O compliance na sociedade do cancelamento

Leia nesta página:

Bom renome vale mais que grandes riquezas; a boa reputação vale mais que a prata e o ouro.

(Provérbios 22:1)

Ingrid Cristine Vieira Ferreira1

Resumo:

Tendo por pano de fundo a cultura do cancelamento, amplamente disseminada na sociedade atual, pontuada como um consectário lógico da velha cultura do ódio e da violência, que remete à praticas nazistas, e, estabelecendo-se a sua relação com o aumento do risco reputacional das organizações, principalmente com o incremento midiático da divulgação de escândalos empresarias, antes restritos ao mundo dos negócios, mas, agora, acessíveis para toda a sociedade, em prejuízo das transações comerciais multilaterais das organizações, ameaçando a subsistência e a função social delas, foi proposta uma reflexão sobre a importância, o possível impacto e os desafios do compliance nesta seara. A implantação de um programa de compliance despontou como um meio hábil de resposta, tanto no nível da prevenção como no da reparação de danos à imagem das organizações, desde que não represente mera formalidade, destituída de correlação real com os valores éticos expressos pelo código de conduta organizacional, mas seja baseado nos verdadeiros primados da governança corporativa.

Palavras-chave: Compliance, Cancelamento, Risco Reputacional.

Abstract:

Against the background of the culture of cancellation, widely disseminated in today's society, punctuated as a logical consequence of the old culture of hatred and violence, which refers to Nazi practices, and, establishing its relationship with the increase in reputational risk of organizations, mainly with the increase in the media of disclosure of business scandals, previously restricted to the business world, but now accessible to the whole society, to the detriment of multilateral commercial transactions of organizations, threatening their subsistence and social function, was A reflection on the importance, possible impact and challenges of compliance in this area is proposed. The implementation of a compliance program emerged as a skillful means of response, both in terms of preventing and repairing damage to the image of organizations, as long as it does not represent a mere formality, devoid of real correlation with the ethical values expressed by the code of conduct. organizational conduct, but based on the true primacy of corporate governance.

Keywords: Compliance, Cancellation, Reputational Risk.

1 Introdução

O que uma das maiores e mais famosas plataformas de streaming do mundo (aquela do som tudum antes de começar o filme) e uma startup brasileira, pioneira no segmento de serviços financeiros (aquela do cartão roxinho), têm em comum, além de um leiaute com cores vibrantes, que não combinam com a maioria das suas roupas? Resposta: ambas foram canceladas pelo tribunal da internet, no ano de 2020, segundo matéria da CNN Brasil (2020).

Mas, ao contrário da Netflix e da Nubank (ops), nem todas as empresas conseguem contornar os prejuízos financeiros advindos de manchas em suas reputações, principalmente se a matéria for grave, a credibilidade for fundamental para o tipo de negócio e o nível de politização do seu nicho no mercado de consumo for alto.

Eike Batista que o diga, pois, segundo a Revista Exame (2013), devido as suas promessas não cumpridas, destruiu a credibilidade da holding EBX, teve de vender o controle da empresa de logística do grupo, a LLX, deixou de controlar a mineradora MMX e ocasionou o pedido de recuperação judicial da petroleira OGX, tudo isso em intervalos de pouquíssimos meses.

Eike teve a sua fortuna reduzida de 30 bilhões de dólares para menos de 1 bilhão e, ainda, saiu da lista dos homens mais ricos do mundo, da revista Forbes, na qual, nos áureos tempos, chegou a ocupar a 7ª posição.

Portanto, a cultura do cancelamento adiciona riscos a atividade empresarial, que exigem a implementação de medidas preventivas e/ou reparadoras dos danos ocasionáveis à imagem organizacional.

Neste sentido, um programa bem elaborado de compliance pode atender, também, aos interesses reputacionais das empresas, na medida em que consolida uma cultura organizacional à ser projetada no meio social, fidelizando aqueles que com ela se identificam e propiciando uma estrutura para prontamente prevenir e corrigir condutas contrárias a essa cultura.

Compreender melhor essa dinâmica entre o compliance e a reputação das empresas é o objetivo deste artigo, a ser atingido por meu de pesquisa básica pura, qualitativa e bibliográfica.

