Limites ao exercício da liberdade religiosa nos meios comunicação no Brasil

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14/11/2022 às 14:01
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Sumário: Introdução. 2. Noção das relações entre o Estado e a Igreja no Brasil. 3. Funções dos Direitos Fundamentais. 4. Proselitismo religioso nos meios de comunicação de massa. 5. Conclusão.


1. Introdução

Há um fato relevante no cotidiano nacional e que até agora não tem merecido uma análise mais detida dos aplicadores do direito: refiro-me ao notável milagre da multiplicação dos programas religiosos nos canais de rádio e TV. Como aparece o vínculo entre religião e mídia em nosso tempo? Em primeiro lugar, há uma forma de fácil constatação: a ocupação de espaços de mídia pelo discurso religioso, seja em seu próprio nome (nas falas de pessoas e grupos religiosos, na realização de programas religiosos de rádio e tevê, nas publicações religiosas, na ´indústria cultural´ de matriz religiosa, nos inúmeros sítios religiosos na internet,etc.) seja a respeito da religião (em documentários, entrevistas, coberturas de notícias, etc.)[1].

Tal presença da religião na mídia é clara e se estende dos produtos à propriedade de veículos e recursos de produção. Isto acompanha um processo de mais longa duração, de apropriação dos processos e recursos da dinâmica cultural numa sociedade secular e de mercado por parte dos atores religiosos (como organizações ou como pessoas privadas). Neste sentido, tanto a intensidade deste vínculo entre religião e mídia como sua percepção e avaliação pelos diferentes atores sociais não são singulares: vários outros discursos culturais (e seus suportes institucionais) também investem o mercado e a mídia como parte do mercado[2].

O fenômeno é relativamente recente, pois há pouco mais de dez anos a pregação religiosa nos meios de comunicação restringia-se à missa católica dominical e ao singelo programa vespertino A hora da Ave Maria, apresentado por Hilton Franco[3]. Hoje, diversamente, encontramos catequeses na TV aberta, nos canais do cabo e em muitas emissoras de rádio AM e FM do país, a qualquer hora do dia. As autoras desse milagre são as igrejas neopentecostais que surgiram no Brasil no final da década de 80. A maior delas comprou um canal da TV aberta e notabilizou-se, no passado, por transmitir um de seus pastores chutando um ícone católico[4].

O objetivo deste trabalho é examinar algumas das múltiplas questões jurídicas subjacentes ao exercício da liberdade religiosa nos meios de comunicação de massa no Brasil. Está o Estado brasileiro autorizado a restringir, de alguma forma, o proselitismo religioso na TV e no rádio? A proteção requerida não importaria na violação do dever de neutralidade dos poderes públicos nos assuntos das igrejas? Como é sabido, desde a promulgação da primeira Constituição republicana, o Estado brasileiro define-se como laico, e a Carta democrática de 1988 proíbe expressamente todos os membros da Federação de subvencionar cultos religiosos ou igrejas, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança (art. 19, I).

A questão é bastante instigante e espinhosa, sobretudo quando se tem em conta o enorme poder de manipulação da vontade e do imaginário popular que possuem os donos das concessões públicas de telecomunicações. A propósito, convém lembrar que as redes de TV aberta alcançam hoje todos os Municípios brasileiros. Segundo dados do IBGE, em 1999 havia 53.573.000 aparelhos de televisão, instalados em 37 milhões de domicílios do país[5]. Levantamento feito pela UNESCO apurou que a média de duração de assistência diária a emissões de televisão no Brasil é de duas horas por pessoa a mais alta média entre todos os países subdesenvolvidos[6].

Não é difícil, nesse contexto, constatar a relação de causalidade existente entre o crescimento de algumas religiões neopentecostais e o acesso privilegiado que elas possuem às rádios e TVs do país. Não por outro motivo, uma das prioridades anunciadas da Igreja Universal do Reino de Deus era, no ano de 2003, dobrar a participação de seus parlamentares nas comissões do Congresso que cuidam das concessões de rádio e TV[7].

