Cirurgia plástica embelezadora: Uma crítica ao enquadramento como obrigação de resultado.

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Na relação médico e paciente há um dever que liga as duas partes. No estudo do Direito, existem diversas classificações para identificar os tipos de obrigação. Aqui nos interessa a classificação quanto ao fim a que se destina o compromisso.

Nesta divisão, a obrigação pode ser de resultado, quando o devedor se compromete em entregar algo previamente determinado, ou seja, só é adimplido o seu encargo quando dá o fim prometido. Já na obrigação de meio, o devedor assume ser prudente, perito e não negligente, valendo-se da melhor técnica que possui para conferir a contraprestação ao credor, sem garantir, contudo, o resultado.

Registre-se que na hipótese de obrigação de meio, o resultado não pode ser garantido, por não depender apenas da vontade do devedor, estando a consequência sujeita a outros fatores externos alheios à sua vontade, que culminarão na entrega ou não do fim almejado.

No que tange ao exercício da Medicina, existe um consenso de que o ato médico é obrigação de meio, ou seja, o profissional da saúde não pode prometer ao paciente a cura, pois quando a obrigação exsurge o médico se compromete a utilizar o seu conhecimento e as técnicas aplicáveis da forma mais apurada possível, com prudência e zelo.

Entretanto, no que tange à cirurgia plástica embelezadora, há quem defenda tratar-se de uma obrigação de resultado, ou seja, caberia ao profissional médico a entrega do fruto almejado. E nesse ponto, cumpre registrarmos a nossa convicta discordância pelas razões que iremos expor a seguir.

O primeiro argumento que facilmente coloca por terra tal posicionamento é o de que a cirurgia estética não se trata de mero capricho do paciente. Afinal, a pessoa está insatisfeita com algo no seu corpo e, assim, face àquilo que tanto a incomoda, busca a mudança. Ou seja, quando um (a) paciente busca uma cirurgia embelezadora há ali, no mínimo (e não é coisa pouca ou pequena), um dano psicológico que precisa ser tratado, curado, que poderá ser sanado através da cirurgia estética.

Seria insensível deixarmos de considerar que o embelezamento proporcionará um conforto psicológico a(o) paciente e o seu bem-estar, evitando ou sanando possível depressão decorrente da insatisfação anterior.

Então, da mesma forma que outras áreas da Medicina, a cirurgia de embelezamento está longe de ser enquadrada como algo fútil, já que visa tratar um dano, um incômodo sofrido pelo(a) paciente. Portanto, não pode ser colocado como obrigação de resultado, diferindo-a das demais áreas curativas médicas.

Ademais, e não menos importante, para corroborar com o argumento acima, e para solidificar a cirurgia embelezadora como de meio e não de resultado, importante compreender que este tipo de procedimento está sujeito a vários agentes externos que fogem ao controle do médico, que podem ser definidos desde os cuidados no pós operatório a serem adimplidos pelo paciente, até as reações inesperadas e, portanto, incontroláveis, do corpo humano àquele procedimento, a exemplo dos queloides. Frise-se, neste ponto, a diferença entre intercorrência, complicações e sequelas.

Intercorrências são os eventos pós-operatórios, simples e esperados de cada procedimento cirúrgico, que se resolvem por si só após algum tempo, tais como os hematomas, edemas e a perda de sensibilidade, os quais não trazem qualquer questionamento sobre a responsabilização médica.

As complicações são respostas adversas, como condições, doenças ou eventos que ocorrem após procedimento cirúrgico, como por exemplo as hemorragias, infecções, lesões em órgãos circundantes e eventos tromboembólicos venosos.

Consideram-se sequelas, por sua vez, as lesões funcionais permanentes decorrentes de uma lesão irreversível determinada por um ato cirúrgico, que também pode ser resultante de uma resposta indesejada e imprevisível do organismo.

Ora, qualquer que seja a situação, mesmo agindo sem negligência, imprudência ou imperícia, ou seja, sem culpa, a resposta indesejada pode acontecer, fugindo do controle do cirurgião, pois diz respeito a um retorno fisiológico do corpo humano que não pode ser evitado, e muitas vezes sequer previsto. Assim, não há como cogitar-se em obrigação de resultado se o próprio corpo do paciente pode apresentar uma reação que desafia as melhores técnicas e conhecimento científico do profissional habilitado.

O que se pode exigir de todo profissional da saúde, e aqui estamos a tratar do médico, é o exercício da sua atividade com o emprego da melhor técnica, de forma cuidadosa, além de prestar o mais minucioso esclarecimento de todas as possíveis sequelas que podem decorrer daquela cirurgia, esclarecendo o paciente sobre os riscos do tratamento, suas vantagens e desvantagens, e as possíveis manobras a serem empregadas.

Sabendo-se ser a responsabilidade do médico em caso de dano ao paciente uma responsabilidade que depende da comprovação de culpa na conduta lesiva, o enquadramento da cirurgia plástica embelezadora como uma obrigação de resultado implicaria na inversão do ônus da prova e numa desproporcional e pesada presunção de culpa. Ora, nota-se serem incompatíveis os institutos da inversão do ônus da prova e da responsabilidade subjetiva.

