem em denunciar seus agressores por diversos fatores, sendo o medo o principal deles.
Sendo assim, há de se notar que as transformações na sociedade alteraram a compreensão do que seria correto e o que realmente poderia ser definido como ato de violência sujeito a punição, já que a violência gerada dentro do lar historicamente esteve protegida em razão da não intervenção estatal e social, firmando-se a crença de que a mulher nasce com o objetivo de servir o homem, ficando o problema escondido no silêncio das vítimas, as quais se convencem de que calar-se é a melhor solução.
Não é demais ressaltar que a Lei Maria da Penha se apresentou como uma conquista das brasileiras, por criar e estabelecer mecanismos para coibir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, que constitui uma das modalidades mais graves de violação dos direitos humanos, e que leva milhares de mulheres à morte em seus lares.
Evidencia-se, portanto, que apesar de suas falhas, pode ser considerada significativamente efetiva, ao estabelecer como finalidade a recriminação aos valores que impõe a superioridade masculina, estabelecendo a violência doméstica com a real gravidade que se apresenta, tendo em vista que antes de sua vigência a maioria dos casos em que houvesse esse tipo de violência eram arquivados e, se julgados, os agressores recebiam penas que davam a sensação de impunidade.
Com base no material bibliográfico pesquisado, e as informações trazidas no bojo do presente trabalho, evidencia-se que a Lei n° 11.340/2006 trouxe uma transformação ao consolidar os direitos das mulheres brasileiras, ou seja, um texto de lei que garante proteção às mulheres vítimas de agressões é, de fato, uma grande conquista a ser comemorada.
Em meio a esse cenário a Lei do Feminicídio e, mais recentemente a inserção do art. 147-B no Código Penal, sinalizam a preocupação do legislador no enfrentamento das práticas de violência contra a mulher, reforçando o compromisso do país assumido no cenário internacional com a punição, prevenção e erradicação de toda forma de violência contra a mulher.
Destarte, conclui-se que o julgador agora conta com tipo penal específico, para punir aquele que pratica violência psicológica contra a mulher, comprometendo o seu bem-estar psíquico, com práticas diversas, como humilhação, privação ou mitigação da liberdade de ir e vir, proibição de manter amizades, de vestir determinadas roupas, dentre outras condutas que, como visto, comprometem a saúde mental da mulher.
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