De acordo com dados publicados pela imprensa, a bancada dos evangélicos no Congresso Nacional è uma das mais expressivas, possuindo atualmente cerca de 60 parlamentares[8]. Como escreve Ivo Lucchesi no seu artigo A mídia e a expressã da fé, A cena política nacional é cada vez mais habitada por políticos cuja retórica acentua o tom religioso. Sem alarmismo, quer-se pontuar que o perfil laico do Estado brasileiro tem perdido boa parcela de sua autonomia. Não sejamos ingênuos. Proliferam, no Congresso Nacional, bancadas (deputados e senadores) que se elegem com base em seus redutos de fiéis. Igual percepção se pode ter no tocante a cargos executivos, tanto em âmbito municipal, quanto nas esferas estadual e federal. Diferente não se dá na ampliação de publicações, de redes (rádio e TV), programas diários, inclusive com horários comprados em emissoras comerciais desvinculadas de instituições religiosas. Todos têm em comum a prática de ostensivas pregações.

A omissão diante desses passos sinuosos pode estar permitindo a instalação de um quadro societário no qual a intolerância, sempre cúmplice das convicções inabaláveis, venha a germinar tensões até então desconhecidas na vida brasileira. Quando a evangelização se torna o suporte para a ação política transformadora, o que se obtém é a política da evangelização, seguida do domínio sobre as vozes da diferença. Atingido esse estágio, passa a vigorar a lógica persecutória do fundamentalismo, perante o qual a democracia não é mais reconhecida como prática das relações societárias. Não custa recordar que, diferentemente do que possa pensar a maioria, "fundamentalismo" é um conceito formulado primeiramente pela matriz cristã[9].

O pressuposto geral do trabalho é a percepção de que a agressão aos direitos fundamentais pode resultar não apenas dos poderes públicos, mas também de poderes privados, sendo certo que, como ressalta Canotilho, a função de proteção objetiva desses direitos não pode deixar de implicar sua eficácia no âmbito das relações privadas caracterizadas pela situação desigualitária das partes. Conseqüentemente, as leis e os tribunais devem estabelecer normas (de conduta e de decisão) que cumpram a função de proteção dos direitos, liberdades e garantias[10] constitucionais.

Não há, com efeito, uma única liberdade religiosa na Constituição de 1988, mas sim uma plêiade de posições jurídicas[11] do indivíduo e das organizações religiosas em face do Estado e dos demais particulares. Essas posições jurídicas podem ser agrupadas em quatro[12] dimensões distintas, a saber: a) liberdade de consciência religiosa ou liberdade de crença (art. 5o, inciso VI, primeira parte); b) liberdade de culto (art. 5o, inciso VI, fine); c) liberdade de associação religiosa (art. 5o, incisos XVII a XX); d) liberdade de comunicação das idéias religiosas (art. 5o, IX, c.c. o art. 220). A distinção não tem valor puramente acadêmico, pois, como bem salientou Elival da Silva Ramos, os diferentes níveis em que se desenvolve a liberdade de religião se refletem em distintos regimes jurídicos[13].

liberdade de crença, na formulação de José Afonso da Silva, compreende não apenas a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer religião, e a liberdade (ou o direitode mudar de religião, mas também (...) a liberdade de não aderir a religião alguma[14]. Trata-se, como se vê, de manifestação específica da liberdade de consciência, declarada no mesmo inciso constitucional, e, em última instância, também do próprio princípio da autonomia da pessoa[15].

liberdade de culto consiste na faculdade, conferida a cada indivíduo, de exteriorização ritual de suas crenças, por intermédio de cerimônias, reuniões, práticas e obediência a hábitos. O culto pode ocorrer no âmbito privado ou em espaços abertos ao público, tais como igrejas, templos, ou mesmo ruas e praças. É interessante lembrar que, na época do Império, era permitida apenas a exteriorização dos cultos da religião católica apostólica romana. Os membros de outras religiões podiam tão somente dedicar-se ao culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo (art. 5 o da Constituição de 1824).