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Sobre o tema, cita-se trecho do Livro Culpa Médica e Ônus da Prova, página 267, do Desembargador Miguel Kfouri Neto, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, que afirma:

Em qualquer hipótese, não milita em desfavor do cirurgião plástico, nessas intervenções embelezadoras, presunção de culpa, nem tampouco se aplicam os princípios da responsabilidade sem culpa.

Por fim, as novas tendências verificadas no âmbito da prova da culpa médica, em especial a atribuição dinâmica do encargo probatório, não mais justificam que apenas ao cirurgião plástico seja aplicado tratamento diferenciado, gravoso.

Todas as especialidades cirúrgicas submetem-se ao imprevisível consequência natural, já examinada, das características individuais de cada pessoa.

Assim, a cirurgia plástica embelezadora há de enquadrar no figurino da verificação da culpa, a exemplo das demais especialidades médicas arredando-se a aplicação extremada dos princípios da responsabilidade objetiva ao profissional liberal, que também se submete ao estatuto da culpa.

Há, inclusive, decisões judiciais que enquadraram como obrigação de meio as cirurgias plásticas, sob fundamento lógico da impossibilidade de garantir uma cirurgia com risco zero, vejamos:

"Não me parece, data vênia, que se possa classificar uma cirurgia, e nesse plano as cirurgias plásticas se equiparam às de qualquer outra espécie, de obrigação de resultado, porque, como se sabe, quando se trata de mexer com fisiologia humana, além da técnica empregada pelo médico, havida no conhecimento específico, há sempre um outro componente que o homem, frágil e impotente diante do desconhecido, chama de imprevisível. (...) Nenhum homem seria capaz de afirmar que uma cirurgia tem 100% de possibilidade de êxito e 0% de insucesso. Sintetizando: não há cirurgia sem risco". (TJRJ ApCiv 1.239/90 25.09.1990 ADV/COAD, Se. Jur., p. 78, maio 1994).

Trazemos também à baila na reflexão que aqui propomos, interessante julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) que, embora enquadre a cirurgia plástica embelezadora como obrigação de resultado, na fundamentação da decisão apresenta argumentos pertinentes à obrigação de meio ao reconhecer que a cicatrização depende das características do organismo de cada indivíduo, portanto, imprevisível pelo médico. E, se não é previsível, não se pode exigir de ninguém a garantia de resultado, concordam?

Inadmissibilidade de recurso extraordinário em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ementado nos seguintes termos: APELAÇÕES CÍVEIS - AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS E ESTÉTICOS - ERRO MÉDICO - CIRURGIA PLÁSTICA MASTOPEXIA, LIPOASPIRAÇÃO E ABDOMINOPLASTIA - RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA DO MÉDICO - NECESSIDADE DE ANÁLISE DE CULPA - TRATAMENTOS COM FINALIDADE ESTÉTICA - OBRIGAÇÃO DE RESULTADO - PROFISSIONAL QUE SEGUIU AS REGRAS TÉCNICAS DA MEDICINA - PROCEDIMENTOS QUE OBTIVERAM RESULTADO SATISFATÓRIO, DENTRO DO ESPERADO PELA CIÊNCIA MÉDICA AUSÊNCIA DE DANO - CICATRIZAÇÃO QUE DEPENDE DAS CARACTERÍSTICAS DO ORGANISMO DE CADA INDIVÍDUO, SENDO IMPREVISÍVEL PELO MÉDICO EVENTUAL PREJUÍZO DECORRENTE DE CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR, VISTO QUE NÃO HOUVE IMPERÍCIA DO RÉU ROMPIMENTO DO NEXO DE CAUSALIDADE - CONSENTIMENTO INFORMADO DA PACIENTE DEVIDAMENTE OBSERVADO AUTORA QUE POSSUÍA CONHECIMENTO ACERCA DOS RISCOS INERENTES ÀS CIRURGIAS  AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO REQUERIDO SENTENÇA REFORMADA DEMANDA PRINCIPAL IMPROCEDENTE LIDE SECUNDÁRIA PREJUDICADA RECURSOS PROVIDOS. A cicatrização depende de cada organismo, sendo individual e imprevisível. (STF ARE 1235522 / PR PARANÁ. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. Relator(a): Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 08/09/2022. Publicação: 14/09/2022).

Por todo o exposto, conclui-se que o enquadramento da cirurgia plástica, ou de qualquer outro ato médico, como obrigação de resultado, é desarrazoado, pois desconsidera os aspectos fisiológicos de cada organismo a responderem de formas diferentes ao procedimento, tira de órbita o risco inerente a todo ato cirúrgico, além de ignorar aspecto relevante quando estamos a tratar de cirurgias embelezadoras, qual seja: a subjetividade do paciente quanto ao resultado esperado, fator que deixará o cirurgião plástico em total vulnerabilidade.

Sobre os autores
Vanessa Bacilieri

Servidora Pública, Mestra em Direito Privado e Econômico pela UFBA e Especialista em Direito Médico.︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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