2 A cultura do cancelamento.

Travain define a cultura do cancelamento como:

A prática cultural conflitiva de cancelar, premeditadamente ou não, uma pessoa ou suas manifestações, tolhendo-lhe a liberdade de expressão, de pensamento, de ideologias, de culto e de crença (por exemplo) e invalidando seus argumentos, sentimentos e emoções, buscando-se a imposição de um ostracismo cultural. A cultura de cancelamento (cancel culture) é uma vertente da cultura do ódio, da violência, da intolerância e da vingança. Seus pilares de estruturas sociais são similares aos pilares da cultura de vingança e de ódio. (Travain, 2020, p. 222).

O mesmo autor ainda preconiza que o enfoque dado atualmente para a cultura do cancelamento surgiu na década passada, quando usuários da internet começaram a manifestar suas contrariedades a certas atitudes, principalmente de celebridades, porém, ao considerar a cultura do cancelamento como uma vertente da cultura de ódio e violência, entendeu que a origem da cultura do cancelamento retorna indefinidamente no tempo, e destaca que: Um exemplo de cultura do cancelamento, baseado no boicote, nada mais foi que o ato nazista de marcar as lojas dos judeus de modo a prejudicar sua economia. Assim, (...) a cultura do cancelamento independe do meio digital. (Travain, 2020, p. 96).

Independentemente de como se conceitue ou conte a história da disseminação da cultura de cancelamento na sociedade atual, fato é que ela se estabeleceu com força total, exigindo a averiguação e tratamento de suas implicações.

2. 1 Cancelando as empresas.

O Diário do Comércio, na matéria intitulada Crise de imagem pode destruir empresa, destacou que:

Qualquer crise de imagem tem o poder de colocar uma empresa em risco. Falhas em produtos, erros na gestão, acidentes de trabalho, uma declaração mal colocada ou até mesmo informações disseminadas nas redes sociais (fake news) podem ser capazes de mudar ou formar a opinião dos consumidores e destruir, em pouco tempo, uma marca construída em anos.

Ser transparente e ágil são preceitos indispensáveis para evitar grandes perdas ou reverter a situação.

Esta é a análise de especialistas em gestão e marketing quando o assunto é gestão de crise. Profissionais consultados pelo DIÁRIO DO COMÉRCIO são unânimes ao alertar para a necessidade de transparência e atuação preventiva das empresas no quesito reputação. Segundo eles, as adversidades mostram que no ambiente empresarial, comunicação não é gasto, mas investimento. (Diário do Comércio, 2020).

Diante das conclusões expostas pela reportagem, cabe o questionamento sobre a possibilidade do compliance responder as demandas reputacionais das empresas afetadas pela cultura do cancelamento.

2. 2 A resposta do compliance.

Fica clara a relação entre compliance e a reputação organizacional na definição de compliance apresentada por Neves, para quem: Compliance (...) é uma estratégia composta por iniciativas preventivas, detectivas e responsivas que mitigam os riscos da organização, pavimentando o caminho para o sucesso contínuo da empresa, sendo, destarte, elemento fundamental da boa governança e informado pela gestão de riscos. (Neves, 2021, p. 170).

Mendes e Carvalho destacam que:

Os programas de compliance, também conhecidos como programas de cumprimento, de conformidade ou de integridade, têm se tornado cada vez mais relevante no mundo empresarial, à medida que aumentam a complexidade da regulação da atividade econômica e crescem os riscos de não observância da legislação, com consequências danosas à reputação e à saúde financeira das empresas e seus gestores. (Mendes e Carvalho, 2017, p. 4).

No mesmo sentido, os autores elencam entre as principais razões para a implementação desses programas nas empresas o impacto positivo na sua reputação, haja vista a expansão, cada vez maior, da exposição midiática dos escândalos de corrupção ou mesmo de concorrência desleal, que ampliou, para toda a sociedade, a divulgação dos casos denunciados, que reverberam em uma opinião publica cada vez mais consciente, impactando não só nas penalidades aplicadas, como também nas ações da companhia na bolsa de valores, na obtenção de empréstimos, no número de negócios e na relação com seus parceiros comerciais.