Por fim, a liberdade de comunicação das idéias religiosas diz respeito à transmissão de catequeses a terceiros, geralmente com o propósito de convertê-los à religião daquele que faz a pregação. É este o direito objeto de nossa analise. Antes, é necessário definir qual o papel do Estado nos assuntos da religião, e apresentar as funções dos direitos fundamentais que estão em jogo na solução do problema da mídia.


2. Noção das relações entre o Estado e a Igreja no Brasil

De acordo com a doutrina constitucional[16], há três sistemas que buscam explicar a relação entre Estado e Igreja: os sistemas de fusão, união separação. No primeiro, há a confusão total entre religião e Estado, sendo este considerado propriamente uma manifestação do fenômeno religioso. No sistema de união, menos radical que o primeiro, as relações jurídicas entre o Estado e as igrejas dizem respeito à organização e ao funcionamento das entidades religiosas. Neste sistema, pode ocorrer que o Estado reconheça oficialmente uma ou mais igrejas e passe a nomear os ministros do culto, ou a remunerá-los. Pode acontecer, também, que, dentre as religiões reconhecidas, o Poder Público defina uma delas como religião de Estado. É o que acontecia no período imperial de nossa história. A Constituição de 1824 declarava que a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império (art. 5o), cabendo ao monarca, dentre outras atribuições, nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos (art. 102, II) e conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios, letras apostólicas, e quaisquer outras Constituições eclesiásticas (art. 102, XIV). Por ocasião de sua aclamação, deveriam o imperador e seus sucessores jurar manter a religião católica apostólica romana (arts. 103 e 106).

Antes mesmo da promulgação da primeira Constituição republicana, o governo provisório presidido por Deodoro havia abolido, por intermédio do Decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890[17], o sistema de união, instituindo, no lugar, a rigorosa separação entre Igreja e Estado. O constitucionalista João Barbalho, em seus comentários à Carta de 1891, assim explicou o princípio da neutralidade do Estado em relação às igrejas: A fé e piedade religiosa, apanágio da consciência individual, escapa inteiramente à ingerência do Estado. Em nome de princípio algum pode a autoridade pública impor ou proibir crenças e práticas relativas a este objeto. Fora violentar a liberdade espiritual; e o protege-lá, bem como às outras liberdades, está na missão dele. Leis que a restrinjam estão fora da sua competência e são sempre parciais e da nossas. È certo que nenhuma poderá jamais invadir o domínio do pensamento, esse livra-se acima de todos os obstáculos com que se pretenda tolhe-lo. Mas as religiões não são coisa meramente especulativa e, se seu assento e refúgio é o recinto íntimo da consciência, têm também preceitos a cumprir, práticas externas a observar, não menos dignas de respeito que a crença de que são resultado, ou a que andam anexos[18].

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O Estado assegura as liberdades religiosas, mas recusa-se a intervir no funcionamento das igrejas. Acques Robert assinala, a propósito, que há duas modalidades distintas e separação: o regime de tolerância, pelo qual o Estado tem em conta o fato religioso e a existência de uma ou mais igrejas, mas não se imiscui no uncionamento delas; e o regime de desconhecimento deliberado e completo do fenômeno religioso. Elival da Silva Ramos, por seu turno, observa que no sistema de separação, o Estado pode adotar a posição de absoluta neutralidade regime de separação rígida), mas também pode valorar negativamente o fenômeno religioso (como ocorre nos Estados ateus, nos quais haveria o estimulo à crença e às manifestações religiosas) ou ainda emitir um julgamento positivo sobre as religiões em geral, sem porém estabelecer nenhum tipo de discriminação em relação a uma religião específica. Trata-se, nesta última hipótese, do regime da separação atenuada, adotado, segundo o autor, pela constituição de 1934 e por todas as outras que a sucederam[19].

O art. 5o inciso VI, da Constituição da República assegura ao indivíduo não apenas a liberdade de escolha de uma ou outra religião, mas  também a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.

A norma em questão buscou dar concreção ao princípio da autonomia, norma basilar de todo Estado democrático, segundo a qual, sendo valiosa a livre eleição de planos de vida e a adoção de ideais de excelência humana, o Estado e os demais indivíduos não devem interferir nessa eleição ou adoção, limitando-se a criar instituições que facilitem a persecução individual desses planos de vida e a satisfação dos ideais de virtude que cada um sustente, e impedindo a interferência mútua no curso de tal persecução. Em outras palavras, um Estado que se pretenda democrático não está autorizado a definir, ele próprio, o que é bom para seus súditos, ou o que melhor satisfaz seus interesses. Não pode, por isso, emitir juízos de valor sobre as crenças de cada um, desde que, obviamente, a manifestação dessas crenças não importe em prejuízos a terceiros[20].

A maioria dos brasileiros professa alguma religião. O princípio majoritário, porém, encontra seu limite precisamente na proteção dos direitos das minorias. A propósito, a História registra episódios abomináveis de perseguição de grupos religiosos minoritários por Estados autoritários que professavam um ateísmo militante. Ora, se esses episódios repugnam nossa consciência, é porque entendemos que não é lícito ao soberano impor aos seus súditos uma visão de mundo qualquer, por mais verdadeira que ela aparenteser[21].

Enfim, como bem concluiu Locke, em sua conhecida Epistola de Tolerantia, o poder do governo civil diz respeito tão-só aos interesses civis dos homens, limitando-se ao cuidado de quanto pertence a este mundo, nada tendo que ver como mundo a vir[22].


3. Objetivos dos Direitos Fundamentais

De acordo com Canotilho, os direitos fundamentais possuem quatro funções primordiais, a saber: prestação social, defesa, não-discriminação e proteção perante terceiros. Nesta investigação, cuidaremos apenas das três últimas, pois me parece que a função de prestação social não incide sobre as liberdades religiosas aqui debatidas.

Para o constitucionalista português, os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa (ou de liberdade) sob uma dupla perspectiva: a) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; b) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)[23]. Assim, por exemplo, o art. 5o, inciso IV, assegura subjetivamente o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (liberdade positiva), mas também assegura que a liberdade de expressão seja feita sem impedimentos por parte dos poderes públicos (liberdade negativa). Além disso, a norma em questão proíbe a edição de qualquer ato normativo que importe em censura (norma de competência negativa).

função de não-discriminação busca assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como fundamentalmente iguais. Esta função, anota Canotilho, alarga-se a todos os direitos: Tanto se aplica aos direitos, liberdades e garantias pessoais (ex: não discriminação em virtude de religião), como aos confissões religiosas a ministrarem-no, nem tampouco obrigar alunos a seguirem a ´disciplina´ Alarga-se de igual modo aos direitos a prestações (prestações de saúde, habitação)[24]. Seu fundamento é o princípio geral de igualdade, declarado no art. 5, caput, de nosso texto constitucional.[25], o espectro dos direitos à proteção è muito amplo, alcançando, inclusive, os chamados direitos de primeira geração,como a vida, a liberdade, a privacidade e a propriedade.

Sergio Gardengchi Suiama, Procurador da República em São Paulo, escreveu no seu artigo: Ao contrário do que entende a doutrina tradicional das liberdades públicas, também esses direitos são objeto de ações positivas do Estado, com o escopo de protege-los e assegurar-lhes a maior eficácia possível. As ações estatais de proteção podem ter natureza normativa ou fática. Os direitos a ações positivas normativas são direitos a atos estatais de imposição de uma norma jurídica[26].

As normais penais que tutelam os bens jurídicos fundamentais e as normas de organização indispensáveis para a proteção desses bens (v.g., as normas de organização do Sistema Único de Saúde) são ações positivas desta natureza. Há o direito a uma ação positiva fática, por exemplo, quando a Constituição obriga o Estado a assegurar a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (CR, art. 5, VII), a fim de garantir aos reclusos o pleno exercício das liberdades de crença e culto.

Retornaremos a esses conceitos logo adiante, quando examinarmos, concretamente, as possibilidades e limites da intervenção estatal na liberdade de proselitismo religioso exercida nos meios de comunicação de massa. Antes, porém, vejamos o conteúdo específico dessa liberdade.

Sobre o autor
Adam Kowalik

professor de Direito Eclesiástico Público, juiz do Tribunal Eclesiástico do Rio de Janeiro

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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