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Estabelecida a relação entre compliance e a reputação das empresas, e como esta pode ser positivamente impactada por aquele, resta indagar o porquê de ainda ocorrem escândalos empresariais, tão elementares, mesmo em ambientes organizacionais com programas desse tipo estabelecidos.

2. 3 De carona na fachada de integridade do compliance

Um grande exemplo a não ser seguido na implantação de um programa de compliance foi o de uma empresa multinacional americana, que conecta passageiros a motoristas, através de um aplicativo de transporte privado urbano, por localização.

A famigerada empresa, além dos recorrentes incidentes, decorrentes de falhas na sua segurança cibernética, que implicaram no vazamento de dados de milhões de usuários mundo afora, inclusive envolvendo ataque hacker, previamente avisado e subestimado por seus funcionários, que ainda adotaram postura negacionista e de resposta retardatária (CNN Brasil, 2022), também coleciona escandalosos sexuais, denunciados e ignorados pela organização (G1,2022), manobras inescrupulosas para furtar-se de investigações policiais, manipular governos e expandir seus negócios a custa de violência, tudo cominando na queda do seu CEO e cofundador Travis Kalanick (CNN Brasil, 2022).

A Uber (ops), essa empresa é a prova viva de que um programa de compliance sem efetividade prática e que não promove a aculturação da organização, conforme o seu código de ética e de conduta, não é capaz de, por si só, impedir os escândalos e suas repercussões sociais.

3 Considerações Finais

O cancelamento, justo ou injusto, é uma realidade que implica maior risco reputacional para as organizações na atualidade.

O compliance, como uma ferramenta adequada à gestão dos riscos organizacionais, tem incidência direta sobre esse tipo de risco, com impactos tão abrangentes sobre as empresas.

Embora a implantação de um programa de compliance em princípio forneça as estruturas de uma pronta atuação, tanto preventiva como repressiva, sobre a reputação organizacional, sua mera existência formal não evita o cancelamento empresarial.

É indispensável o comprometimento real da governança corporativa com a integridade e os valores éticos expressos no compliance.

Não é o compliance que cria a cultura da empresa, ele apenas pode disseminar uma cultura organizacional que reflita os verdadeiros interesses da alta administração.

Uma fachada não se mantém de pé sem uma verdadeira estrutura interna que lhe sustente.

Assim, não há como manter uma imagem de empresa ética sem que haja correspondência entre aquilo que está expresso no código de ética e a conduta efetiva de todos os seus colaboradores.


Referências Bibliográficas

EXAME (2013). 9 empresas que suaram para não manchar a reputação em 2013. Recuperado de https://exame.com/negocios/9-empresas-que-suaram-para-nao-lesar-sua-reputacao-em-2013/

CNN Brasil (2022). Documentos vazados da Uber mostram medidas extremas tomadas pela empresa. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/documentos-vazados-da-uber-mostram-medidas-extremas-tomadas-pela-empresa/

CNN Brasil (2020). Quem foi cancelado em 2020 e o que disse o tribunal da internet no ano. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/quem-foi-cancelado-em-2020-e-o-que-disse-o-tribunal-da-internet-no-ano/

CNN Brasil (2022). Uber investiga incidente de segurança cibernética após denúncia de violação. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/business/uber-investiga-incidente-de-seguranca-cibernetica-apos-denuncia-de-violacao/

G1 (2022). Uber, uma história repleta de escândalos. Recuperado de https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/07/11/uber-uma-historia-repleta-de-escandalos.ghtml

Mendes, F. S; Carvalho. V. M. (2017). Compliance: concorrência e combate à corrupção. São Paulo, SP: Trevisan.

Neves, E. C. (2021). Fundamentos de governança corporativa: riscos, direito e compliance. Curitiba, PR: InterSaberes.

Travain, L. A. L. (2020). Cultura do cancelamento: a pandemia do ódio. eBook Kindle.

Sobre a autora
Ingrid Cristine Vieira Ferreira Nunes

Professora, Advogada e psicoterapeuta, mestre em Estudos Jurídicos com ênfase no Direito Internacional, pós-graduada em Direito Público, Direito Digital e Compliance e Docência e Gestão no Ensino Superior.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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